Julio Maria
Nana Caymmi lutou contra
o mundo para ser Nana Caymmi.
Casou menina, mudou-se para
a Venezuela, teve três filhos,
descasou, e enfrentou todo o
peso de um universo machista
que começava sob os cabelos
brancos do pai. Não há centenário
de Dorival que a faça mais
complacente com a própria história.
Nana é impetuosa quando lembra da mãe, Dona Stella: “Ela influenciou meu pai negativamente. Foi um horror. Não queria que eu cantasse.” E não perdoa o pai pela omissão: “Ele não queria brigar em casa, preferia ficar calado.” O amor de Nana existe. Esconde-se às vezes nas entrelinhas de um passado no qual ela matava dois leões por dia para sobreviver. Mas existe.
Acalanto. Nana
com o pai Dorival em estúdio da Odeon, em 1960.
Barulho. Qualquer tipo de barulho. Nossa casa tinha de ser silenciosa. Nada de bateção de panela de empregada, rádio ligado, gente falando alto.
Também. E ele não queria ouvir música fora do trabalho. Ele era um homem de inspiração, nunca vi meu pai batucando no violão para ver se saía alguma música. Não, ela já estava lá e vinha no trem, no bonde, no avião, no carro. Mamãe custou a perceber que música incomodava ele quando ele não estava trabalhando.
(Nana interrompe) Era um mundo de machistas. Irmãos machistas, pai machista e mulher feita pra casar. Era essa a mentalidade. E mamãe passava isso para o papai, a influência dela sobre ele foi terrível. Quando me separei (do médico Gilberto José Aponte Paoli, com quem Nana foi viver na Venezuela), ele se recusou a aceitar, porque mulher tinha de viver com o marido até morrer. E havia um agravante: Caymmi era filho de pais separados, e isso pesou. Ele ficou sem falar comigo e eu fiquei sem falar com ele por seis anos.
Ele me chamou para eu cantar Acalanto com ele e Roberto Carlos em um programa de televisão, no aniversário da Tupi. Eu levei um susto, mas fui. Ele sabia quem eu era, sabia do meu caráter, e sabia que havia feito uma sacanagem comigo. Acredito que a bebida e a crise dos 50 anos influenciou muito este período. Foi uma corrente que desencadeou esse drama todo..
Eu não queria ser cantora, eu só queria cantar. Não tinha opinião formada sobre isso, tanto que me casei achando que meu casamento iria dar certo. Mas foi tudo errado na Venezuela, me assustei, minha cabeça era muito infantil, fui criada com pai, mãe e umas 200 empregadas. Eu não saía sozinha, era uma menina de família. Quando voltei (em 1966), que Dori me salvou dando Saveiros para eu cantar, eu estava com a cabeça virada.
Fiquei com o Gil quase três anos e meu pai o adorava. Mas mamãe, não. Ela não suportava o fato de eu estar com ele, não suportava nada que me ligasse à música e à minha independência. Não sei qual era o problema dela, devia ser caso de psicanálise. Ela era uma cantora frustrada que parou de cantar quando o Dori nasceu. Talvez isso tenha trazido consequências graves para a vida dela.
Foi minha mãe quem me disse: ‘Eu tentei muito modificar sua vida, não foi Nana?’ E eu respondi: ‘Foi sim, mamãe’. Ela sabia que havia tomado decisões erradas. Naquela época, você casava as filhas para sair de um problema, mas a realidade não era bem assim.
Ele foi omisso o tempo todo. Não se manifestou, porque sabia que seria guerra com a mamãe. E ele era o primeiro a fugir de qualquer confronto.
O Dori sempre me deu muita força. O Danilo ficou na dele, mas o Dori era como eu, já tinha a vida dele. Olha, o Dori estava me ajudando financeiramente. Ele sabia que eu estava mal e resolveu me tirar do buraco, me dando oportunidades que ninguém havia me dado quando me ofereceu Saveiros para eu cantar no festival (Nana ganhou com esta música o I Festival Internacional da Canção no Maracanãzinho, em 1966). Aliás, papai havia me ajudado quando me levou para cantar Acalanto. Se fosse na onda de papai, estaria já... imagina, se ele tivesse autonomia sobre mim, eu teria feito tudo diferente, não teria me casado cedo, mas era a mamãe quem comandava o espetáculo. Era mais fácil para ele não se intrometer na educação da casa.
Eu mudaria o meu casamento, não tenho dúvida. Imagina uma moça conhecer um rapaz aos 15 anos. Mas eu fui um problema, do jeito que eu cantava... Era algo visível aos amigos todos, Aloysio de Oliveira, maestro Gaya, Leo Peracchi, Radamés Gnatalli. Eles sabiam do meu talento. Se eu tivesse levado aquilo adiante, muitas coisas teriam sido evitadas.
A palavra não é tempo. Eu teria evitado sofrimento, isso sim, Eu não teria alimentado uma fantasia com o casamento pelo qual passei.
É, tudo isso só sai na música, é minha única válvula de escape. Sobretudo nas músicas que me trazem esse passado de volta.
Ele ajuda profundamente. Eu nunca vi um (artista talentoso) feliz. Atrás de um grande astro tem sempre a família desajustada, uma mãe, um parente doente, um irmão que não dá certo.
Se eu pudesse, escolheria uma vida normal e anônima com música, não teria o menor problema. Eu não queria ser famosa, queria era dinheiro, queria sustentar meus filhos. Meu marido não mandou nenhum dinheiro para os filhos, fiquei 45 anos sem pensão alimentícia para o João Gilberto (um de seus três filhos, batizado assim em homenagem ao compositor baiano). Eu ia sustentar um advogado na Venezuela com que dinheiro?
Sim, gravei algumas canções dele naquela época, mas a Elis Regina era a pessoa que todos (os compositores) almejavam, e ele estava procurando se encontrar também
Não, e eu não conheço ninguém que tenha batido boca com a Elis. As mulheres saíam de perto e os homens, que dependiam dela para gravar suas músicas ou tocar, ficavam ali, grudados no r... dela.
Eu fui mulher do Gil, mas nunca entendi a Tropicália e nem quero entender. O Caetano Veloso se ressente um pouco quando eu digo isso e o Gil fica me olhando assim com um olhar estranho. Eu não vim do interior, não era nordestina, não tinha que firmar nada. Só tinha que cantar. Vou querer mudar o mundo? Eles não tinham merda nenhuma e queriam mudar o mundo?
Você acha que teve? Sério, estou perguntando porque não sei mesmo. Você acha que teve? A mim não tocou nada, o que me tocou foi o bossa nova. Agora, meia dúzia de intelectuais de outros estados... Primeiro que eu não entendia Luiz Gonzaga, pô. Eu era uma menina do Rio de Janeiro.
Claro que sim, gosto, conheci o próprio. Mas depois também conheci o Gonzaguinha. E se colocarem um ao lado do outro, me pergunte pra onde é que eu vou?
Claro, pô. Questão de geração. Agora, como é que eu vou entender isso: “Que braseiro, que fornalha, nem um pé de plantação, por falta d’água, perdi meu gado, morreu de sede, meu alazão.” Isso para mim é uma história da carochinha assustadora. Eu não tinha essa vivência. Como melodia? Maravilhosa. Mas como letra? Eu não entendia. E eu vou me condenar por isso, porque o Brasil é imenso? Não, vá à merda. Como também não saio chorando por causa de Adoniran Barbosa nenhum.