Café sertanejo: degustação histórica


Ana Rita Suassuna
Ensei Neto


Veredas do café: a narradora e o especialista

texto: José Orenstein
foto: Daniel Teixeira/Estadão
Ana Rita Suassuana tem o dom de narrar. As oito décadas de vivência, pesquisa e experiência dos modos do sertão fermentam suas histórias, temperadas por uma erudição que passa bem longe de flertar com a afetação. Neste 7º Paladar - Cozinha do Brasil, a enciclopédia sertaneja que Ana Rita parece carregar na memória abriu o verbete café.

"O sertanejo é por natureza muito acolhedor, hospitaleiro. Na região semi-árida, o café era símbolo da hospitalidade. Mesmo a pessoa mais pobre tinha café, nem que fosse um chafé", lembrou ela, que é natural da Paraíba, mas cresceu no sertão de Pernambuco. Ana Rita voltou-se para o passado. E, ao seu lado, o estudioso do café Ensei Neto cuidava de situar no presente, com detalhes técnicos, as tradições evocadas por ela. "Eu fiquei com medo que tivesse um choque de gerações. Mas teve foi um encontro de gerações", disse Ana Rita.

De fato, neste momento em que o café atrai cada vez mais interessados e pipocam cada vez mais especialistas, técnicas e tradições de priscas eras tornam à cena como tendências que valorizam o produto. O café coado no pano é o exemplo mais evidente. "O café entrou num processo de evolução e não de extermínio, como aconteceu com um monte de outros alimentos. Ainda bem", disse Ana Rita, que logo passou à descrição de como era feito o café no sertão. Primeiro, a torra com os grãos em uma gamela, chamada de caco, no forno a lenha. O cheiro que exalava era inebriante e o fumacê obrigava que o processo ocorresse sempre do lado fora das casas. Fato que, inexoravelmente, deixava toda a vizinhança avisada de que tinha café novo a caminho. Tinha quem já jogasse pedaços de rapadura para adoçar o grão.

Uma vez torrado, o café era estendido e pisado com pilão - "no sertão a gente fala pisado, nunca pilado", lembra Ana Rita - e depois peneirado na urupemba para virar pó. A essa altura, os vizinhos já estão chegando. Por um segundo, a sala do Hyatt virava o quintal no sertão de Ana Rita e seu dom de narrar.

Chegou para o público o café feito da primeira torra do dia. O café donzelo, como se diz no semi-árido brasileiro. Ensei Neto passou água pelo pó de café pousado sobre o pano e Ana Rita suspendeu o tecido pelas pontas, dobrou e retorceu, que nem embrulho de bala, para extrair o donzelo. "Mas tem que ser pano cozinhado em café! Passar café em pano novo, no sertão, é pecado sem perdão", vaticinou Ana Rita.

Ensei apresentou então os ingredientes dos próximos cafés: carvão e pedra. Porque se o donzelo era produzido todas as manhãs, como faziam os sertanejos que viajavam e não tinham como torrar, moer, aquecer a água na marmita? Como no sertão tudo se aproveita, a pedra da fogueira que aqueceu a noite anterior e espantou as cobras durante o sono do capiau fazia as vezes de condutor de calor. O seixo quente, pelando, recebia água e na sequência o pó do café carregado pelo sertanejo. A pedra irradiava calor até a água ferver. O café de pedra estava pronto. Ensei comentou que o método é milenar: os iemenitas, pioneiros da cultura do café no mundo, já faziam café de pedra no semi-árido do Oriente Médio. O derradeiro método exposto por Ensei e Ana Rita foi o do carvão: ainda em brasa, jogado na água com o pó, formava espuma. Estava pronto o café cabeludo.

E dá-lhe histórias e causos, palavras e hábitos do sertão de Ana Rita Suassuna. Aquela enciclopédia escondida que ela carrega podia continuar a ser folheada indefinidamente. E não há texto que traduza a riqueza de quem tem o dom de narrar.



Café cabeludo

Café donzelo

Café de pedra

Carvão vegetal
Pedra