Os adesivos colados nos postes da Praça dos Leões, em frente ao estádio Palma Travassos, do Comercial de Ribeirão Preto, denunciam a guerra travada entre presidente e torcida há vários meses. O clima de “fora” para o presidente Nelson Lacerda é inegável. “Perante o torcedor, o desgaste da imagem do presidente é muito grande”, contou o vice-presidente do clube, Rogério Vieira. “Hoje, o melhor para todos seria se ele saísse mesmo.”
A Lacerda Sports, empresa criada em 2009 pelo advogado Nelson Lacerda, assumiu a gestão do Comercial e passou a administrá-lo. “No começo deu tudo certo. Ele fez muita coisa boa pelo time, mas faltou ouvir mais. O que desandou foi investimento errado e a falta de escutar as pessoas”, desabafou o vice. Segundo Vieira, Lacerda não aparece no clube desde o dia 7 de março, quando o time enfrentou o Guarani pela sexta rodada da Série A2 do Estadual.
Com o site oficial desativado, a empresa tem um perfil na rede social corporativa LinkedIn no qual diz que “hoje, o time figura entre as potências (sic) do futebol brasileiro”, situação bem diferente do que se vê na prática. Em campo, o Comercial luta na Justiça para evitar cair para a Série A3 do Campeonato Paulista e depende do Superior Tribunal de Justiça Desportiva tirar pontos do Atlético Sorocaba pela escalação irregular de um jogador. As finanças também não vão nada bem. O clube acumulou dívida de R$ 3 milhões espalhada por 40 ações trabalhistas e teve queda brutal no número de sócios-torcedores: de cinco mil em 2012, atualmente, não passam de 400. Até os salários já estiveram atrasados.
O torcedor Wesley Rios lembra da felicidade com que chegou correndo em casa em 2010, quando o Comercial estava prestes a perder na Justiça seu complexo poliesportivo. Ele chorava.
— Pai, pai. Chegou um advogado muito louco lá que levantou a bengalinha e disse que nós não vamos perder o poli!
Era Nelson Lacerda. “Dois dias depois, ele estava dando entrevista na TV, dizendo que não tinha mais o que fazer e que o poli estava perdido”, contou indignado Rios, um dos dirigentes da torcida organizada Batalhão Alvinegro. O advogado acabou convidado a permanecer no Comercial para geri-lo. O torcedor foi radicalmente contra quando ele assumiu a presidência. “Não devia ter deixado, porque pelo menos o cheque, a assinatura, ficaria com alguém do Comercial.”
Com um temperamento difícil, o tempo já esquentou entre o jovem e o presidente algumas vezes. “Desde que chegou, tenho brigas com ele”, explicou Rios. Quando fala do dirigente, fica nitidamente alterado. Ele contou que trabalhava no clube e ganhava como salário o pagamento da mensalidade de sua faculdade e mais R$ 200 de ajuda de custo. “Eu fazia contrato dos jogadores, compra, ia na Federação Paulista, arrumava chuveiro. Ele chegou querendo mandar em tudo, tirar a geração (que já estava lá antes). Daí uma vez nós discutimos, eu chutei a mesa dele e teve de chamar até a polícia para eu sair de lá. Depois disso, só briga.”
Wesley Rios tem uma crença à qual se apegou como torcedor tarimbado do Comercial: “Parece que no dia em que algo dá errado no Comercial, cai uma nuvem negra em cima do time e todos sofrem”. O embate para aumentar o investimento no clube só colaborou para ampliar o abismo entre a diretoria de futebol, a gestora e a torcida. “Ele gostou de gastar pouco na Copa Paulista e achou que podia fazer o mesmo na Séria A2”, reclamou. O vice-presidente confirmou. “Nós avisamos que o time (que tinha sido montado) não ia subir, a gente ia correr risco. Além disso, vários jogadores vinham com salários pagos por empresários e os outros, daqui, ficavam sem receber. Como você vai cobrar de um cara que não é você que está pagando?”
Na porta do estádio, o ex-goleiro Tomires substitui a mocinha da recepção. “Eu trabalhava lá dentro, antes, na minha sala, agora fico aqui, recebendo o pessoal, fazendo tour, contando a história do clube”, disse o senhor de 68 anos enquanto aceitava novas amizades no Facebook e via a foto antiga em que o haviam marcado. Já é prata da casa há 22 anos e jogador com passagens pelo Ituveravense e XV de Jaú, além do Comercial, claro. Um dos maiores orgulhos era ter Emerson Leão, hoje técnico, como seu reserva e ter jogado contra a máquina do Santos, de Pelé e companhia.
“Lembro do primeiro gol que marcaram aqui na inauguração do Palma Travassos, em 1964: foi o Paulo Bin, contra o Santos. Nós perdemos de 3 a 2.” Fez questão de mostrar sua sala, um amplo espaço cheio de troféus empoeirados, com uma mesa repleta de papéis e uma foto da musa do time, sorrindo faceira apenas de biquíni.
Ele apontou para um quadro na parede com o time em formação na cidade de Aparecida do Norte. “O nosso ônibus chamava Penumbra”, disse. Pela tradição, todo início de campeonato o Comercial ia até a cidade sagrada, recebia as bênçãos da Virgem e começava a campanha. Não se sabe porquê, mas em 1968 eles não foram. O time travou e começou a descer ladeira rumo ao rebaixamento certo. No último respiro, fizeram a caravana e Nossa Senhora se apiedou dos moços.
Parece que as peregrinações antigas começaram a fazer efeito agora. No último dia 19, membros do Conselho e da diretoria do Comercial se reuniram com torcedores para avaliar a delicada situação do clube. Apareceram por lá umas 90 pessoas - menos o presidente que, mesmo convocado, não foi. Ele preferiu enviar uma carta com sua renúncia ao cargo, alegando “desconfortos” de ambos os lados. A torcida comemorou, mas com o pé atrás, já que a gestão continua sob o comando da Lacerda Sports pelo menos por mais 90 dias, quando haverá nova avaliação.
Enquanto a molecada da base disputa o Campeonato Paulista nas categorias Sub-11, 13, 15, 17 e 20, a diretoria tenta resolver o incômodo que virou o contrato de gestão. Assinado para durar 25 anos, o documento prevê multa rescisória de R$ 25 milhões em caso de quebra de qualquer um dos lados. “Antes disso, muitas cláusulas já foram quebradas”, afirmou o vice-presidente. O desejo é de que tudo seja tratado de forma amigável. Procurado em seus escritórios de advocacia em São Paulo, Ribeirão Preto e Rio de Janeiro, não foi possível falar com Nelson Lacerda.