PCC 10 anos

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O poder furioso


Felipe Resk Texto
Transferência de Marcola após
descoberta de interceptações
telefônicas levou SP ao caos

No dia 11 de maio de 2006, o governo de São Paulo anunciou que ligações interceptadas de membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) revelavam um plano para realizar rebeliões no fim de semana seguinte, durante o Dia das Mães. Para desarticular o grupo, 765 presos ligados à facção, incluindo o líder máximo, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, foram transferidos para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, de segurança máxima.

Marcola e outros líderes do PCC foram trazidos ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), na capital, para prestar depoimento no dia seguinte. Chegaram com as mãos e os pés algemados. “Não vai ficar barato”, disse o chefe da facção no órgão especializado. A onda de violência começou minutos depois. Foram vários atentados simultâneos, com uma série de rebeliões em presídios de todo o Estado e ataques a tiros contra postos policiais, viaturas e delegacias.

“Foi o momento mais terrível pelo qual passamos”, lembra Daniel Grandolfo, presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do Estado de São Paulo (Sindasp). Em meio às rebeliões, carcereiros ficaram nas mãos de criminosos presos e muitos foram feitos reféns. “Chegou ao ponto de sortearem quem ia matar os agentes, cortar a cabeça. Foram espancados e torturados pelos presos.”

Homens encapuzados atiraram contra quatro jovens que jogavam bilhar em bar no Jardim São Jorge, zona sul, no dia 19 de maio. Um morreu no local. SEBASTIÃO MOREIRA/ESTADÃO

O estudo São Paulo Sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006, feito pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Harvard em parceria com a ONG Justiça Global, aponta achaques abusivos de policiais a criminosos paulistas como um dos principais motivos para os ataques. Um ano antes, em 2005, por exemplo, o enteado de Marcola foi sequestrado por policiais civis de Suzano, na Grande São Paulo, e só foi solto após o pagamento de resgate de R$ 300 mil.

Durante os atentados, integrantes do PCC incendiaram ônibus e ruas movimentadas da capital ficaram desertas em horários de pico. Inicialmente, os ataques contra forças de segurança se concentravam na Grande São Paulo, mas havia também registros no interior e litoral. “Todos foram pegos de surpresa. Quando a gente viu o que estava acontecendo, já havia acontecido tudo”, diz a advogada Ariana Alves Rosa, de 32 anos, ex-cabo da Polícia Militar, que estava na ativa na época.

Um dos seus parceiros de batalhão, o soldado Anderson Andrade, de 26 anos, morreu atingido por um disparo no tórax em Santo André, no ABC paulista, no dia 14 de maio, o mais sangrento da série. Criminosos abriram fogo contra sua viatura. “Foi muito triste, ele era muito jovem, o único homem da família”, conta.

Guerra. O clima de guerra havia tomado São Paulo. Estabelecimentos comerciais e repartições públicas fecharam as portas. Uma ameaça de bomba interditou o Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Todo o efetivo policial foi convocado para reforço de patrulhamento já no segundo dia dos ataques, quando 17 pessoas acabaram presas. Folgas e férias foram canceladas. Após a reação da polícia, surgiram notícias sobre a morte de diversos “suspeitos”. Grupos formados por homens “encapuzados”, em motocicletas ou veículos de vidros escuros, também começaram a espalhar o medo e a executar pessoas.

“O Estado perdeu completamente o pulso. Nós tivemos, sim, a iniciativa, não sob coordenação do governo, de ir para cima dos marginais e das situações”, afirma o deputado federal Major Olímpio (SD-SP), que estava na ativa em 2006 e hoje avalia que pode ter havido, em alguns casos, “exageros de conduta” ou “desvios criminosos” de policiais. “Nos sentimos traídos, porque o Estado tinha informações (sobre ataques do PCC), mas não fomos avisados de nada. Poderíamos ter evitado muitas mortes.”

Ataques de maio de 2006

Número de mortos em ataques entre 12 e 21 de maio de 2006

Estatísticas. Dados da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo apontam a execução de 24 PMs, oito policiais civis, sete agentes penitenciários e três guardas municipais, entre os dias 12 e 21 de maio. A maior parte deles estava fora de serviço no momento do crime. Nesse período, o número de civis assassinados foi mais de dez vezes maior: 451. Desses, 79 morreram em supostos confrontos com a polícia – em um total de 48 ações registradas como “resistência seguida de morte”.

Outras 89 pessoas foram assassinadas durante 54 ocorrências com indícios de participação de grupos de extermínio. Entre os casos, há sete chacinas e a execução de uma grávida de nove meses. As câmaras de refrigeração do IML não davam conta de todos os cadáveres. Amontoados por corredores, os corpos haviam sido atingidos por uma média superior a quatro tiros.

Mortes de civis

Vítimas com indícios de execução ou mortos em supostos confrontos policiais

De acordo com o estudo de Harvard e da ONG Justiça Global, as investigações também tiveram resultados desiguais. O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) esclareceu total ou parcialmente 12 de 14 casos (85,7%) de assassinatos de agentes públicos. Por sua vez, para crimes com suspeita da ação de grupos de extermínio contra civis, foram apenas quatro de 31 ocorrências (12,9%).

Análise:
As execuções e até uma doutrina de ‘guerra’

Ignacio Cano*

Cumprem-se agora dez anos das mortes de maio em São Paulo, que começaram com ataques contra agentes de segurança pública e continuaram com uma dramática elevação dos homicídios nos dias subsequentes e com a presença de matadores encapuzados. Embora o padrão fosse claramente compatível com uma retaliação dos agentes públicos, agindo tanto oficialmente quanto extraoficialmente na forma de grupos de extermínio, as investigações pouco avançaram nesse tempo.

De alguma forma, as mortes de maio exemplificam, de forma concentrada, o problema mais amplo do uso excessivo da força letal pelas polícias no Brasil, que provocou a morte de mais de 3 mil pessoas no País em 2014.

As razões desse abuso da força são diversas e incluem uma doutrina de “guerra” em algumas Polícias Militares, a fragilidade da fiscalização interna, sérias deficiências nas investigações desses casos conduzidas pela Polícia Civil e por parte dos Ministérios Públicos, o estresse sofrido pelos próprios policiais, as deficiências em seu treinamento e a existência de amplos setores da opinião pública que sustentam a demanda por uma política de extermínio encarnada no bordão “bandido bom é bandido morto”.

Um dos cenários em que o problema se manifesta é o da vingança pela morte ou pelo ataque a membros das corporações policiais. Em diversos Estados do País, são frequentes as notícias de mortes de policiais seguidas imediatamente pela morte de criminosos, supostamente responsáveis pelos ataques iniciais. Até mesmo, é comum que a PM, cujo mandato não inclui a investigação criminal, realize operações para encontrar os responsáveis pelo homicídio de seus colegas, sem que ninguém ache isso estranho. De fato, as polícias mais avançadas do mundo impedem aos colegas dos policiais atingidos de continuarem nas operações, justamente para evitar que a emoção contamine sua atuação.

O poder público deve aos agentes públicos e à sociedade medidas para proteger os policiais dos riscos que sofrem. A licença para se vingar não é, certamente, uma dessas medidas. Na verdade, os policiais que executam suspeitos estão colocando seus próprios companheiros em perigo, pois desencadeiam ciclos de vingança recíproca que São Paulo conhece muito bem.

* É PROFESSOR DA UERJ E MEMBRO DO LABORATÓRIO DE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA