O caso mais emblemático foi a doação em 1901 do valor do Prêmio Deutsch – 129 mil francos (100 mil originais mais correção e recompensas), uma fortuna na época – a seus mecânicos e aos pobres de Paris. “No momento em que ele deu a volta na Torre Eiffel e ganhou o prêmio, havia uma crise econômica na França e era comum trabalhadores empenharem instrumentos de trabalho para conseguirem algum dinheiro”, conta o escritor Márcio Souza, autor de O Brasileiro Voador, Um Romance Mais Leve que o Ar (Editora Record). “Ele deu dinheiro para que muitos deles pagassem as cautelas. Isso o tornou uma celebridade.”
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No auge da carreira, tudo o que “petit Santôs” fazia ou dizia tinha destaque. A ponto de seus colarinhos altos, ternos risca de giz, chapéu desabado e cabelo repartido ao meio ganharem as ruas. “Ele era o rei de Paris, o que ele fazia virava moda”, resume o brigadeiro Márcio Bhering Cardoso, diretor do Museu Aeroespacial, no Campo dos Afonsos, Rio de Janeiro. “O famoso chapéu amassado dele surgiu quando estava pilotando um dirigível e houve um incêndio. Ele saiu do posto de pilotagem sem paraquedas, tirou o chapéu e bateu no motor para apagar o incêndio. O chapéu ficou todo disforme e amassado. No dia seguinte, a imagem saiu nos jornais e o chapéu virou moda em Paris. O relógio de pulso ele popularizou. Pediu ao Cartier e até hoje existe o Santos, um relógio famosíssimo.”
Amigo de Santos-Dumont, Louis Cartier criou em 1904 o relógio que até hoje faz sucesso. Incomodado por ter de tirar as mãos do controle dos balões para sacar seu relógio de bolso todas as vezes que queria ver as horas ou cronometrar um voo, o aviador pediu que o joalheiro francês encontrasse uma solução. Tempos depois, Cartier lhe entregou um modelo de pulso instalado numa caixa de metal com ângulos arredondados e parafusos expostos, preso a duas alças de couro. Deu à criação o nome de Santos e em 1911 passou a fabricá-la comercialmente e a vendê-la em sua butique da Rue de la Paix, em Paris. O objeto que começou como uma expressão da arte déco se tornaria mais tarde um acessório replicado mundo afora, popularizado por milhares de grifes e usado por ricos e pobres. Na Cartier, o modelo Santos é considerado ainda hoje um ícone e oferecido em diferentes materiais e coleções.
Recortes do Centro de Documentação da Aeronáutica (Cendoc) mostram que caixas de chocolate da época traziam miniaturas de dirigíveis do aviador, peças de teatro falavam dele e até concursos de brinquedos tinham categoria relacionada a Santos-Dumont. “Nas padarias, as crianças batiam o pé: só queriam o Petit Santôs, um biscoito de gengibre com o perfil do aviador”, lembra Maurício Torres Assumpção, no livro A História do Brasil nas Ruas de Paris. O mesmo autor conta que, depois do sucesso do 14-Bis, Santos-Dumont também virou tema de propaganda. “Generosamente, cedia seu nome, sua imagem e a de suas invenções a campanhas publicitárias”, lembra na obra, citando o licor Bénédictine, cujo anúncio trazia uma caricatura do aviador fazendo um brinde dentro do cesto do mais pesado que o ar. Dizia: “Se fosse necessário subir às nuvens para beber Bénédictine, há muito tempo o problema da locomoção aérea estaria resolvido”.
Uma publicação de 19 de fevereiro de 1902 traz foto de um carro alegórico do carnaval de Nice, na França, no qual um Santos-Dumont estilizado aparece sentado sobre um dirigível e o pilota com um timão. O jornal americano New York Herald publicou em 2 de março de 1902 que um dirigível automático se tornara o brinquedo favorito de crianças parisienses, tanto meninos quanto meninas. Era uma reprodução em miniatura do número 6, com o qual o aviador contornara a Torre Eiffel. Já um jornal de Chicago noticiou em setembro de 1902 que Marion Ballou, uma atriz de ópera fascinada por Santos-Dumont, chegou a errar uma fala em cena. Numa frase, em vez de dizer “Voe, Don Caesar”, disse “Voe, voe, Santos-Dumont”.
Ao longo da carreira, o inventor deu nome a avenidas, praças, rosas. E, após sua morte, virou nome de aeroporto e até de cratera da Lua. Foi no centenário de seu nascimento, em 1973. O “presente” nos Montes Apeninos lunares foi sugerido pelo Museu do Ar e do Espaço da Smithsonian Institution, dos Estados Unidos, e concedido pela União Astronômica Internacional. Na cerimônia, o astronauta Michael Collins, que fez parte da tripulação da nave Apollo 11 na viagem à Lua em 1969, disse que era “o reconhecimento do mundo à contribuição do gênio inventivo de Santos-Dumont ao desenvolvimento e progresso aeroespacial contemporâneo”.
Também chamado pelos parisienses de “le petit Brésilienne”, Santos-Dumont conviveu com grandes personalidades do início do século 20. Seu hangar era ponto de encontro de amigos, curiosos e personalidades. Biógrafos listam entre as visitas as do rei da Bélgica Leopoldo II, do príncipe Alberto I, de Mônaco, e a da imperatriz Eugênia, viúva de Napoleão III, que causou grande burburinho. Em 11 de fevereiro de 1902, o New York Journal publicou uma foto do encontro e disse que a imagem era de grande importância para a França, pois era a primeira vez em 30 anos que Sua Majestade era fotografada num evento. Sua acompanhante foi identificada como mademoiselle d’Allonville. Dizem biógrafos que a moça era sobrinha da imperatriz e foi quem pediu que visitassem Santos-Dumont. “Lembro-me do rei da Espanha, que era cabeça coroada, atravessar a rua para vir cumprimentá-lo e, assim, todas as personalidades de Paris”, contava Yolanda Penteado, amiga do inventor.
Entre os documentos pessoais guardados no Campo dos Afonsos, estão lembranças de algumas dessas personalidades. Como uma foto dada ao aeronauta pelo inventor da lâmpada, Thomas Edison, na qual está escrita a seguinte dedicatória: “To Santos-Dumont, Pioneer of Aerial Navigation, Thos A Edison”. Quando foi aos Estados Unidos, o aviador visitou o laboratório de Edison e jornais dedicaram um bom espaço ao encontro. O New York Journal destacou uma frase em que o inventor americano se disse muito interessado na máquina de voar de Santos-Dumont e que sugeriu a ele organizar um aeroclube nos Estados Unidos. “Há vários homens que se interessarão nesse tipo de negócio e eu provavelmente também me juntarei”, acrescentou.
Há também um retrato de Henry Deutsch de la Meurthe, incentivador de voos no início do século 20 e criador do prêmio que rendeu a Santos-Dumont mais de 100 mil francos em outubro de 1901 por contornar a Torre Eiffel. O magnata lhe escreveu: “A Santos-Dumont, cordial souvenir, H. Deutsch (de la Meurthe)”.
O prestígio do aviador era tão grande que, na viagem aos Estados Unidos, ele foi recebido por ninguém menos que o presidente Theodore Roosevelt na Casa Branca. E chegou a prometer uma viagem em seu novo dirigível à filha dele, Alice. A notícia publicada num jornal de Nova York em 19 de abril de 1902 também está no Centro de Documentação da Aeronáutica (Cendoc), mas a promessa nunca foi cumprida.
Ainda durante a viagem aos Estados Unidos, Santos-Dumont se encontrou com o inventor do telefone. Entre os objetos sob guarda do Museu Paulista, em São Paulo, está a agenda em que anotou os compromissos durante a estada no país. Numa segunda-feira, 10 de janeiro, escreveu: Jantar Graham Bell. Na linha de baixo, acrescentou 10h - voir auto (ver carro). Um busto no mesmo museu faz referência a outra personalidade da época que conviveu com Santos-Dumont: o escultor francês Auguste Rodin. Feito de gesso, o molde original da cabeça de Victor Hugo tem cerca de meio metro de altura e a seguinte dedicatória: “A monsieur Santos Dumont, A Rodin 1903”.
A paixão do aviador pelos esportes está presente em várias imagens guardadas ao longo da vida. Há de fotos de partida de tênis – atuando como juiz no clube Fluminense, por exemplo – a poses esquiando na neve ou praticando equitação. Outras imagens, com o galgo Sabreur du Diable (ou Sabre do Diabo, em português), mostram seu envolvimento com competições de cachorros de raça – Santos-Dumont chegou inclusive a tirar a patente de um curioso objeto para estimular a velocidade desses animais.
As viagens também são pródigas em registros. Entre eles, destacam-se uma foto já um pouco desbotada de Santos-Dumont com outras quatro pessoas e dois camelos diante de uma pirâmide do Egito e um programa do navio alemão Blücher, em que seu nome aparece como sendo do Comitê de Lazer para o percurso Europa-Brasil na virada de 1913 para 1914.
Algumas fotos trazem no verso, com a caligrafia do aviador, a descrição Atelier Assis-Brasil. Numa delas, o diplomata e político Joaquim Francisco de Assis Brasil parece mirar em Santos-Dumont com uma arma. A mesma foto é reproduzida num site sobre o Castelo de Pedras Altas, criado pelo diplomata no Rio Grande do Sul anos depois, com a seguinte legenda: “Assis Brasil brinca de Guilherme Tell em 1902, no Rio de Janeiro, e acerta uma maçã sobre a cabeça de Alberto Santos=Dumont”. Diz a lenda que Guilherme Tell foi um exímio arqueiro do cantão suíço de Uri que no século 14, a uma distância de 50 passos, conseguiu acertar com uma flecha uma maçã sobre a cabeça do filho e salvar a vida de ambos.
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O sucesso do “petit Santôs” também inspirou canções. Uma das que resistiram por mais tempo na memória dos brasileiros da época foi A Conquista do Ar. Com letra e música de Eduardo das Neves, enaltecia a bravura de Santos-Dumont e estimulava o patriotismo com os seguintes versos:
E clamou “parabéns” em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
Apareceu Santos-Dumont
Salve estrela da América do Sul
Terra amada do índio audaz guerreiro
A glória maior do século 20
Santos-Dumont, um brasileiro
A conquista do ar se aspirava
A velha Europa, poderosa e viril
Rompendo o véu que a ocultava
Quem ganhou foi o Brasil
Por isso o Brasil tão majestoso
Do século tem a glória principal
Gerou no seu seio grande herói
Que hoje tem um renome universal
Alberto Santos-Dumont era especialista em marketing pessoal numa época em que esse termo nem existia. Entre outras iniciativas, costumava avisar a imprensa com antecedência sobre seus feitos e contratar fotógrafos para registrar seu trabalho no hangar e as apresentações públicas de seus inventos. Com isso, há farto material sobre seus balões e dirigíveis, incluindo notícias de prêmios e acidentes.
Para rastrear referências a seu nome e a feitos aeronáuticos publicados pela imprensa de todo o mundo, Santos-Dumont contratou o serviço de pelo menos quatro empresas especializadas. Fundada em 1880 e situada no número 21 do Boulevard Montmartre, em Paris, a Le Courrier de la Presse foi uma das que mais lhe enviaram recortes. Todos vinham com uma ficha da empresa e a referência ao inventor no texto sublinhada com lápis de cor. Cada pedaço de jornal enviado custava 30 cêntimos de franco, valor que caía proporcionalmente com o aumento da quantidade – cem recortes, por exemplo, saíam por 25 francos.
Santos-Dumont também assinou o serviço de outra empresa francesa – a Argus de la Presse, fundada em 1879 e com sede na Rue Drouot, 14 – e o da inglesa Press Cuttings, localizada no número 41 da Haymarket St, em Londres. Em Nova York, a empresa escolhida foi The Manhattan Press Clipping Bureau, da 2 West 14th Street.
Na garimpagem, servia qualquer notícia, de qualquer jornal. Como o mesmo texto distribuído por uma agência podia aparecer em mais de um veículo, não raramente ocorria de o aeronauta receber vários recortes com exatamente a mesma notícia, às vezes com datas e/ou idiomas diferentes. A maioria dos recortes guardados por Santos-Dumont falava sobre seus feitos na “navegação aérea” ou “aerostação”, mas havia notas também sobre homenagens, pretendentes, acidentes. Tudo foi guardado. Além da maioria dos recortes em inglês e francês, há notícias e artigos de jornais em sueco, italiano, russo, húngaro, português, espanhol.
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“Não há qualquer sombra de dúvida quanto ao fato de que Santos-Dumont resolveu definitivamente a questão da aeronavegabilidade”, publicou o New York Herald em 13 de julho de 1901. “A experiência inusitada de Dumont alegra a humanidade em relação ao futuro”, disse um jornal alemão em 27 de julho do mesmo ano.
“Santos-Dumont é o homem do dia. Algumas notas de sua biografia: ele tem 25 anos. Sua vocação aeronáutica vem de seu gosto nato pela mecânica (...). Muito valente, verdadeiro campeão do balão dirigível e brevemente sem dúvida da máquina volante, ele tomou a frente no momento de revolucionar as condições da locomoção sobre nosso planeta”, resumiu o jornal francês L’Echo de Paris, em 14 de julho de 1901. “Este engenheiro não só é um inventor genial, ele é também um grande piloto”, diz jornal húngaro na mesma data, errando sobre a formação do inventor – Santos-Dumont não só não se formou em Engenharia como não concluiu nenhuma outra faculdade.
Entre o material chama a atenção um texto do jornal espírita Reformador, datado de 1.º de agosto de 1883, sobre uma profecia de julho de 1876 – quando Santos-Dumont tinha três anos de idade – de que o pai da aviação seria brasileiro.
Autor de livros sobre sobre Santos-Dumont, o físico Henrique Lins de Barros lembra que pelos documentos, principalmente recortes de jornais franceses, ingleses, americanos, é possível ter uma noção de como o voo mexia com o imaginário das pessoas no começo do século 20. Não por acaso, os grandes feitos na aviação transformaram Santos-Dumont num dos brasileiros de maior projeção internacional da história. Nos recortes que passaram décadas esquecidos no porão do Flamengo, há desde registros do Brasil, seu primeiro e minúsculo balão, até imagens da Demoiselle, seu último e mais popular avião.
O dia histórico de 1901 em que o aviador contornou a Torre Eiffel com seu dirigível n.º 6 mereceu ampla cobertura. Assim como acidentes que quase lhe custaram a vida. Alguns ficaram famosos. Entre eles os do pouso forçado do n.º 5 nos jardins da propriedade do milionário Edmond de Rothschild, em 13 de julho de 1901, e o do choque dias depois do mesmo n.º 5 contra os telhados do Hotel Trocadero. Foi em 8 de agosto de 1901. O aviador ficou pendurado a 20 metros de altura. Bombeiros lhe salvaram. Três dias depois, jornais da cidade publicaram uma carta de agradecimento do aviador à corporação. No ano seguinte, ele foi fazer experiências em Mônaco, a convite do príncipe Alberto I. Em 14 de fevereiro, na quinta ascensão sobre a Baía de Mônaco, caiu no mar com seu nº 6. Os jornais também fizeram grande cobertura do acidente e do resgate.
Várias fotos sob guarda do Cendoc possuem mais de uma cópia, o que sugere que Santos-Dumont tinha por hábito contratar fotógrafos para cobrir apresentações de seus inventos importantes e até dias de trabalho no hangar. “Só de uma imagem do 14-Bis, por exemplo, havia 49 repetições no acervo original”, conta o sargento Ruggery Gonzaga de Melo, auxiliar do Projeto Acervo Santos-Dumont do Cendoc.
Num dos envelopes da subsérie Balões, Aeronaves e Outros, de número 12, há cinco cópias da imagem da estrutura inferior e da hélice de um dirigível estacionado no hangar. Já no envelope 11, há 11 cópias do retrato de Santos-Dumont sentado num dirigível dentro do mesmo hangar, com funcionários trabalhando ao redor. Alguns deles têm imagem borrada, provavelmente por terem se movido numa época em que o registro da foto demandava um tempo de exposição bem maior do que um clique.
Muitas imagens mostram espectadores ao redor dos balões e do próprio Santos-Dumont, o que comprova a popularidade de suas criações. Às vezes, o público é visto em primeiro plano, com a maior parte das cabeças cobertas por chapéu, e o balão em segundo. Numa das imagens do voo histórico do 14-Bis chama a atenção, além das pessoas, um burrico que Santos-Dumont usava para ajudá-lo nos testes. Com uma curiosidade: assim como outras fotos de Santos-Dumont, ela aparece em mais de um acervo – no do Cendoc e do Museu Paulista.
A maioria das fotos não tem data nem identificação do fotógrafo, mas, entre as exceções, destaca-se o nome do profissional P. Raffaele. Numa das fotos com sua identificação, Santos-Dumont voa na França com um de seus dirigíveis, provavelmente o número 5. Em outra, aparecem no suporte da imagem alguns dados sobre o estúdio do fotógrafo, Le Photographie Cycliste, que funcionava em Paris.
Algumas fotos trazem anotações que, segundo os pesquisadores do Centro de Documentação da Aeronáutica, são do próprio Santos-Dumont. Como uma série do “Congresso Internacional (de Aeronáutica no Aeródromo) de Saint Cloud”, em setembro de 1900, em que, além do nome do evento, ele também escreve em inglês: Visita do professor Samuel P. Langley, físico americano e pioneiro da aviação. Em outra foto, o aeronauta anotou o preço cobrado pelas imagens segundo as quantidades: uma saía por 4$000, duas por 8$000, três por 10$000, seis por 18$000 e 12 por 35$000.
“Santos-Dumont foi um gênio no marketing pessoal”, confirma Solange Ferraz de Lima, docente e curadora de acervos de imagens do Museu Paulista. “Ele sabia promover o que estava fazendo, chamava a imprensa quando ia apresentar alguma criação, tinha um relacionamento muito legal com a população parisiense. Por isso sua figura ficou tão presente até hoje.”
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