Da cestinha de remédios que você tem em casa à cartela de comprimidos para dor de cabeça que sempre está na bolsa, os riscos à sua saúde são maiores do que você imagina. Em um ano, o brasileiro consumiu, em média, 700 doses de remédios compradas em farmácias - algo como duas doses por dia por habitante, todos os dias. Não é pouco, considerando que 75% da população só compra medicamentos em farmácias, sem ajuda de programas do governo. Estamos consumindo mais remédios do que outros países, reconhece o ministro da Saúde, Ricardo Barros. “É cultural. Todos temos uma farmacinha em casa, um armarinho cheio de medicamento que comprou, não usa, está vencido e continua lá.”
Vendas e faturamento do mercado farmacêutico no Brasil
Fonte: Interfarma/QuintilesIMS
Os números, fornecidos pela Interfarma com base em dados da consultoria QuintilesIMS, traduzem uma realidade que combina automedicação, consumo excessivo, acesso facilitado, investimento pesado em publicidade, lobby setorial e regulação falha. O resultado é um aumento de 42% nas vendas de remédios em farmácias ao longo dos últimos quatro anos. “O brasileiro gosta de tomar remédio. Muitas pessoas vão ao médico e não podem sair de mão vazia”, resume o médico Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Hospital das Clínicas da USP.
O professor de história cultural Leandro Karnal diz que esse consumo está ligado à busca pela felicidade plena. A sociedade brasileira contemporânea, diz Karnal, não tolera a dor e acha que o estado de tristeza deve ser evitado. “Quando essa felicidade não ocorre, recorremos a uma muleta química, o remédio.”
Um levantamento ainda inédito do Ministério da Saúde, realizado entre 2013 e 2014 com 41 mil brasileiros de todo o País, revelou que a metade dos entrevistados tomou pelo menos um medicamento nas duas semanas anteriores à pesquisa. "De maneira geral, uma prevalência de 50% de medicação em uma população que não está doente é elevada. E enquanto pesquisávamos não víamos uma população doente", diz a pesquisadora Andréa Dâmaso, epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) que participa do estudo.
A indústria farmacêutica aponta vários fatores para explicar o salto nas vendas de remédios nas farmácias do País. A principal razão, diz o presidente do Sindusfarma, Nelson Mussolini, é que a população está aumentando e também envelhecendo. “Pessoas idosas tomam mais medicamentos”, justifica. Além disso, há mais pessoas preocupadas com a saúde e o acesso aos medicamentos aumentou muito nos últimos anos com a entrada dos genéricos no mercado, argumenta o representante dos laboratórios. “Excluindo os hipocondríacos, ninguém toma medicamento porque não precisa. As pessoas que tomam medicamento é porque precisam deles”, afirma Mussolini. O Sindusfarma reúne 271 empresas nacionais e internacionais que detêm mais de 95% do mercado de medicamentos no Brasil.
Jarbas Barbosa, presidente da Anvisa, afirma que o consumo de medicamentos no Brasil tem dois extremos. “Há pessoas que estão consumindo num padrão acima da média e outras que têm muita dificuldade de acesso.” Segundo levantamento nacional feito em 2014 pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e Datafolha, metade dos brasileiros não consegue comprar todos os medicamentos que precisa pelo tempo necessário do tratamento.
O presidente da Interfarma, Antonio Britto, que representa 56 laboratórios de grande porte, diz que iniciativas como o programa Farmácia Popular não são suficientes para atender as necessidades da população. "Isso tende a piorar com o avanço do porcentual de idosos." O ministro Ricardo Barros garante que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem disponibilizado medicação para todos que precisam. “O abastecimento dos medicamentos está absolutamente em ordem. Quem precisa, está sendo atendido”, diz.
Caminhos
As propostas para enfrentar o aumento no consumo de medicamentos no País variam de maior controle até venda fracionada. Bráulio de Luna Filho, diretor do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), defende que mais remédios sejam vendidos apenas com receita médica. “Há falta de informação do lado do paciente, que muitas vezes toma remédio sem saber que pode fazer mal, simplesmente porque um parente ou colega aconselhou”, diz o médico. Para o ministro da Saúde, a solução é informatizar o controle em um prontuário eletrônico dos pacientes e fracionar a venda de medicamentos nas farmácias. “Se o médico receitar 10 comprimidos e a farmácia só tem embalagens com 20 ou 40, você leva e fica com isso em casa”, diz Barros.
Em 2006, uma resolução da Anvisa regulamentou o fracionamento de medicamentos. Dez anos depois, a venda de remédios por unidades nas farmácias ainda é muito restrita. Mussolini, do Sindusfarma, nega que exista oposição da indústria farmacêutica à venda fracionada. “Da forma como é feito em várias partes do mundo, a indústria farmacêutica nunca se opôs. O que a indústria farmacêutica sempre considerou absurdo era a venda fracionada que foi adotada no governo passado”, critica. Segundo ele, o farmacêutico picotava, com uma tesoura, a embalagem do produto, o que pode comprometer a estabilidade da droga.
Para o pesquisador Peter Gøtzsch, que coordena o Instituto Cochrane, um centro internacional de pesquisa e informação sobre saúde, o número de doses consumidas pelos brasileiros no último ano preocupa. “O consumo de medicamentos é alarmante, porque muitas pessoas têm efeitos colaterais que podem ser bastante perturbadores”, afirma. Na Europa e Estados Unidos, segundo o especialista, o consumo de remédios é a terceira maior causa de morte, depois de doenças cardiovasculares e câncer. Somado a isso, o lobby se mantém presente em todas as partes do mundo, segundo Gøtzsch. “Nós permitimos que a indústria farmacêutica se tornasse poderosa demais”, diz.
No Brasil, o lobby das indústrias farmacêuticas financiou campanhas eleitorais de 309 candidatos em 2014. O Estado apurou que 23 fabricantes de remédios contribuíram com R$ 16 milhões para políticos que conquistaram vagas no Executivo e Legislativo - prática proibida a partir de 2015 para empresas em geral. Os parlamentares eleitos são membros de comissões ligadas à saúde pública.
Riscos
O excesso de drogas aumenta os riscos de interações medicamentosas negativas, efeitos colaterais, intoxicações e internações hospitalares. O Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) contabilizou 12 mil casos de intoxicação em 2013, sem incluir a região sul. Além disso, as notificações de internações desses casos registradas no Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS mostram queda de 17% nos últimos cinco anos.
Mas é uma falsa realidade: somente no Hospital das Clínicas há pelo menos 7.000 casos de intoxicação por ano. Wong, diretor do Ceatox do hospital, estima uma média de dois milhões de intoxicações causadas por remédios por ano. "Não posso avaliar se há falha nas notificações, mas a questão de intoxicação por excesso de medicamentos de fato é um problema", reconhece o ministro Ricardo Barros.
Segundo a coordenadora do Sinitox, Rosany Bochner, a pressão vem da indústria. “Há uma pressão externa muito grande de fabricantes de medicamentos que não querem que esses dados apareçam.” Segundo ela, as indústrias contratam firmas especializadas para atender casos de intoxicação para que as ocorrências não constem no sistema público.
Com os dados oficiais subnotificados, não é possível calcular com exatidão o alcance dos problemas causados à saúde pela automedicação e consumo excessivo. Segundo a pesquisa do Ministério da Saúde, mais da metade da população brasileira se automedicou para febre com base em sugestão de conhecidos. Para combater a dor, 52% dos brasileiros tomou remédios indicados por familiares ou amigos.
Quem nunca?
Um dos caminhos mais usados para a automedicação tem nome próprio: Dr. Google. A facilidade de acesso às informações na plataforma tem estimulado os brasileiros a encontrar diagnósticos e escolher tratamentos no consultório virtual. A prática é tão comum que a empresa firmou parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein para diminuir a propagação de informações imprecisas e uso indevido de medicamentos.
O pesquisador e cardiologista Flávio Fuchs, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que o consumo de remédios está relacionado a um “instinto de cura” do ser humano. “Há o uso sem indicação médica, e às vezes até com prescrição, que resulta num aparente benefício, mas não é favorável a longo prazo”, diz ele.
O investimento elevado em publicidade pelo setor farmacêutico contribui para estimular o consumo. Só no ano passado, os laboratórios investiram R$ 8,1 bilhões em propagandas de remédios comercializados sem receita médica. Sexto maior investidor em anúncios no País, o setor não é obrigado a submeter os comerciais de medicamentos ao crivo da Anvisa antes de veiculá-los.
Para o médico sanitarista José Ruben Bonfim, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), o problema de regulação ultrapassa a questão da publicidade. Segundo ele, a Anvisa não tem estrutura para fazer o mesmo trabalho de fiscalização e controle que organismos como a Agência Europeia de Medicamentos ou a agência norte-americana de regulação sanitária). Um exemplo de vigilância é o Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, que é mantido pela Anvisa. Os dados de venda de remédios controlados são informados, mas faltam profissionais elaborar estatísticas e analisar a eficácia e segurança do consumo.
Especialistas ressaltam que as drogas representam um avanço importante, principalmente para doenças graves ou crônicas, como doenças cardiovasculares, hepatite, diabetes, hipertensão e câncer. É o uso que se faz dos remédios que merece atenção, diz o pesquisador Flávio Fuchs. Autor do livro Farmacologia Clínica - Fundamentos da Terapêutica Racional, o médico defende que é preciso saber usá-los e prescrevê-los na quantidade correta. “O uso racional de remédios evita a exposição desnecessária.”