‘Quando a gente perde um filho, os outros perdem uma mãe’
É com indignação e tristeza que a manicure Vera Lúcia dos Santos, de 60 anos, lembra do assassinato da filha, vítima de homens encapuzados em maio de 2006. “Quando a gente perde um filho, os outros filhos perdem uma mãe. Tudo que você leva uma vida inteira para construir, eles destroem em dois segundos. E ninguém pagou por isso até hoje.” Ana Paula Santos, de 20 anos, estava grávida de 9 meses e foi baleada na cabeça. Os criminosos ainda atirariam na barriga dela.
Passando pela segunda gestação, Ana Paula saiu de casa por volta das 19h30 para tomar uma vitamina de fruta em uma padaria de Santos, no litoral. Era 15 de maio, véspera de dar à luz. Ela havia ficado o dia em casa arrumando a mala da criança e se preparando para ir para a maternidade. A criança tinha nome: ia se chamar Bianca.
Ana Paula saiu acompanhada do marido, Eddie Joey Oliveira, de 22 anos, e outras duas pessoas. “Eles andaram um tempo, com um carro preto seguindo. Quando chegou atrás da panificadora, eles já saíram atirando”, conta Vera. Eram quatro encapuzados. Um tiro atingiu Oliveira na perna. “Foram dar o segundo tiro, mas Ana Paula entrou na frente, foi atingida no braço e caiu.”
De acordo com testemunhas, Ana Paula foi erguida do chão pelo criminoso. “Disseram que ela arrancou o capuz dele na hora que levantou”, afirma a mãe da vítima. Segundo Vera, a filha reconheceu que os algozes eram policiais militares. “Meu genro discutiu com ele, pediu para deixarem ela ir embora, por causa da gravidez”, conta. “Simplesmente, ele apertou o gatilho e falou: ‘Estava’.” “O primeiro tiro foi na cabeça. Ela morreu na hora. Por último, deu um tiro na barriga dela, dizendo que ‘filho de bandido, bandido era’.” O bebê também morreu.
Em seguida, Oliveira foi atingido por oito disparos pelas costas. As outras testemunhas conseguiram fugir. A manicure conta que, quando chegou ao local do crime, cerca de cinco minutos depois, a área já estava cercada por cerca de 15 viaturas da PM, mas os corpos haviam sido levados.
Um frentista, que relatou a ela o acontecido, morreu no dia seguinte, com um tiro na cabeça. “No velório, atravessou uma viatura e os policiais perguntaram nome e endereço de quem entrava e saía”, diz. Segundo ela, os assassinos permanecem trabalhando como policiais na região. “Eles continuam por aí. Já encontrei com eles várias vezes, mas não tenho medo. O que eles podiam me fazer de mal já fizeram.”
‘Sorte’. Também nesse dia, Wagner Lins dos Santos, de 22 anos, foi morto com seis tiros enquanto voltava para casa de bicicleta com um primo. “Encapuzados de moto pegaram os dois, mas meu sobrinho, graças a Deus, teve sorte. Só sofreu sequelas psicológicas”, relata a cabeleireira Maria Sônia Lins, de 56 anos. “Ele não fala do assunto de jeito nenhum. Até hoje, fica agitado quando vê muito policial junto.”
Antes de assassinar o jovem, os “encapuzados” atacaram outras duas pessoas. “Eles ouviram os tiros e pensaram em voltar, mas já estavam em cima deles”, afirma Maria Sônia. “Até hoje eu não sei onde está a bicicleta dele nem a do primo.”
Ela conta que os quatro baleados foram levados de ambulância menos de dez minutos depois do crime, mas o filho foi separado das outras vítimas por uma cortina. “Ele foi o único fatal. Morreu na hora porque atiraram no coração dele.”
Horas antes, a família havia ouvido comentários sobre toque de recolher. Maria Sônia pediu para Santos não sair, mas ele resolveu jantar na casa de uma irmã. “O que você está fazendo na rua?”, ela perguntou ao filho, em um telefonema à tarde. “Está certo, dona Maria, estou indo para casa”, brincou. “Foi a última vez que falei com ele. Antes das 22 horas, já estava morto.”
Com 1,97 metro de altura, Santos não cabia nos poucos caixões disponíveis na cidade e a funerária precisou fabricar um às pressas. “Você não tem ideia da dor de ver o filho entrar na sala do velório”, diz Maria Sônia. “Parece que eu nasci e morri naquele dia. Desde então, todo dia é o mesmo. Pode passar anos, mas a dor não sai do peito, não melhora. Você consegue conviver, mas não melhora.”
Sem lembranças. Para a cozinheira Edinalva Santos, de 57 anos, não sobraram nem as fotografias do filho, que, guardadas em uma caixa, estragaram durante uma enchente de verão. Aos 26 anos, Marcos Rebello Filho foi assassinado com nove tiros. “Pegou na cabeça, no coração, no peito e nas pernas, porque ele tentou correr.” Ele morreu na noite de 14 de maio, no Dia das Mães.
No dia do crime, Rebello estava jogando videogame com amigos em um bar de Santos, segundo relatam os parentes. Membros de um grupo de extermínio chegaram ao local e chamaram as vítimas pelos nomes, antes de atirar. Três jovens foram alvejados. “Eles estavam de carro preto. Não estavam de carro de polícia, não estavam fardados, mas todo mundo reconheceu pelo corte do cabelo. Era tudo policial”, diz Edinalva.
A mãe lamenta a falta de punição para os assassinos do filho. “Ficou por isso mesmo. São dez anos agora e continua a mesma coisa”, diz. Segundo ela, a polícia também tentou criminalizar o jovem. “A explicação que deram foi que eles assaltaram um policial e fizeram ele urinar nas calças. É mentira. Meu filho era do trabalho para casa, nem armado andava.”
Edinalva conta que, ao longo dos anos, sofreu ameaças de policiais e chegou a ser presa após plantarem maconha e cocaína no bar onde ela trabalha. “Passei oito dias lá dentro. Infernal. Não conseguia comer, não conseguia ir no banheiro. Saí de lá e quase precisei ser internada no hospital”, afirma. Hoje, ela sofre com pressão baixa e depressão.
Impunidade. “A gente vive das lembranças boas, mas elas também machucam. Eu podia estar vivendo mais lembranças dele e não estou. Não tenho mais ele aqui”, diz a aposentada Vera Lúcia Andrade de Freitas, de 64 anos. Ela é mãe de Mateus Andrade de Freitas, de 21 anos, que estudava para fazer Ciência da Computação, mas foi executado no dia 17 de maio, uma quarta-feira.
Freitas havia faltado à escola nos dois dias anteriores por causa dos ataques. Na quarta-feira, notícias na televisão davam conta de que a situação havia sido controlada e o jovem decidiu ir para o colégio, onde faria uma prova. “Eu não tinha como dizer não”, afirma a mãe.
Ao chegar na unidade de ensino, no entanto, o estudante encontrou as portas fechadas. Na volta para casa, foi baleado três vezes por volta das 21 horas. Um colega de classe também morreu no ataque. “A gente soube que foram duas motos com quatro ‘encapuzados’. Não sabemos se os dois estavam juntos, mas deviam estar perto um do outro”, conta Vera.
As vítimas foram atingidas na frente de uma pizzaria de Santos. “Eu estava lavando minha louça e escutei uns estampidos. Chamei meu marido e ele correu para rua. Quando chegou, Mateus já estava no chão”, diz a mãe. “Primeiro acertaram o amigo, praticamente à queima-roupa, tudo na cabeça. Mateus correu e foi baleado depois. Tinha muita gente na rua e a pizzaria estava cheia.”
Vera afirma que, durante as investigações, não foram ouvidas testemunhas nem houve quebra de sigilo telefônico da escola e da pizzaria, o que poderia revelar o toque de recolher supostamente imposto por policiais. “Foi preciso cobrar para que nós mesmas prestássemos depoimento.” Também diz que o filho foi criminalizado, após a explicação pela morte ter sido atribuída a uma dívida de droga sem nem sequer ter sido realizado exame toxicológico. “Se olhar o processo, é carimbo da delegacia para o promotor, do promotor para a delegacia. Não teve investigação.”
Dos 54 casos com suspeita de execução, 92,6% terminaram arquivados pela polícia por não ter reunido provas sobre a autoria do crime, segundo a Ouvidoria da Polícia de São Paulo. Em três ocorrências, PMs foram apontados como responsáveis pelo assassinato das vítimas. Um desses processos, em andamento, ainda não tem sentença. Em outro, o PM foi condenado a seis anos de prisão. Já o terceiro policial foi condenado a 36 anos em regime fechado, por envolvimento na morte de três pessoas, mas continua em atividade na mesma área em que cometeu os assassinatos.
As Mães de Maio
Dar voz a parentes de pessoas assassinadas e lutar contra a impunidade dos crimes de maio de 2006 foi a maneira que Débora Maria da Silva, de 57 anos, encontrou para manter vivo o gari Edson Rogério dos Santos, de 29, executado por seis disparos de arma de fogo. Moradora de Santos, ela coordena o Movimento Mães de Maio, que denuncia a violência estatal e militar pela memória das vítimas. “Cada um que consigo barrar da rajada de metralhadoras, eu ressuscito meu filho”, diz.
Débora ficou internada e chegou a pesar 45 quilos após o assassinato do filho, no dia 15 de maio. Para ela, a saída foi procurar outros parentes que também sofreram perdas e fundar o movimento. “Eu não conhecia os meninos mortos nem as outras mães. Quando fomos ver, eram exatamente as mesmas histórias”, relembra. Santos deixou um filho, na época, com três anos. “Eu respiro o Mães de Maio. Nem vi meu neto crescer.”
Ela conta que, na manhã do dia 15, um policial amigo da família ligou para avisar que havia acontecido uma chacina e que era para as “pessoas de bem ficarem em casa”. Na visão de Débora, esse é o sinal mais claro de que grupos de extermínio impuseram um toque de recolher na região. “É enfático o dedo do Estado apontado para a morte do meu filho e de todos os outros em maio de 2006.”
Preocupada, tentou ligar para o filho durante o dia, mas não conseguiu. Mais tarde, Santos, que havia feito uma cirurgia na boca, visitou a mãe, apanhou um remédio e pediu R$ 10 para abastecer a moto. “Cuidado com sua vida”, ouviu dela, ao se despedir. Na manhã seguinte, Débora ligou o rádio em um programa policial, que transmitia notícias sobre as mortes na Baixada Santista ocorridas na noite anterior. “O terceiro nome da lista era o do meu filho”, conta.
O gari desrespeitou o toque de recolher e parou em um posto de combustível, onde foi abordado por policiais. Morreu por volta das 20h30, momentos depois de sair do local. “Fizeram ele descer da moto, encostaram em um muro e mataram”, diz a mãe. “O velório foi feito com muita viatura cantando pneu na frente do cemitério”, conta. Durante o velório, uma testemunha contou a Débora ter visto que o filho dela foi abordado no posto de gasolina por duas viaturas, mas as imagens do circuito de segurança foram apagadas.
As investigações não encontraram o procedimento registrado nas planilhas da PM. O caso foi arquivado sem provas quanto à autoria. “Nós queremos resposta. Não importa se já se passaram dez anos ou se vão se passar 20”, diz Débora.
Federalização. Ao longo dos anos, as Mães de Maio realizaram ações para pressionar pela reabertura dos casos, sem sucesso. Com o argumento de que a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual, responsável por fiscalizar o trabalho policial, falharam nas investigações dos assassinatos de maio de 2006, o grupo pediu para que a competência da apuração passasse para a Polícia Federal. Em decisão inédita e dez anos após os crimes, a Procuradoria-Geral da República (PGR) deu prosseguimento nesta semana ao primeiro pedido de federalização referente a um episódio de maio de 2006. O caso trata de um chacina no Parque Bristol, ocorrida na zona sul da capital, e a solicitação foi feita pela ONG Conectas e parentes de cinco vítimas.
Governo estadual diz que apurou todas as ocorrências de maio de 2006 ‘com rigor’
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) informa, em nota, que as mortes de maio de 2006 foram investigadas pela Polícia Civil e pela Corregedoria da Polícia Militar. Segundo a pasta, os trabalhos foram acompanhados pelo Ministério Público Estadual (MPE) e levados à Justiça. De acordo com a secretaria, “todas as ocorrências de morte foram apuradas, à época, com rigor, assim como as denúncias de eventuais homicídios que poderiam ter policiais como autores”.
Segundo a SSP, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) investigou 51 casos registrados entre 12 e 21 de maio. Doze deles foram esclarecidos, sendo quatro ocorrências que tiveram agentes públicos e outros oito casos em que foram mortos civis. “Em relação ao levantamento citado, a SSP não comenta estudos dos quais desconhece a metodologia.”
A pasta afirma que em São Paulo “o combate ao crime, organizado ou não, é realizado diuturnamente pelas forças de segurança do Estado em parceria com o Poder Judiciário e o MPE”. A SSP destaca que o orçamento da área cresceu 94% desde 2006, saltando de R$ 9,3 bilhões para R$ 24,8 bilhões neste ano – “o montante é o triplo dos R$ 8,1 bilhões reservados pelo governo federal para todo o País”.
O investimento no setor, para a SSP, resultou na queda dos índices de criminalidade. “No período entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu 44%, o que significou mais de 100 mil vidas salvas.”
A SSP afirma também que, “quanto ao policial condenado em primeira instância, a Corregedoria da PM acompanha o processo judicial, que está em fase de recurso do réu. Se confirmada a condenação em segunda instância, o policial será demitido”.
Ministério Público. Em relação ao arquivamento de 92,59% dos casos com suspeita de execução (54 de 89 pessoas), o MPE afirma, em nota, que “não há como apresentar juízo de valor relativamente a dados estatísticos, notadamente em face da necessidade da análise peculiar e individual de cada caso”. O órgão reitera que acompanhou as investigações e ofereceu denúncia criminal em ao menos 30 casos.
O MPE garante também que todas as investigações mereceram atenção e que a atuação foi imparcial, não importando se se tratava de vítimas civis ou agentes de segurança do Estado.
O ex-governador Claudio Lembo foi procurado pela reportagem para comentar os ataques de maio de 2006, assim como o ex-secretário da Administração Penitenciária Nagashi Furukawa, mas ambos não foram localizados.
Análise: Execuções: insuportável falha do Estado
Ingrid Leão*
Mortes por agentes do Estado são consideradas execuções sumárias quando ultrapassam o limite legal do uso da força. Essas ações são objeto de várias recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) ao Brasil. Trata-se de um conjunto de medidas que visam ao melhor ajustamento do perfil das instituições brasileiras aos tratados de direitos humanos. Entre essas sugestões estão a desmilitarização da polícia, a investigação independente do Ministério Público nos casos envolvendo a atuação policial ou ainda o fim do auto de resistência.
Como as execuções sumárias estão intrinsecamente relacionadas ao direito à vida, é compreensível que as medidas recomendadas ao Brasil sejam de cunho de prevenção da perda arbitrária da vida, bem como de investigação e de responsabilização. Quando se fala em competência para a investigação e responsabilização de agentes de segurança, por exemplo, a Secretaria da Segurança Pública, as Corregedorias de Polícia, as Ouvidorias de Polícia, os Institutos Médico-Legais (IML) são os organismos aos quais habitualmente as recomendações estão direcionadas. São recomendações fundamentadas nos procedimentos adotados pelas instituições diante de uma denúncia de execução sumária ou barreiras institucionais que representam um risco aos direitos humanos.
O uso de arma contra uma pessoa é medida de extrema gravidade. Diariamente, os agentes de segurança assumem essa responsabilidade, uma vez que detêm entre suas tarefas o policiamento ostensivo. A atividade é arriscada para esses profissionais, ninguém afirma o contrário. Apesar disso, o disparo contra um civil não está autorizado de forma irrestrita. Esse poder de atirar se afirma como uma violação de direitos humanos quando se resume às fórmulas “atirar para matar” ou “atirar primeiro e perguntar depois”.
Essas ações de força representam uma violação de direitos humanos por não respeitar padrões mínimos de uso da força, bem como não se encontrar mecanismos efetivos de prestação de contas sobre a conduta letal, ou ainda, quando em vez de prender um acusado de crime, a decisão prioritária seja deter a pessoa, que seria presa, com a morte. O dever de levar o “suspeito” ou acusado de qualquer crime às autoridades competentes se perde no meio de critérios subjetivos de difícil apuração que encontram um resultado: execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais.
Essas situações estão desenhadas em casos de grande repercussão. O caso Crimes de Maio é um deles sobre denúncias de mortes de civis atribuídas a agentes do Estado. As medidas adotadas pelo policial ao disparar é um lado do problema. Outros são: como foi realizada a investigação dessas mortes? Como foi o processo de responsabilização dos envolvidos? Quais medidas são adotadas para prevenir novos episódios? Mesmo diante de argumentos aparentemente legítimos, como a segurança pessoal do profissional de segurança pública, todos necessitam de apuração, comprovações e posição por parte das instituições públicas.
A ação estatal para o enfrentamento do que se chama por crime organizado é outro pano de fundo. Se for considerada a grande razão legitimadora de uma ação de força, atirar e deter exigem a mais ampla prestação de contas com base em critérios objetivos. Não é possível medir a força com base em atestados criminais.
As respostas a tais perguntas interessam aos parentes das vítimas, que não podem apenas receber um atestado de óbito como informação sobre os fatos, à sociedade, que não pode temer as ações policiais e necessita compreender as condições em que uma morte atribuída ao policial se realizou, e à comunidade internacional, tendo em vista que o Brasil assumiu compromissos com os direitos humanos, por meio de tratados internacionais.
* É DOUTORANDA EM DIREITOS HUMANOS NA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) E PESQUISA EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS