De um lado da linha, em São Paulo, estava Arnaldo Dumont Villares. Do outro, no Rio, Jorge de Toledo Dodsworth, marido de sua prima Sophia Dumont.
Os dois tinham sido informados havia pouco que Alberto Santos-Dumont, o pai da aviação, se suicidara no Grande Hotel La Plage, no Guarujá. E temiam que, em meio à turbulência política que atingia o Brasil, com os paulistas em guerra contra Getúlio Vargas, a famosa casa do inventor em Petrópolis fosse invadida e os documentos e bens acumulados em seus 59 anos de vida acabassem perdidos. Mais de oito décadas depois, os papéis que ficaram 37 anos esquecidos num porão no Rio e outros 35 guardados pela família estão perto de serem postos à disposição do público na internet pelo Centro de Documentação da Aeronáutica (Cendoc).
Jorge e Sophia cumpriram sem demora a missão dada por Arnaldo, sobrinho e inventariante de Santos-Dumont. Foram até a Encantada e juntaram o que puderam. Tomaram cuidado especialmente com fotos e recortes de jornal que mostravam as façanhas do brasileiro de maior projeção internacional na época. Muitos documentos haviam cruzado o Oceano Atlântico com o inventor, quando ele se mudou de volta da França para o Brasil. Para o transporte até o Rio, encheram um cesto de vime e algumas malas-armário, populares antigamente em viagens de navio.
Ao chegarem ao casarão na Praia do Flamengo, 334, Jorge mandou pôr as malas no porão e deu ordens para que ninguém tocasse nelas. A determinação foi cumprida à risca. Por quase quatro décadas, nem as grandes ressacas do Flamengo, nas quais a água do mar chegava até o sobrado, fizeram alguém mexer nos documentos de Santos-Dumont.
“Essas malas ficaram no nosso porão por anos e anos e anos”, lembra Jorge Henrique Dumont Dodsworth, de 88 anos, filho de Jorge e Sophia e sobrinho-neto do inventor. “Só foram reabertas depois de 1968, quando papai faleceu e quisemos tirar mamãe da casa porque ela ficava muito sozinha.” Foi quando surgiu a ideia de erguer um prédio no lugar do casarão. Com 13 andares, o Santa Sophia foi inaugurado em 1974, três anos após a morte de sua inspiradora.
As malas com o acervo pessoal do pai da aviação esquecidas no porão foram redescobertas durante a limpeza pré-demolição e entregues por Sophia em 14 de junho de 1969 a Nelson Freire Lavenère-Wanderley, marido de sua filha, Sophia Helena, que foi tenente-brigadeiro, ministro da Aeronáutica e autor do primeiro livro da história da Força Aérea Brasileira.
“Após o falecimento do meu avô, minha avó começou a desmontar a casa. Pediu então a meu pai que fosse ao porão ver um cesto de vime que continha, segundo ela, uma série de papéis antigos. Era para ele ver o que prestava e jogar fora o que não prestasse”, conta Alberto Dodsworth Wanderley, filho do brigadeiro e de Sophia Helena e sobrinho-bisneto de Santos-Dumont. “Quando meu pai viu que aquilo não era papel velho, que ali havia recortes de jornal do mundo inteiro com notícias relacionadas a Santos-Dumont, ele disse à minha avó que ia recolher tudo. Como historiador que era, reconheceu aquele material como documentos históricos e se interessou em fazer ele mesmo sua classificação.”
Em julho de 1970 e em março de 1971, mais documentos de Santos-Dumont foram encontrados no porão do Flamengo – respectivamente, uma valise com recortes e fotos e outra mala cheia de pedaços de jornais, imagens, livros, revistas e objetos. O cesto de vime se desfez e não pôde ser conservado.
Alberto conta que, em casa, o pai separou e limpou o material e passou a organizá-lo em ordem cronológica, dividido por assuntos. “Depois meu pai encadernou todo esse acervo e botou à disposição de pesquisadores.”
Entusiasta dos feitos de Santos-Dumont, Lavenère-Wanderley deixou em páginas datilografas detalhes de seu trabalho de coleta, organização e manutenção do acervo: “Nos três anos que se seguiram, fiz a limpeza, a recuperação, nova colagem dos recortes de jornais nas respectivas etiquetas e a sua arrumação por ordem cronológica e por assuntos”, escreveu. “A coleção de recortes de jornais que se achavam na casa A Encantada, em Petrópolis, depois do falecimento de Santos-Dumont, abrange os anos de 1899 a 1903, isto é, o período em que Santos-Dumont se dedicava aos seus balões. A referida coleção não cobre o período em que o grande inventor brasileiro estava dedicado à resolução do problema do voo do mais pesado que o ar.”
No total, o brigadeiro Lavenère-Wanderley encontrou nas malas esquecidas no casarão do Flamengo 133 recortes de jornal de 1899, 203 de 1900, 7.689 de 1901, 3.995 de 1902 e 608 de 1903. O aumento da quantidade em 1901 e 1902 se explica pela sequência de feitos de Santos-Dumont no período que o oficial definiu como o “mais glorioso de sua carreira, quando a população de Paris, da França e de todo o mundo civilizado acompanhava, empolgada, as suas sensacionais experiências sobre a dirigibilidade dos balões”.
O dinheiro foi dividido entre seus mecânicos e os pobres de Paris. Como conta o biógrafo Cosme Degenar Drumond no livro Alberto Santos-Dumont Novas Revelações (Editora de Cultura), “cerca de 4 mil trabalhadores receberam 20 francos cada um, enquanto uma soma foi destinada a resgatar ferramentas de trabalho que tinham sido penhoradas pelos desempregados”.
Após passarem quase quatro décadas esquecidos no porão do sobrado no Flamengo, os documentos e fotos que Santos-Dumont guardou ao longo da vida permaneceram mais quase três décadas à vista apenas da família e de alguns pesquisadores. Além de organizar o acervo pessoal do inventor, o brigadeiro juntou à coleção reportagens e notícias publicadas nas décadas seguintes sobre Santos-Dumont. E encadernou tudo em cinco volumes. Em cada página, colou um ou mais recortes ou fotos, dependendo do tamanho, e fez anotações sobre seu conteúdo.
Com sua morte, em 1985, coube à viúva, Sophia Helena, dar um destino ao material. “Minha mãe achou que aqueles documentos deveriam ser doados a uma entidade que cuidasse deles e os mantivesse porque são jornais de mais de cem anos que, se não fossem tratados adequadamente, se perderiam com o tempo. Foram consultadas várias entidades e o Centro de Documentação da Aeronáutica (Cendoc) se interessou em receber esse acervo”, lembra Alberto. A primeira conversa se deu por intermédio do Arquivo Nacional, procurado em 2003.
Com sede no Campo dos Afonsos, no Rio, o Cendoc se comprometeu no termo de doação assinado com a família a realizar a organização arquivística do acervo, conservá-lo e divulgá-lo por meio de catálogos, apresentações multimídia e instituições de pesquisa, entre outras formas, além de fazer pelo menos três exposições por ano. “A exigência era de que o acervo fosse democratizado, que não se limitasse à manutenção e sim fosse posto à disposição não só de pesquisadores, mas de colégios e público em geral”, destaca Alberto.
Para a recuperação dos documentos do patrono da Força Aérea Brasileira, o Cendoc fez parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). Conservadora e restauradora da entidade, Osana Hannesch conta que o trabalho foi para permitir que o acervo pudesse ser manuseado e reproduzido.
Na limpeza, feita com pincel, borracha e trincha, foram retirados resíduos de cola e fita adesiva usadas por Lavenère-Wanderley para fixar os documentos nos livros e feitos pequenos reparos. Por sorte, segundo Osana, os ataques de inseto sofridos por alguns recortes já “estavam inativos”. “O acervo foi guardado por muito tempo e estava num estado mais precário do que bom”, resume a restauradora. “Mas, sem o trabalho do brigadeiro, a situação estaria ainda mais delicada. A separação melhorou a condição, embora muita coisa tenha sido dobrada e colada.” Apesar de alguns originais estarem bem danificados, nada foi descartado.
A tenente Bárbara Cristina Barbosa Pinto da Silva explica que, já no Cendoc, o passo seguinte foi desmembrar os livros, separar as unidades documentais e organizá-las em quatro séries: Documentos Pessoais e Familiares, Inventos, Homenagens e Relações Pessoais. Essas, por sua vez, acabaram divididas em subséries. A série Inventos, por exemplo, divide-se em Prêmios, Acidentes Aeronáuticos e Balões, Aeronaves e Outros. A Relações Pessoais, entre Recorte de Jornal, Correspondência, Fotografia e Outros.
“Não só o arquivo pessoal foi doado como também tudo o que foi reunido pela família depois”, conta a tenente. No total, são 3.473 unidades documentais – 2.715 do arquivo pessoal e 758 da chamada coleção (materiais acrescentados ao acervo posteriormente). “A família continuou o que Santos-Dumont iniciou em 1898”, explica.
Após ser escaneado, cada recorte, foto ou carta foi posto entre duas folhas de papel alcalino e recebeu um código a lápis, que permite identificar sua série e subsérie. Também ganhou uma ficha com imagem digitalizada, dados gerais, sinopse do assunto e, em caso de documentos estrangeiros, a tradução total ou parcial.
“Esse acervo de Santos-Dumont no Cendoc se deve ao trabalho pioneiro feito há dez anos por intermédio do Arquivo Nacional e do Museu de Astronomia. E a ideia é perpetuar para as gerações futuras tudo o que está sendo feito”, explica o coronel Carlos Alberto Leite da Silva, chefe do Cendoc. “O acervo de Santos-Dumont faz parte de um trabalho para valorizar nossos heróis.”
Hoje, os recortes originais ocupam sete mapotecas com cinco gavetas cada, ladeadas por quatro gavetas onde ficam as fotos. Por enquanto, o acervo está à disposição de pesquisadores e de militares da Aeronáutica, por meio da intranet. “A ideia é que, em um ou dois anos, nós tenhamos condições de ter um acervo com uma ferramenta com nível de segurança robusto para as pessoas acessarem o conhecimento”, finaliza Leite.
“Trata- se de uma documentação importantíssima para quem pretende entender o desenvolvimento aeronáutico – que levou à dirigibilidade de balões (os primeiros dirigíveis) e à invenção do avião – e para entender a trajetória de Santos-Dumont como inventor e pessoa”, resume Henrique Lins de Barros, um dos maiores especialistas no assunto.
Segundo ele, alguns documentos também ajudam a entender a personalidade do inventor. Henrique cita particularmente cartas para amigos falando das “belas” de Paris, depoimentos de pessoas que estiveram com ele nos anos em que se internou na Europa, despesas e receitas médicas. “Há também uma centena ou mais de charges ou caricaturas publicadas em diferentes jornais que são uma delícia de se ver”, conta.
A família também comemora o novo destino do acervo esquecido. “Acho uma maravilha divulgar essas maravilhas e mostrar ao mundo o que fez um brasileiro”, diz o sobrinho-neto Jorge Henrique.
“Seria muito difícil correr hoje atrás de tudo o que está no acervo, demandaria um trabalho insano”, destaca o sociólogo Marcos Villares Filho, sobrinho-bisneto do inventor. “Esse acervo é único e muito importante não só para a história de Santos-Dumont como para a da aviação mundial. É um material valioso para a história dos pioneiros da aeronavegação e para biógrafos e pesquisadores de ciências em geral.”
Estão sob guarda do Centro de Documentação da Aeronáutica (Cendoc) da certidão de batismo de Santos-Dumont lavrada em 1877 a seu primeiro testamento, feito em 1931; das atas da Companhia Agrícola Fazenda Dumont, criada por seu pai no interior paulista, à escritura de sua casa Encantada, em Petrópolis; da carteirinha de integrante do Círculo de Estrangeiros de Mônaco ao recibo da taxa de condomínio de um dos apartamentos em que viveu na Avenue des Champs-Elysées, em Paris.
Os documentos pessoais do pai da aviação são uma das partes mais interessantes do acervo. Muitos já têm quase um século e meio de existência. É seguramente o caso de imagens dos pais, avós e até da bisavó francesa que migrou com o marido da Europa para Diamantina (MG) no século 19. Além de retratos de locais que marcaram a vida de Santos-Dumont, como duas cópias de uma foto panorâmica de Cabangu, onde ele nasceu, em 1873, e a imagem de sua família numa varanda da fazenda que hoje faz parte do município de Dumont, na região de Ribeirão Preto (SP).
Entre os retratos mais antigos do inventor, chamam a atenção fotos de ele ainda criança, rindo, com três dos irmãos; já adolescente ao lado de uma bicicleta e num retrato de família com a seguinte inscrição na moldura: Alberto Dumont. Era a época em que ainda usava apenas o sobrenome francês.
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A questão da assinatura foi um tema importante para Santos-Dumont. Ele alcançou a fama em Paris, mas sempre fez questão de ressaltar sua origem brasileira. Para tanto, primeiro adotou o hífen para unir o Santos ao Dumont e, anos mais tarde, o substituiu por um sinal de igual. Passou a ser então Santos=Dumont, numa representação do Brasil igual à França. Numa das fotos, uma dedicatória escrita pelo aeronauta brasileiro diz o seguinte: “Ao meu amigo Fitzgerald, comprimentos (sic) de Santos=Dumont”.
Outro local bem representado no acervo do Cendoc é seu apartamento na Avenue des Champs-Elysées, uma das vias mais conhecidas de Paris, onde ele ocupou pelo menos dois imóveis, nos números 114 e 150. Assim como outras partes do acervo, algumas fotografias no apartamento estão muito desgastadas enquanto outras estão mais nítidas.
O local mais registrado é o canto de uma sala, em que ele aparece atrás de uma escrivaninha diante de um quadro de duas pirâmides egípcias. Sobre a mesa, um retrato identificado pelos militares do Cendoc como sendo de Aída de Acosta, a cubana que, com a ajuda do aviador brasileiro, tornou-se a primeira mulher a conduzir sozinha um dirigível em 1903. Para alguns biógrafos, no entanto, trata-se de Edna Powers, americana que teve um suposto romance com o inventor.
Muitos documentos pessoais de Santos-Dumont também fazem referência a automóveis, outra de suas paixões. Além de fotos em carros – um deles traz a placa 704 num local possivelmente de Paris – , é possível descobrir que, em 2 de abril de 1905, ele obteve um salvo-conduto permanente para dirigir automóveis na França. De julho de 1927, o acervo guarda uma apólice de seguro contra roubo e acidentes de carro também feita na França. E, em 17 de março de 1932, já no Brasil, ele requereu carteira de identidade para guiar carro como amador. O pedido foi registrado no prontuário do Registro Geral n.º 304.921, no qual também constavam dados pessoais, impressões digitais dos dez dedos, fotos de frente e de perfil. Na assinatura, uma curiosidade: em letra firme e legível, o inventor escreveu A Santos:Dumont, com dois pontos entre os sobrenomes.
Reportagem da Folha da Noite de 12 de novembro de 1956 conta que em 17 de março de 1932, “acompanhado de duas ou três pessoas”, Santos-Dumont foi pessoalmente ao prédio do Serviço de Identificação, que funcionava na Rua dos Gusmões, esquina com a Rua Santa Ifigênia, região central de São Paulo. Vestindo terno escuro de casimira com listras brancas, ele só foi reconhecido ao dizer seu nome ao funcionário que o atendeu, mas logo “todos queriam ver o genial inventor”. “Santos-Dumont, muito gentil e demonstrando certa timidez diante da viva curiosidade dos funcionários e partes que o rodeavam, desejava identificar-se para obtenção de uma carteira de motorista amador”, informa o artigo.
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Registros de transações financeiras eram bem guardados. Uma correspondência do Bank de Montreux relata que a conta de Santos-Dumont havia sido encerrada em 31 de dezembro de 1927 com um saldo de 28.274 francos. Datada de 23 de fevereiro de 1928, a carta do Bank of London & South America Limited, localizado no número 7 da Wall Street, em Nova York, avisava sobre um crédito de US$ 14.357,54.
Há ainda orçamentos e recibos de compra. Em 31 de dezembro de 1915, o aviador comprou camisas, gravatas e outras peças na loja Charvet & Fils, na luxuosa Place Vendôme, em Paris. O preço foi de 1.331 francos. Em 15 de março de 1931, pagou em cheque 816 francos por peças automotivas da Automobiles Renault.
Retratos do inventor em várias épocas e poses compõem o acervo. Estão lá, por exemplo, quatro cópias emolduradas em papel cartão em que Santos-Dumont está de chapéu e braços cruzados. No canto, manuscritos, a assinatura do fotógrafo e seu local de atuação – Mauro Phot., São Paulo.
Outro retrato – assinado por O. R. Quaas, que tinha estúdio na Rua de São Bento, 46, também em São Paulo – parece ter sido tirado no Jardim da Luz, um dos locais mais chiques da cidade na virada do século 19 para o 20, onde homens só entravam de chapéu e paletó e mulheres, de vestido. Já visivelmente mais velho, Santos-Dumont voltou a ser retratado por Quaas anos depois. Na assinatura, o nome do estúdio aparece como Atelier Elite.
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O acervo de Santos-Dumont sob guarda do Centro de Documentação da Aeronáutica reúne 155 correspondências, entre cartas e telegramas enviados ou recebidos pelo aviador. Nem todas ficaram guardadas no porão do casarão da Praia do Flamengo. Algumas foram resgatadas pela família em um concurso feito em 1973, no centenário do nascimento do inventor.
Dos documentos originais há desde cartas de editores de jornais franceses felicitando Santos-Dumont por seus feitos até uma correspondência da Compagnie des Accumulateurs Electriques Blot, de Paris, informando sobre a troca de baterias de seu carro.
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As cartas foram enviadas a pelo menos três endereços ocupados por Santos-Dumont em Paris – os números 114 e 150 da Avenue de Champs- Elysées e o 58 da Avenue du Bois de Boulogne, hoje Avenue Foch. Assim que se mudou para a capital francesa, aos 19 anos, ele também morou na Rue d’Edimbourg, 26. Já no fim da vida, em abril de 1930, contou ao sobrinho Henrique numa breve carta que estava morando no apartamento 5 da Rue Villant de Joyeuse com o “filho Sabreur”, referindo-se ao cachorro galgo Sabreur du Diable (Sabre do Diabo), que participava de competições. Na mesma nota, avisa: “As corridas começam breve, mas elle só correrá em maio”.
A conquista do Prêmio Deustch, em 1901, rendeu-lhe várias felicitações. Como a enviada por telegrama pelo então ministro brasileiro da Indústria, Alfredo Maia: “Em nome do presidente da República saudo vossas brilhantes esperiencias acabaes de executar nessa capital com a vossa aeronave tendo descoberto solução a tanto procurada aumentaes glória Brazil completando obra de Barthomea Gusmao illustre patricio nosso – Alfredo Maia, ministro da Indústria”.
Semanas depois, em 20 de outubro de 1901, foi a vez de o presidente Campos Salles assinar o telegrama cumprimentando Santos-Dumont pela conquista do prêmio de 129 mil francos (100 mil originais, mais correção e recompensas): “Com as minhas calorosas congratulações, recebei os applausos de nossos compatriotas pela extraordinário triumpho que tanto nos glorifica quanto honra nossa pátria.” No governo de Campos Salles, Santos-Dumont seria premiado com cem contos de réis, equivalentes a 125 mil francos, além de uma medalha de ouro.
As cartas chegavam de todas as partes. De conhecidos e desconhecidos. Em 5 de novembro de 1911, o barão e a baronesa de Muritiba enviaram o seguinte telegrama: “Festejamos a victoria do nosso compatriota”. Dias antes, em 14 de outubro de 1901, uma anônima colecionadora de cartões-postais da Inglaterra perguntava se o aviador poderia lhe mandar uma foto dele num balão autografada.
Um ano depois, uma notícia triste. Telegrama enviado em 22 de novembro de 1902 avisava, em letras maiúsculas, que sua mãe havia morrido no Porto, em Portugal.
Em 1914, um general francês que se identifica como Vayssière informa: “Tenho a honra de informar que, como o observatório estabelecido em sua propriedade na costa de Bénerville pode ser exposto a atos de maldade por parte das pessoas do vilarejo vizinho, dei a ordem para manter o militarismo. Um posto será ali instalado amanhã, 8 de agosto.” Esse é um ponto que levanta dúvidas. Muitos biógrafos dizem que, na época da 1.ª Guerra Mundial, vizinhos suspeitaram que Santos-Dumont pudesse estar usando seu telescópio Zeiss para passar informações a inimigos alemães. O aparelho, também de fabricação alemã, foi instalado pelo inventor em sua casa na costa da Normandia, a cerca de 200 quilômetros de Paris, para observar as estrelas. Dizem que a polícia chegou a revistar a Boîte (caixa em francês), como sua casa era conhecida, e pediu desculpas ao descobrir que a denúncia era infundada. O inventor, porém, teria ficado tão desgostoso que queimou todos os seus projetos, fotos e anotações em um acesso de raiva.
Há, porém, quem duvide da veracidade da história. Como Henrique Lins de Barros, considerado um dos maiores especialistas em Santos-Dumont. “Você pega a carta do general e é muito respeitosa. E, se ele tivesse queimado todos seus papéis e projetos, teria chamado bastante a atenção e haveria alguma notícia. Essa notícia não aparece”, pondera.
Há também no acervo cartas de temas cotidianos, como uma em que Santos-Dumont pergunta a um comerciante por quanto poderia vender cem carpas se ele fornecesse “o barril para pôr a água”. Datada de 5 de janeiro de 1921, ela foi escrita em sua casa Encantada, de Petrópolis.
No ano seguinte, em 22 de maio, o Aeroclube da Bélgica agradece doação de mil francos para construção de monumento em homenagem aos mortos na guerra. E, após a aviadora Anésia Pinheiro Machado realizar, em setembro de 1922, voo pioneiro entre São Paulo e Rio de Janeiro, Santos-Dumont lhe envia a seguinte felicitação:
“Srta Anésia P.M.:
Minhas mais sinceras felicitações pelo seu lindo voo SP-Rio, comemorando esportiva e audaciosamente o centenário da nossa independência. Junto envio-lhe uma medalha igual à que me acompanha sempre. Homenagem de Santos-Dumont.”
A medalha a que se refere, de São Bento, havia sido um presente da princesa Isabel, que vivia no exílio na França com o conde D’Eu e acompanhava as experiências arriscadas do brasileiro. Em 1901, após ele sofrer um acidente na propriedade do vizinho dela, Edmond de Rothschild, a filha de d. Pedro II lhe enviou a medalha com o seguinte recado: “Senhor Santos-Dumont, eis aqui uma medalha de São Bento que protege contra os acidentes. Aceite-a e carregue-a consigo no seu bolso, em sua agenda ou em seu pescoço. Eu a envio pensando em sua mãe e pedindo a Deus que o socorra sempre e que o faça trabalhar para a glória de sua pátria, princesa Isabel”.
A partir daí, o aviador passou a levá-la sempre pendurada no pulso.
O acervo ainda guarda uma das últimas cartas escritas por Santos-Dumont. Foi enviada em 12 de julho de 1932, em papel timbrado e com símbolo da coroa do Grande Hotel, no Guarujá, para Arnaldo Dumont Villares. Diz:
“Caro Arnaldo,
Aqui vamos bem sem novidades.
Peço-te o favor de mandar-me cinco contos pois não sabemos do futuro. Mandar pelo meio que você achar mais conveniente.
Muitas felicidades a todos os seus e a mamãe e mais parentes.
Um abraço do
Alberto
Muitos abraços a mamãe e todos. É portador d’esta o filho do Paulo Siciliano que volta ao Guarujá
12-7-32”
Nove dias depois, em 23 de julho, Santos-Dumont se suicidaria.