Os ataques promovidos pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e a retaliação subsequente de forças policiais e de grupos de extermínio, há exatos dez anos, tiraram de Paulo Alexandre Gomes o direito de morrer. Negro e morador da periferia, o jovem de 23 anos é uma das vítimas da maior crise de segurança pública de São Paulo – mas não integra nenhuma estatística de homicídio da época. O motivo é que o corpo nunca foi encontrado. Paulinho, como era chamado pela família, é um dos quatro desaparecidos de maio de 2006.
Ninguém sabe dizer ao certo o que aconteceu na noite de 16 de maio, quando Paulinho foi visto pela última vez. “Ele saiu para namorar e nunca mais voltou”, diz a mãe, Maria das Graças Gomes, dona de casa de 68 anos. “A gente passou a noite esperando, e ele não apareceu. No outro dia, ficamos até de tarde. Então começamos a procurar em hospitais, IML, em todos os lugares. Nunca conseguimos nada.”
Parentes dizem acreditar que o jovem foi morto e teve o cadáver ocultado após uma abordagem policial em Itaquera, na zona leste da capital, onde os pais moram até hoje. Uma testemunha contou ter visto Paulo ser detido por PMs da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), antes de sumir. A versão nunca foi confirmada oficialmente e as investigações acabaram arquivadas. “O que a gente tem é saudade e a esperança de saber o que aconteceu. Mas quem vai falar?”, pergunta Maria das Graças.
Em resposta à onda de violência contra agentes do Estado, a polícia passou a fazer uso excessivo da força, enquanto “encapuzados” atuavam com toques de recolher e execuções. O saldo da barbárie entre 12 e 21 de maio foi o assassinato de 59 agentes de segurança e 505 civis por arma de fogo, segundo o Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Número que não inclui os quatro desaparecidos: dois na capital e os outros em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Balanço de vítimas de arma de fogo no Estado de São Paulo entre os dias 12 e 21, quando o PCC atacou forças de segurança
Grupos de extermínio estavam à caça de pessoas com passagem pela polícia ou suspeitas de integrar o PCC. Em meio ao terror, houve queimas de arquivo, assassinatos de testemunhas e de inocentes. Não ter ficha criminal não garantia segurança: 94% das vítimas não tinham antecedentes. A maioria dos mortos era homem (96%), jovem, branco e pobre.
Cumprindo liberdade condicional por furto e porte de arma, Paulinho sabia que corria perigo. “Um dia antes de desaparecer, ele falou para minha filha: ‘Olha, mana, eu nem vou sair de casa porque os homens estão com os olhos pegando fogo de raiva’”, conta o pai, Francisco Gomes, de 70 anos. Descrito como “irrequieto”, o jovem mudou de ideia na noite seguinte. Avisou que ia visitar a namorada e saiu por volta das 21 horas.
“Em vez de ir para a casa da namorada, ele encontrou uns colegas no bairro”, conta Gomes. Por volta das 23 horas, Paulinho foi visto em um bar, jogando cartas. Resolveu ir com um amigo até uma biqueira, um ponto de venda de drogas, perto de onde estavam. Os dois teriam sido abordados no percurso. Segundo testemunhas, o amigo foi agredido antes de conseguir fugir. “Dizem que meu filho foi posto no camburão e desapareceu”, conta o pai. À época, a Corregedoria da PM afirmou que nenhuma viatura da Rota esteve na região. “Esperança não existe mais. A gente fica naquela dúvida se morreu ou não morreu porque não viu o corpo.”
Paulinho não seria a primeira ausência forçada para a família. Uma das filhas do casal, Juliana, foi assassinada aos 17 anos com uma pancada na cabeça, em 1998. “Pelo menos a gente sabe que está enterrada. E o Paulinho, não. Não sabemos de nada, não tem explicação”, diz Maria das Graças. “Acho que Deus resolveu tomar conta, e eu não sei onde ele está. Um dia eu vou saber. Não sei que horas, que minuto, mas eu vou saber”, afirma. “Todos nós temos uma missão aqui na Terra. A minha foi ter tido três filhos – e dois seriam crucificados pela violência.”
Pesquisa. Francilene Gomes Fernandes, de 36 anos, é a filha que sobrou. Após a morte da irmã e o desaparecimento do irmão, ela decidiu fazer mestrado em Serviço Social e escreveu a dissertação Barbárie e Direitos Humanos: As Execuções Sumárias e Desaparecimentos Forçados em Maio (2006) em São Paulo, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ela acabou abraçando a causa para defender outras pessoas. Eu me agarrei a isso. Ameniza a saudade e a dor”, diz Maria das Graças.
No estudo, Francilene aponta que testemunhas teriam presenciado a detenção por PMs da Força Tática ou da Rota nos quatro casos de desaparecimento. Eram negros ou pardos e nenhum deles concluiu o ensino fundamental. Três tinham passagem pela polícia. Todos moravam na periferia. As famílias também relatam ter ouvido em delegacias insinuações de que eles eram vinculados ao PCC.
O primeiro caso aconteceu em Parelheiros, no extremo da zona sul da capital, onde Ronaldo Procópio Alves, de 30 anos, que estava em liberdade provisória, sumiu no dia 13 de maio. Foi visto ao ser levado vivo por policiais da Força Tática, mas a família não soube mais de seu paradeiro. No dia seguinte, dois guardadores de carro, Diego Augusto Sant’Anna, de 15 anos, e Everton dos Santos Pereira, de 24, desapareceram em Guarulhos, após serem detidos em uma viatura não identificada.
Das denúncias de desaparecimento feitas em maio de 2006, o único corpo localizado foi o do adolescente Maycon Carlos Silva Santos. Testemunhas disseram que ele entrou em uma viatura da Força Tática no dia 15, na Casa Verde, zona norte de São Paulo, depois sumiu. Foi localizado no dia seguinte e o corpo apresentava marcas de tiros. O caso passou a integrar os de autoria desconhecida.
Sobre os desaparecidos, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informa, por meio de nota, que foram instaurados três inquéritos pela 2ª Delegacia de Proteção à Pessoa do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). “As buscas continuam para localizá-los e as queixas permanecem ativas no banco de dados da Polícia Civil.”