Trocando em miúdos


Jefferson Rueda


Miudeza brejeira

Texto: José Orenstein
Foto: Felipe Rau/estadão
Jefferson Rueda desfia causos - e desafia paladares. No ritmo da fala mansa caipira trocou em miúdos as comidas da roça e fez o público comer de tudo. Dobradinha, fígado, miolo, as partes desprezadas do boi - e cada vez mais difíceis de encontrar no mercado - foram relidas pelas técnicas da alta gastronomia. Cocção a baixa temperatura, vácuo, termocirculador... O rol de artifícios é vasto, mas, nos gestos e na conversa de Jefferson, mesmo a técnica sofisticada soava muito natural.

De saída, um bolinho de miolo (o cérebro de boi) com espinafre abriu os apetites, escoltado por uma dose de cachaça. Veio crocrante, envolvendo uma massa cremosa, que quase fazia esquecer que o que se mastigava eram neurônios. "Quando eu era criança, o que punham na mesa eu tinha de comer. Esse negócio de comer bife era de final de semana", lembrou Rueda. As memórias da infância são recorrentes nas aulas, falas e pratos do chef, natural de São José do Rio Pardo, no interior paulista.

O próximo prato foi um original nugget de dobradinha - foi a estratégia de Rueda para dobrar o preconceito de quem nem cogita traçar bucho (o estômago do boi). "Porque miúdos, ou se odeia ou é paixão", disse Rueda, que, afinal, fisgou pela barriga até mesmo quem dizia odiá-los. A dobradinha que serviu passou por longo preparo, foi cortada na ponta da faca, com paio e pancetta, e reduzida com araruta, gelada por um dia e depois frita com farinha de rosca. No prato com picles de legumes e purê de feijão branco, formou trio equilibrado. Os nuggets tinham a casca crocante e o recheio macio, com pequenos pedaços de bucho. O picles dava nota cítrica que quebrava a intensidade da dobradinha e do purê. O público lambia os beiços. Rueda provocou: "Quem falou que o povo não come dobradinha?".

Um enorme fígado de boi wagyu então tomou a cena. Foi preparado em cocção de baixa temperatura, tornando-se uma espécie de patê. Cortado em cubos e chamuscado com maçarico, foi servido com cebola crocante e um purê de batata doce, um feliz casamento. O grand finale foi do mocotó: a pata do boi que virou um, à primeira vista improvável, doce de leite. Sim: o caldo do mocotó foi transformado em geleia e a cartilagem foi dissolvida em um doce de leite. Ambos foram servidos com uma farofa de pão-de-ló na manteiga noisette.

Sem perceber, fígado, cérebro, estômago e pata de boi tinham sido devorados pelo público. No embalo da brejeirice de Rueda - e de Maria Bethânia a cantar "Trocando em Miúdos", de Chico Buarque - todos foram obrigados a concordar com o chef: "Não existe carne de segunda e carne de primeira. Existe boi 'bão' e boi ruim". Ao que se deve acrescentar, recobrindo a modéstia de Rueda: existe chef bão e chef ruim.



Nuggets de dobradinha

Doce de leite com pata de boi

Bolinho de miolo

Farofa de pão-de-ló
Picles de legumes