Diagnosticado com linfoma de Hodgkin há um ano, o universitário Guilherme Augusto Andrade di Stasio, de 22 anos, passou por três tipos de quimioterapia, além de uma sessão de radioterapia, para tentar conter o avanço do câncer, sem sucesso.
Os médicos, então, indicaram como única alternativa para o jovem um medicamento inovador ainda não disponível na rede pública, cujo custo chega a R$ 80 mil por mês. A família do paciente entrou na Justiça contra o SUS e teve decisão favorável. Mais de um mês depois da sentença, porém, o jovem segue sem acesso ao tratamento.
Casos como o de Guilherme têm se tornado cada vez mais comuns com o crescimento da judicialização na saúde. Se antes somente os pacientes que processavam o governo tinham acesso aos melhores tratamentos, hoje nem os que têm as demandas acolhidas pela Justiça têm a garantia de que receberão a terapia pedida. “Já soube de mais de 25 casos de decisões judiciais não cumpridas espalhadas pelo País”, diz Valéria Baraccat Gyy, fundadora do Instituto Arte de Viver Bem, ONG que dá apoio a pacientes com câncer.
Pai de Guilherme, o corretor de imóveis Renaldo di Stasio Filho, de 49 anos, diz que o baixo valor da multa imposta na sentença pode estimular o descumprimento da decisão. “O juiz definiu uma multa de R$ 500 por dia de descumprimento, mas é capaz de o governo preferir pagar a multa do que arcar com o tratamento. Enquanto isso, a gente vê o filho precisar de um remédio sem poder fazer nada”, desabafa ele, que entrou com ação tanto contra o Ministério da Saúde quanto contra a Secretaria da Saúde do Rio, onde a família mora.
A aposentada Deolinda Morcina Leme da Cunha, de 65 anos, viveu drama parecido. Com câncer renal, ela entrou com ação na Justiça após a Secretaria da Saúde de São Paulo deixar de entregar o medicamento que ela tomava. Teve decisão favorável na qual o juiz dava cinco dias para a entrega do remédio, mas recebeu o produto quase um mês depois, sem garantia de que ele será entregue no próximo mês. “A funcionária da secretaria já avisou que não é porque a gente tem liminar que o remédio não pode faltar”, conta a filha da paciente, a funcionária pública Cibele Leme Amorim, de 42 anos.
Para a presidente do Instituto Oncoguia, Luciana Holtz, a situação mostra que é necessário que o governo repense o modelo de incorporação de novas tecnologias. “O Ministério da Saúde deveria pensar em uma estratégia, chamar o fabricante e tentar negociar preço. Não dá para ficar apagando incêndio com liminares apenas.”
Questionado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que, em sete anos, desembolsou cerca de R$ 4,5 bilhões para atender a determinações judiciais para a compra de medicamentos, dietas, suplementos alimentares e depósitos judiciais – um incremento de 1.010% entre 2010 e 2016.
Sobre o caso de Guilherme, a pasta afirmou que já está em contato com o governo do Rio para checar o cumprimento da demanda para não haver duplicidade. Disse ainda ter o prazo legal de 180 dias para finalizar a licitação da compra do remédio. Já a Secretaria da Saúde do Rio afirmou que o processo de aquisição do medicamento está em andamento.
Quando a pessoa vê pouca viabilidade prática, se reduz a quantidade de ações. Muitas vezes vemos uma mesma demanda judicializada em vários lugares" Paulo de Tarso Sanseverino, MINISTRO DO STJ, NO SUMMIT
Muitas vezes o magistrado está convencido de que está salvando uma vida, mas trata-se de um medicamento que não tem nenhuma comprovação científica” Arnaldo Hossepian, FÓRUM DA SAÚDE NO CNJ
A judicialização foi responsável pelo avanço de várias políticas públicas, casos como o da aids e o da hepatite demonstram que ações que na época eram tidas como anomalias se transformaram em diretriz clínica” Mário Scheffer, PROFESSOR DA USP
Não defendemos redução de coberturas, mas uma revisão desses produtos com um cuidado direcionado, uma assistência coordenada onde outros fatores de regulação vão merecer integrar a discussão” Solange Palheiro, PRESIDENTE DA FENASAÚDE
Se a judicialização continuar crescendo, existe o risco de se criar duas filas por tratamento. E os pacientes mais simples têm mais dificuldades para acessar a Justiça” Luciana Holtz, INSTITUTO ONCOGUIA
Vivemos em um País onde nem decisão judicial está sendo respeitada” Reinaldo di Stasio Filho, PAI DO PACIENTE GUILHERME
Transplante no exterior custa R$ 22 mi ao SUS
O complexo transplante de múltiplos órgãos, indicado para crianças nascidas com síndromes raras e feito apenas fora do País, já custou ao Ministério da Saúde nos últimos três anos cerca de R$ 22 milhões. Todos os procedimentos foram feitos após as famílias entrarem na Justiça contra o SUS.
O procedimento ganhou destaque com o caso da menina Sofia Lacerda, que tinha a síndrome de Berdon, deficiência no sistema digestivo que impede a alimentação. Para sobreviver, ela precisava receber estômago, fígado, pâncreas e intestino delgado e grosso novos.
Sofia foi operada nos Estados Unidos em abril de 2015. O transplante foi bem-sucedido, mas ela morreu por uma infecção cinco meses depois.
Diagnosticado com a mesma doença, Samuel Soares dos Santos, de 1 ano e 8 meses, aguarda o cumprimento da decisão judicial que autorizou sua remoção para Miami para a realização da cirurgia. “A decisão saiu no dia 21 de julho, mas ainda estamos esperando a União se manifestar”, conta o pai do bebê, o carpinteiro José Gomes Soares, de 26 anos.
Em abril, ele chegou a ficar acorrentado por mais de 15 dias ao corrimão de uma escadaria do prédio da Justiça Federal na Avenida Paulista, região central de São Paulo, em protesto contra a dificuldade de acesso ao tratamento do filho. / F.C
Banco de pareceres deve guiar Judiciário
Juízes avaliando disputas judiciais entre beneficiários de planos de saúde e operadoras deverão contar com ajuda de médicos independentes. Um projeto do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que deve ser implementado ainda este ano em tribunais brasileiros quer capacitar equipes técnicas e construir um banco de dados para ajudar magistrados quando operadoras se negam a cobrir algum tratamento.
Um banco de dados com 52 pareceres sobre as questões de saúde mais recorrentes em processos judiciais está sendo montado, conforme informou o supervisor do Fórum da Saúde no Conselho Nacional de Justiça, Arnaldo Hossepian, em um dos painéis do Summit. A iniciativa criou ainda a possibilidade de oferecimento de cursos a distância para capacitação do núcleo técnico de tribunais e dos próprios magistrados. De acordo com ele, 65 magistrados apenas no Estado de São Paulo já manifestaram interesse.
A consulta a médicos independentes é vista como uma forma de dar base a decisões judiciais que normalmente são tomadas em prazo bastante curto, conforme afirmou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo de Tarso Sanseverino. O objetivo é evitar fraudes que visem, por exemplo, a obrigar empresas ou mesmo o setor público a adquirir medicamentos sem eficácia.
“Há o médico do paciente que requisita o tratamento e há o médico da operadora. Essa seria uma terceira opinião, algo muito importante pra limitar a concessão de liminares”, disse Sanseverino. “É uma possibilidade de o magistrado ter um corpo técnico atualizado, combatendo máfias que usam o Judiciário de forma a sangrar os cofres públicos”, completou Hossepian.
Crítico. O professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, Mário Scheffer, avaliou que a regulação do setor de saúde suplementar possui carências que têm levado a um aumento de processos judiciais. Para o especialista, há processos judiciais com efeitos positivos na cadeia de saúde. “A judicialização foi responsável pelo avanço de várias políticas públicas, casos como o da aids e da hepatite demonstram que ações que na época eram tidas como anomalias se transformaram em diretriz clínica”, comentou.
Já Solange Palheiro, presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), que representa as empresas, ressaltou que as decisões judiciais precisam “garantir o cumprimento de contratos”. “Não defendemos redução de coberturas, defendemos uma revisão desses produtos com um cuidado direcionado, uma assistência coordenada onde outros fatores de regulação vão merecer integrar a discussão de um produto.”
Hoje estamos desconectados. O paciente é enxergado em cada ponto do sistema como pessoa única. Precisamos fazer a integração” Nicolas Toth, PRESIDENTE DA HEALTHWAYS BRASIL
Talvez seja possível, no futuro, se criar um RG do tumor para cada fase de desenvolvimento”
Com o Big Data, vamos tratar melhor e curar mais gente, além de sermos mais inteligentes e evitar tratamentos desnecessários” Fernando Maluf, MÉDICO ONCOLOGISTA E PRESIDENTE DO INSTITUTO VENCER O CÂNCER
É muito difícil garantir a privacidade, pois o DNA está por todos os lados. Se eu tomei água em um copo e alguém quiser saber meus genes, é só pegar o copo. Os pacientes gostariam de saber que genes podem determinar doenças cardíacas de alto custo. As seguradoras, por outro lado, queriam ter esses dados porque, se souberem de antemão, gostariam de cobrar um seguro muito mais alto se houver esses genes de risco” Mayana Zatz, PROFESSORA DE GENÉTICA DA USP
Até a década de 1980, nenhum medicamento contra o câncer nos EUA custava mais de US$ 200. Desde 2008, nenhum remédio do tipo é lançado por menos de US$ 10 mil" Ryad Younes, DIRETOR-GERAL DO CENTRO DE ONCOLOGIA DO HOSPITAL ALEMÃO OSWALDO CRUZ
É preciso oferecer não só o produto, mas um serviço completo, que não possa ser imitado” Francesco Fazio, SÓCIO DIRETOR DA DOBLIN