Faltavam ainda três dias para o 1º de abril, mas os poucos torcedores que sobraram ao lado da Francana naquele domingo chuvoso em Tupã ainda tinham esperança de que o que viam, ouviam e liam sobre o time estivesse errado. A Veterana centenária teve de engolir em seco o rebaixamento para a segunda divisão do Campeonato Paulista, junto com os três gols que levou do time da casa. Era mais uma queda, e com ela a esperança de voltar a ser forte.
“É uma tristeza grande”, lamentou o ex-preparador físico da vitoriosa Francana de 1977, Chico Mariano, ainda na cidade. Ele estava junto quando o time subiu para a elite do Paulistão naquele ano. Seu diagnóstico foi de que a queda neste ano não passou de uma tragédia anunciada. “A gente já sabia que ia cair. Fez parceria de qualquer jeito, na correria. Para quem viu disputar do amador até cinco anos na primeira divisão, ver acabar é triste.”
A sombra das árvores da sede recreativa da Francana, a uns dez minutos do Lanchão, como é conhecido o estádio José Lancha Filho, foi o cenário escolhido para relembrar os tempos áureos do time da terra do sapato. Hoje, o Sindicato dos Trabalhadores de Calçados de Franca alugou o espaço rico em área verde da cidade, com duas grandes piscinas e um campo de futebol onde funcionou o primeiro estádio, que não existe mais. O valor do aluguel é a única receita do clube atualmente.
Quem teve a ideia de levar Chico Mariano até o clube para a entrevista foi o ex-goleiro Nelson Martins, o Mamão. “Eu pedi para o professor vir porque às vezes a memória dá uma falhada. Isso aconteceu depois do raio”, explicou o jogador com naturalidade. Ainda na década de 1990 - ele não lembra quando exatamente -, o tempo fechou durante um treino em sua escolinha de futebol na cidade. Vendo a tempestade que se aproximava, ergueu o braço apontando para alguns materiais que deveriam ser recolhidos. Foi nessa hora que a descarga elétrica o atingiu em cheio.
“Sou um dos poucos sobreviventes de raios no Brasil. Fiquei 20 dias em coma e os médicos tiveram de tirar os pedaços da minha roupa grudados com a pele”, conta. Não ficou com sequelas, apenas a perda parcial da memória. Do jogo de acesso da Francana em 1977, Mamão não esquece. Foi contra o Araçatuba.
“Tinha gente até no poste. Botamos 22 mil pessoas no estádio”, lembrou o goleiro. No ano passado, reuniram vários jogadores do acesso para “dar uma força” ao time. “Veio o Assis, o Silva, o Heraldo, o Reinaldo. Nós fomos para a churrascaria mais frequentada de Franca”, contou Chico. A ideia era entrar sem fazer alarde. “Daí, passou um tempo, anunciaram no auto-falante: 'o pessoal de 77 da Francana está aqui'. Nossa! Foi uma coisa. Ficamos lá até 4 horas da manhã.”
Da memória também não se apaga a vitória por 2 a 1 contra o Santos, na Vila Belmiro, em 1982. Levaram dois dias para subir a Serra, de carona ainda por cima, porque o ônibus vinha quebrando o caminho todo. Jogar pela primeira vez no Pacaembu, contra o Corinthians, em 1978, também foi inesquecível. “Dava até medo ver a torcida, cara!”
Cabelinho e bigodes já mais brancos do que pretos, o tranquilo Chico também lembra bem desse jogo. “A Federação inventou por um tempo que o preparador físico não podia ficar no banco.” Até aí, tudo certo. Se quisesse acompanhar a partida, teria de ser lá da arquibancada. “Estava um frio danado. Peguei meu abrigo da Francana e me descobriram sentado. Pra quê... começaram a gritar: ‘pega o caipira, pega’. Tive de pular o alambrado para não apanhar feio”, riu.
Um dos conselheiros da Francana, o ex-delegado e escritor futebolístico Clésio Dante de Oliveira, também lamentou a temporada. “A Francana começou a fazer um campeonato na Série A3 com uma diretoria eleita em setembro do ano passado, advertida no dia da reunião de que precisava de dinheiro. E a Francana não tinha. Não tinha e não tem”, desabafou. Ainda segundo Dante, a diretoria prometeu R$ 40 mil de uma empresa do ramo de alimentação. “Quando fez nove partidas, o time ainda não tinha ganhado nenhuma. E ele não pagou ninguém.” Com a situação apertando, quiseram passar a administração ao Conselho, que se recusou a recebê-la formalmente, mas passou a tocar o time.
“Reunimos os jogadores, falamos com eles e dissemos que não tínhamos dinheiro, mas o que a gente conseguisse ia dar para o elenco”, afirmou. Do grupo todo, 16 toparam continuar. “E nós fizemos os outros dez jogos com 16 jogadores. Teve um dia que tinha só dez. Nós ligamos em São Paulo para um deles: ‘volta correndo que precisamos jogar amanhã’. Mandamos o dinheiro, ele veio, jogou e depois voltou para São Paulo.” A graça da história, disse Dante, é que esse jogador, zagueiro, marcou o único gol da Francana, mesmo com a derrota da equipe. Ele diz ter pago todos os jogadores, e o que falta já está combinado.
Para completar o fim melancólico da Francana neste ano, a torcida se ausentou e abandonou de vez o barco. No último jogo, o conselheiro virou porteiro e vendeu os ingressos na porta do estádio. “Mas não tive muito trabalho. Sabe por quê? Porque foram 30 pessoas só.” A ordem do dia, agora, é renovar. “Nós vamos começar de novo. Cada conselheiro, eu, o Anderson Silva e o Toninho Bolota, vai arrumar dez sócios, o mínimo para que o clube não precise fechar as portas, e nós vamos batalhar para que, no ano que vem, em 2016, tenha futebol na Francana. É isso.” Depois, voltou-se para Mamão e Chico.
- Estou muito feliz de ver vocês aqui dentro? Vocês precisam ajudar a gente. Venham na reunião tomar um cafezinho e comer um pãozinho de queijo, cada um traz uma coisa.
Se depender de outras pessoas cujos destinos já foram ligados à Francana, o time terá com quem contar. “Tenho muitas saudades, claro, e se fosse chamado, com certeza iria treinar o time” , se empolgou o ex-zagueiro da Veterana Joãozinho. Hoje, ele edita vídeos de programas da Rede Record, em Franca. Lá, mostrou seu álbum com fotografias e recortes de jornal. Tudo reunido pela mãe, sua patrocinadora desde que entrou no time de juniores, em 1994. “Se ela não tivesse guardado, tinha perdido tudo. Desde o começo ela pagava até passagem de ônibus para eu vir treinar”, disse. “Essa aqui foi a primeira viagem de avião”, apontou para um recorte que mostra a equipe da Francana embarcando em voo da extinta Vasp para São Luís, no Maranhão, onde jogaram contra o Sampaio Correio pela Série C do Brasileirão. E o medo? “Deu até dor de barriga.”
Joãozinho ainda acha que o time tem jeito. “Isso foi coisa de dez anos pra cá, mas tem volta. Precisa colocar pessoas que entendam de futebol e gerência”, palpitou.
Outro ex-jogador ilustre, mas que poucos sabem que passou pela Francana, foi o mais do que premiado jogador e treinador do Brasil no basquete: Hélio Rubens. Antes de se decidir pelos aros e cestas, ele jogou pela Francana. Isso foi em 1957. Por não ter nem mesmo um contrato que lhe desse garantias, o esportista mergulhou no basquete. “Eu chorava igual criança. Minha mãe me amparou: ‘calma, meu filho. Vai para o basquete que o ambiente é melhor’.” E não se arrependeu. No pequeno santuário criado pela esposa para reunir suas conquistas, as paredes cheias de medalhas e troféus respondem por ele.
“Eu fico aqui lamentando a Francana, rapaz.” O fato de morar porta a porta com o estádio é um constante lembrete da equipe que agoniza. Seu ceticismo prevalece. “Para recuperar a Francana, tem de ter um trabalho coletivo com as forças vivas da cidade: empresários, prefeitura, câmara. Passei minha vida atrás de patrocínio. É duro. O cara quer saber em quantos jogos a marca dele vai aparecer, quantos serão televisionados.” Há um problema de credibilidade também. “A diretoria não tem prestígio para chegar nas forças vivas da cidade e falar do plano, sobre como vão subir a Francana. O problema é de planejamento, financeiro inclusive. Só que a empresa que vai por dinheiro precisa ver um retorno. Hoje, por ideal ninguém faz nada.”
A alguns quilômetros dali, no clube da Francana, parado ao lado da grande piscina, Chico Mariano observou com olhar perdido. Fixou os olhos no escudo da Francana pintado, pequenino, espremido pelo nome do sindicato, e profetizou: “A gente vai recuperar. Daqui um ano, quando você voltar, você vai ver.”