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Sãocarlense

Na “Hi-Fi Discos e Mídia” tem de tudo um pouco: de CDs e DVDs até produtos menos óbvios, como girassóis, guarda-chuvas e tapetes. No andar superior, numa estrutura metálica que balança ao sinal da menor pisada no chão, trabalha o proprietário. A sala fica depois de um pequeno labirinto de estantes com mais DVDs, e até fitas VHS, de filmes pornográficos para todos os gostos. “Você não repare a bagunça.” Do outro lado da mesa está Sérgio Antonio Piovesan, um dos pais do extinto Grêmio Sãocarlense, licenciado em 2005 e agora sem atividade no futebol. O time era xodó da cidade de São Carlos, a 250 quilômetros de São Paulo.

Presidente por mais tempo do conselho deliberativo do extinto Grêmio Sãocarlense, Sérgio Antonio Piovesan observa a taça conquistada na Itália, no final dos anos 1990

“O Sãocarlense sempre deveu desde o primeiro dia de atividade. Nunca teve dinheiro. Os clubes só se tocavam com sócio e renda, não tinha isso de patrocínio ou dinheiro de televisão”, lembrou Piovesan, presidente que mais tempo ficou no cargo do Conselho Deliberativo do time: mais de 20 anos.

Falar do Sãocarlense é, essencialmente, um exercício de memória para Piovesan, já que muito do acervo físico do clube, fundado em 19 de março de 1976, como troféus e camisas, se perdeu. Não há estádio nem sede social. “Quando o Sãocarlense fez 35 anos, montei um jornal para lembrar das glórias do Lobão, como o time era conhecido. Parei no segundo volume porque não teve mais publicidade suficiente, e estava dando prejuízo.”

As publicações de papel mantêm vivas as histórias dos torcedores que viram o Luisão, estádio do clube e que hoje pertence ao time surgido depois, o São Carlos, lotar com mais de 23 mil pessoas em 23 de maio de 1990. A equipe da casa recebia para amistoso o Corinthians, de Viola, Neto e Wilson Mano, invicto havia 34 partidas até aquele momento. Depois de um jogo muito disputado, cheio de jogadas “ríspidas”, o resultado foi 2 a 1 para a equipe do Interior, que com 19 partidas sem perder levou a “taça dos invictos” daquele ano.

O clube nasceu de um churrasco em 1976. Antes de decidirem reunir o pessoal para assar a carne, foram duas reuniões e um número minguado de pessoas comuns da cidade, sem nenhuma experiência em futebol. No dia da assinatura da ata de início do clube, 30 sãocarlenses se apresentaram. Nenhum dos presentes naquele encontro imaginariam que, quase duas décadas depois, o time partiria em uma excursão pela Europa para jogar com rivais locais, em julho e agosto de 1997.

Conheça o Estádio Luizão, que pertenceu ao Sãocarlense, hoje, casa do São Carlos. O estádio fez parte da história vitoriosa do time nos anos 1990:


Nessa época, houve rumores de que, na verdade, o Grêmio de Porto Alegre era o clube esperado para atuar contra Lazio, Fiorentina e companhia. “A bem da verdade, era para ir o Grêmio Novorizontino, da cidade de Novo Horizonte, mas o clube não pôde. Então foi o Sãocarlense, da região, mas não teve nada escondido, nada enganado”, garantiu Piovesan. “O Grêmio Sãocarlense fez algo que tenho certeza que uns sete, oito clubes da primeira divisão hoje nunca fizeram, que foi jogar fora do País. Jogamos sete partidas na Europa. Esse troféu aqui (mostra a relíquia na sala), ganhou na Itália. O único time fora da Europa a disputar o Cecchi Gori foi o Sãocarlense.”

E por que o Grêmio Sãocarlense fechou as portas? “O Sãocarlense sempre teve um certo peso político”, explicou Sérgio Piovesan. “Os prefeitos da cidade sempre foram eleitos com a força do time. Alcançado o objetivo nas urnas, abandonavam o time.” Em épocas de crise, quando a administração ficava vaga, porteiros e outros funcionários tocavam o clube, até que alguém assumisse, numa condição pré-amadora. Não tinha, portanto, outro caminho a não ser o fim. Além disso, os amantes do Sãocarlense carregam certa mágoa com o nascimento do São Carlos Futebol Clube, logo em seguida ao encerramento do Grêmio. Hoje, ele é o único time profissional da cidade e está na segunda divisão do Paulista. Para eles, o Grêmio acabou para que o novo time, que não empolga tanto quanto o antigo, surgisse.

O ex-conselheiro Rogério Zangotti conta outra história. Ele presidiu a reunião do Conselho na qual se decidiu pelo licenciamento do Grêmio Sãocarlense das competições da Federação Paulista de Futebol (FPF). Um momento de grande tensão, em que pesou o fato de a gestão ser “retrógrada” e levada na base da “amizade”, e não de um modelo empresarial. “Não havia quem tocasse o time, por isso achamos melhor licenciar”, contou. Não havia dinheiro. “As pessoas querem tocar o time sem ter responsabilidade. Para se ter uma ideia, juntou um grupo que acabou envolvendo até o próprio o patrimônio. O raciocínio era: 'se der para pagar, paga, se não der, não paga'. E sempre batendo na porta do poder público para arrecadar dinheiro.”

Zangotti chegou no surgimento do time e foi ficando, ficando. Quando percebeu, já havia se passado 30 anos. “Você vai criando aquele amor, ali em volta do estádio, tomando gosto, participando. E aí você acaba se envolvendo. Fui conselheiro, tesoureiro, diretor de futebol, enfim, 'um faz tudo no clube'”, recordou o advogado especialista em direito desportivo. “É Preciso modernizar a gestão dos clubes do Interior como um todo. Ainda há clubefs que preenchem fichas de jogador na máquina de escrever”, diz.

MÁGICA


Na conquista da segunda divisão em 1990, o time jogou contra o Comercial, em Ribeirão Preto, num aguaceiro que só vendo. O empate resolvia o assunto. Roberto Biônico, um dos ídolos do Sãocarlense, marcou o gol que definiu a partida. No fim, foram todos comemorar no Pinguim, tradicional boteco de Ribeirão. Chegaram lá cantando:

– Grêêê-miooo, Grêêê-miooo.

O garçom, botafoguense fanático, veio até a mesa e fez um pedido.

– Ó, tem um pessoal comercialino ali que está bravo. Canta de novo?

“Nos últimos anos, acabaram com esse misticismo do futebol do Interior”, lamentou Sérgio Piovesan. “O sujeito tinha um ritual no domingo, que era vir para o campo de futebol e ficar no barzinho, tomando uma cerveja à espera do jogo. Hoje proibiram a cerveja. Proibiram o rádio. Proibiram a bandeira. Isso acaba inviabilizando muita coisa, muita tradição.”

Edvaldo Garbuglio, o Vardão, jogador do Grêmio da época do acesso à Primeira Divisão em 199: “O lazer do povo aqui era futebol”, relembra

Além do encanto roubado, há problemas logísticos também. O ex-jogador Edvaldo Garbuglio, o Vardão, concorda. “Muitos torcedores se afastaram do estádio.” Ele pergunta: como disputar um campeonato que dura apenas três meses? Como sobreviver? “Hoje, o jogador faz contrato de três meses sem saber o que vai fazer depois”, considerou. “O lazer do povo do Interior era o futebol. Não tinha nem shopping ainda. Eram anos bons, enchia o campo, fazia fila para entrar. Todo mundo se divertia. Era complicado ganhar dos times do Interior.”

Com passagens pelo XV de Jaú e Grêmio Sãocarlense na época do acesso e da descida (1991 e 1992), Vardão não largou o futebol. É funcionário da prefeitura de São Carlos, num projeto social que pretende levar cidadania por meio do futebol a crianças carentes da cidade.

CORAÇÃO E EMOÇÃO


Sérgio Piovesan não fala em números, apenas diz que a dívida trabalhista do clube “não é pouca coisa” antes de fechar, em 2005. Mas para tudo se daria um jeito, é sua filosofia. “Tenho muita fé que o Grêmio Sãocarlense volta um dia. Estou para completar 71 anos e vivo plantando essa ideia nos mais jovens. Agora, se houver um hiato muito grande, os torcedores saudosos vão diminuindo. Vai ficando mais difícil.” O ingrediente principal tem de ser coração e emoção, como nos velhos tempos.