Indicar o melhor tratamento para cada doente e analisar exames de imagem são algumas das tarefas que deverão deixar de ser exclusivas dos médicos – e dos humanos. O avanço de áreas como a inteligência artificial, a computação cognitiva e o machine learning (aprendizado de máquinas) já faz com que softwares consigam ler e cruzar informações de saúde cujo processamento seria impossível para o mais brilhante especialista. Mas para a coordenadora médica da área de Healthcare Transformation da IBM, Mariana Perroni, não se trata de substituir profissionais, mas empoderá-los. “Para um especialista se manter atualizado em tudo que é publicado na área dele, seria necessário estudar 20 horas por dia. Trabalho duro e boa intenção dos médicos já não são suficientes para garantir um cuidado eficiente de alta qualidade”, diz ela, que também é médica intensivista. Em entrevista ao Estado, a especialista destaca as principais iniciativas dessas novas tecnologias na área da saúde.
Para um especialista na área da Medicina se manter atualizado em tudo que é publicado na área dele, seria necessário estudar 167 horas por semana, ou seja mais de 20 horas por dia
Trabalho duro e boa intenção dos médicos já não são suficientes para garantir um cuidado eficiente de alta qualidade
Hoje temos uma explosão das doenças crônicas, mas envelhecer não está sendo sinônimo de viver bem. É essencial que a gente mergulhe nos dados para entender o que podemos fazer para evitar que chegue a isso" Mariana Perroni
De que forma a inteligência artificial e outras tecnologias estão sendo usadas na área da saúde?
A inteligência artificial está ajudando a gente com um enorme desafio, que é o da quantidade de dados que estão sendo gerados nessa área. Estamos entrando em uma era em que nunca estamos off line e em que geramos dados o tempo todo. Uma única pessoa é capaz de gerar mais de 300 milhões de livros cheios de dados de saúde ao longo da vida. Hoje em dia, isso dobra a cada três anos, mas, até 2020, vai dobrar a cada dois meses e meio. Só um paciente com câncer é capaz de gerar quase 1 terabyte de dados todo dia entre exames de imagem, anotações de equipe médica e multiprofissional, sinais vitais, enfim. E com os sistemas atuais de gestão de análises de dados que a gente tem, só conseguimos analisar 0,5% disso. Imagine o tanto de insights que estamos perdendo ao deixar de lado esses 99,5% de dados. A inteligência artificial tem sido usada para ajudar a gente a entender melhor a saúde das pessoas, utilizar um tratamento mais personalizado, melhorar o tratamento das doenças e a qualidade de vida e, consequentemente, até resolver mortes evitáveis.
Você poderia dar exemplos de campos em que isso já é uma realidade?
A IBM elencou algumas áreas como foco, começando com a oncologia. O Watson for Oncology é a solução da IBM que considera o desafio de que o número de casos de câncer vai aumentar em 45% até 2030. E é extremamente difícil um oncologista se manter atualizado porque há cerca de 75 mil papers de oncologia publicados todo ano. Essa solução é capaz de ler os dados dos pacientes, cruzar isso tudo com a literatura médica e elencar quais são os planos de tratamento mais adequados para o paciente. Temos usado no mundo inteiro, mas o potencial disso nas áreas carentes é mais intenso. Na Índia, por exemplo, temos um oncologista para cada 2 mil pacientes. Eles estão usando essa solução para permitir que oncologistas generalistas ou até médicos de outras especialidades comecem o tratamento para, assim, evitar que os pacientes percam muito tempo na fila. Aqui no Brasil, o primeiro hospital a utilizar é o Mãe de Deus (em Porto Alegre). Outra área importante elencada pela IBM é a genômica porque aplicar computação cognitiva e Watson a genoma e DNA de tumores é superpromissor no tratamento do câncer. Chegamos em uma solução que se chama Watson for Genomic. Ela lê todo o sequenciamento genômico de um tumor, elenca as mutações mais frequentes e relevantes, cruza isso com a literatura para achar o tratamento mais específico. Dessa forma, deixamos de tratar o câncer pelo órgão que ele começa e passamos a tratar o câncer daquele paciente, o que funciona para a mutação dele. E isso dá um tratamento extremamente personalizado. Já tem 20 centros no mundo usando essa ferramenta. E aqui no Brasil, e na América Latina, o Fleury é o primeiro a utilizar. No tratamento da diabete, a IBM tem uma parceria junto com a Medtronic, principal fabricante de bombas de insulina e monitores de glicemia. A Medtronic veio atrás da IBM e falou que queria jogar o Watson nos dados que eu tenho desses dispositivos dos pacientes que estão usando. Eles inseriram milhões de curvas de glicemia e de funcionamento de bomba insulina e colocaram a tecnologia do Watson em cima disso. Eles foram capazes de desenvolver, usando a computação cognitiva, um algoritmo capaz de prever hipoglicemia até três horas antes de ela ocorrer e isso acaba disparando mensagens para o smartphone do paciente, avisando a ele que é possível que isso aconteça e com medidas que ele pode tomar para evitar que isso ocorra.
Essa tecnologia já está em funcionamento?
Já está funcionando. É um aplicativo que chama Sugar IQ.
Está disponível no Brasil?
Existe no Brasil, sim, pois são vendidos em escala global. É que aqui as pessoas não usam tanto esses monitores, até pelo custo.
O que o paciente precisa ter nesse caso?
Tem de usar ou a bomba de insulina implantada no corpo dele ou esse monitor contínuo.
Algum outro campo que você destaca?
Podemos falar também da radiologia. A IBM se juntou com 20 centros ao redor do mundo, entre universidades e empresas, e eles estão “ensinando” o Watson a ver exames como um radiologista. Qual é o objetivo disso? Hoje em dia, os radiologistas passam 80% do tempo em um trabalho absolutamente repetitivo e 80% dos exames que eles veem estão normais. A partir do momento em que você ensina o Watson a identificar o que é um exame normal e o que é um exame alterado, você consegue tirar do radiologista essa coisa extremamente repetitiva e deixar ele focado realmente nos casos mais importantes.
Isso ainda está em desenvolvimento?
Sim. As possibilidades e os exemplos de uso dessas tecnologias são diversos, mas o denominador comum deles é que informação basicamente é poder. E o machine learning, a computação cognitiva e a inteligência artificial estão se tornando ferramentas fundamentais para empoderar os profissionais frente a esse tsunami de informação.
E o que podemos prever que essas tecnologias serão capazes de fazer daqui a anos ou décadas?
Hoje em dia baseamos a Medicina e nossas condutas naqueles ensaios clínicos, estudos que pegam amostras de pacientes. Só que esses ensaios englobam só 1% a 2% dessa população, mas a gente extrapola para toda a população e embasa todas as nossas condutas nisso. O futuro vai ser a gente ter ferramentas para tratar cada pessoa.
Com respostas mais efetivas e que consideram as particularidades de cada um?
Conseguindo minerar isso tudo, vamos cruzar dados genômicos, socioeconômicos e de comportamento e aí sim entender o que funciona para cada pessoa, em vez de manter a generalização como é feito hoje em dia.
Quando falamos do uso de grandes bases de dados pessoais e de máquinas que podem ser ensinadas e dar respostas mais precisas que humanos, sempre há um debate ético. Como você vê isso?
Inteligência artificial traz à nossa mente imagens futurísticas, de paisagem pós-apolítica, estilo Mad Max, com populações inteiras dizimadas porque confiaram em um robô ou em um ciborgue. Mas ainda bem que isso fica limitado às telas dos computadores e aos livros. IBM, Microsoft e Amazon, por exemplo, fundaram uma iniciativa para discutir as melhores práticas da inteligência artificial, de forma a garantir que ela seja benéfica para a humanidade. Especificamente na saúde, acredito que essa discussão vá mudar de rumo. O que é ético? É ter ferramentas que permitam que o médico se embase em toda a informação disponível no momento em que vai tomar a decisão para o paciente, ao invés de contar apenas com o que seu cérebro lembra. Sabemos que o volume de conhecimento já superou a capacidade do médico mais brilhante de se manter atualizado. Temos informações de que, para um especialista se manter atualizado em tudo que é publicado na área dele, seria necessário estudar 167 horas por semana, mais do que 20 horas por dia. O que eu acho é que trabalho duro e boa intenção dos médicos já não são suficientes para garantir um cuidado eficiente de alta qualidade. Pode parecer irônico, mas em um mundo em que a quantidade de dados a ser considerada para cuidar direito de um paciente já ultrapassa a capacidade de processamento que temos no cérebro, é justamente a tecnologia que começa a despontar como um grande aliado para ajudar a gente a cumprir o mandamento mais humano que é o do juramento de Hipócrates, que é o de não causar dano.
Mas e quanto à privacidade dos dados?
No Watson todos os dados são desidentificados, usamos só a informação de saúde mesmo. Mas, na minha visão, a saúde se beneficiaria muito de um modelo de cloudsourcing, mais ou menos análogo ao que temos no Waze: abrimos mão da privacidade do nosso trajeto por um trânsito melhor. Em um mundo ideal, todo mundo compartilharia as informações de saúde para a gente entender melhor o que funciona para cada pessoa, em cada bairro, em cada cidade e para cada país. Dessa forma tratamos as pessoas de forma mais efetiva e personalizada.
A computação cognitiva também pode ajudar a definir o custo-benefício de tratamentos caríssimos, mas que prolongam a vida por pouco tempo e, muitas vezes, sem qualidade?
Eu sou médica intensivista. Vejo que temos tecnologia para prolongar a vida das pessoas e, até por não lidarmos bem com a morte, a utilizamos para prolongar o que não se traduz em um aumento em qualidade de vida. A partir do momento em que usamos os dados para entender melhor como tratar as doenças e o que as causa, conseguimos evitar que isso aconteça. Hoje temos uma explosão das doenças crônicas, mas envelhecer não está sendo sinônimo de viver bem. É essencial que a gente mergulhe nos dados para entender o que podemos fazer para evitar que chegue a isso.