Professor de história cultural e colunista do Estado, Leandro Karnal afirma que o excesso de remédios é resultado de uma sociedade que não tolera a dor e deseja estar sempre no controle do que está à sua volta.
Por que o brasileiro está tomando tanto remédio?
É uma consequência da medicalização do sentimento, uma característica nossa. Infelizes devem tomar Prozac. Desatentos devem tomar Ritalina. Há uma tentativa de traduzir o ser humano em uma felicidade constante e permanente. Quando essa felicidade não ocorre, a dimensão trágica da existência aparece e recorremos a uma muleta química, o remédio.
Qual o comportamento médico em relação a isso?
Nos Estados Unidos, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um problema grave. Os médicos receitam Ritalina em uma quantidade similar à nossa. Na França, onde os médicos e pediatras não acreditam nessa doença, não há prescrição.
A medicina, então, depende do momento?
Assim como qualquer pensamento. Na infância, fiz tratamento para pé chato, que hoje não se trata mais. A medicina descobre novidades, traz à luz doenças novas e tira dessa categoria alguns comportamentos. A homossexualidade foi considerada enfermidade por anos. Uma pessoa melancólica no século 15 hoje tem depressão.
Há excesso de diagnósticos de depressão?
Sem dúvida. A depressão é uma doença gravíssima e tem várias origens. Porém, imaginar que tristeza seja depressão é um erro de diagnóstico. Não há nada errado se você ficar triste porque perdeu alguém querido. O médico acredita nesse diagnóstico. A sociedade e a indústria, também.
Acaba-se criando uma inércia?
Sim. O conhecimento médico é fruto de uma concepção objetiva e técnica somada à cultural. O fato de termos hoje uma grande quantidade de cesarianas não é fruto de uma questão técnica, mas de uma cultura.
Nossa cultura não tolera dor?
Não gosta da dor, não tolera o parto e teme que deixe sequelas. A sociedade já não vê no parto natural o valor que antigamente se concebia. A preferência por cesáreas pode ser pela crença no indivíduo pleno, que não deve ter dor. Consideramos que o estado de dor e tristeza deva ser evitado. Nem sequer suportamos que ele exista, ainda que passageiro. Acreditamos que o ser humano deva ser plenamente feliz.
E nesse processo nos automedicamos porque “encontramos” o nosso diagnóstico?
Vivemos com a crença de que a vida tem de estar sempre sob controle e devemos estar o tempo todo disponíveis.
Quais seriam os exemplos dessa crença ‘exagerada’?
As pessoas ficam perdidas ao se depararem com o caráter aleatório da tragédia, como a queda do avião da Chapecoense.