Extermínio
guarani-caiová

Taquara. Acampamento montado por guaranis-caiovás ao lado de plantação em Juti (MS) Dida Sampaio / Estadão

Vivendo à beira das BRs, etnia é vítima de ameaças e emboscadas frequentes

Sentença de ministra do Supremo diz que há 70 anos não existe índio em área de disputa secular com ruralistas

Os tratores se movimentam entre a plantação e um pedaço de mata na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, a 320 km de Campo Grande (MS). A poucos metros dali, uma família guarani-caiová, acampada num canto da propriedade, tenta se concentrar nas orações diante de uma cova improvisada. Duas semanas antes, Virgílio Veron, de 47 anos, cometeu suicídio ao saber que a Justiça havia determinado nova retirada dos índios.

Vídeo Índios guaranis-caiovás são expulsos de terras tradicionais por grileiros e madeireiros

A possível chegada de tropas para despejar as famílias deixou a comunidade em estado de tensão. Naqueles dias, Virgílio não escondia o temor. “Ele não conseguia dormir ou comer. Deixou seis filhos, não suportou”, diz Valdelice Veron, sua prima.

Mulheres da aldeia já se mataram nessas terras, porque sofreram violência muito ruim (sexual) nas mãos dos pistoleiros”

Em barracos de lona e papelão, os guaranis-caiovás observam os tratores, à espreita. O Estado presenciou o momento em que dois homens armados passaram xingando, de moto, pelo acampamento. Valdelice diz que as agressões são constantes. Os tiros, também.

A área conhecida como Taquara foi reocupada pelos índios em 13 de janeiro. Não foi uma data qualquer. O dia escolhido homenageava o cacique Marcos Veron, de 73 anos, pai de Valdelice que lutou por décadas para reaver a terra da aldeia. Em 2003, foi morto após ser agredido a socos, pontapés e coronhadas de espingarda. Teve traumatismo craniano. Após o assassinato de Veron, quatro filhos morreram em conflitos.

Como outros 600 índios da aldeia, a família Veron passou os últimos anos em barracos de lona, à margem de estradas. “Mataram meu pai e até hoje não houve justiça. Por isso viemos para cá. Não vamos mais sair daqui”, avisa Valdelice.

Ela tinha 24 anos quando perdeu o pai. Hoje, é a voz mais influente entre os guaranis-caiovás para impedir a matança em curso no Mato Grosso do Sul, Estado que acumula mais da metade dos assassinatos de índios ocorridos no País. De 1996 a 2016, foram 957 indígenas assassinados no Brasil, por vários motivos. Pelo menos 209 delas foram por armas de fogo, em conflitos por terra.

A situação no campo tende a ficar mais sangrenta. Ruralistas têm pressionado o governo a liberar a venda de terra para estrangeiros. Querem suspender um parecer da Advocacia-Geral da União que proíbe o avanço internacional. Num cenário onde não se respeita as terras públicas, a abertura deve provocar aumento da especulação de preços e ainda mais tensão sobre os territórios indígenas.

No dia 14 de junho, a 38 km do acampamento dos Veron, pistoleiros mataram o índígena Cloudione Rodrigues Souza, de 26 anos, em Caarapó. Outros seis foram baleados. Josiel Benites, de 12 anos, foi alvejado na barriga. Eles sobreviveram. Três dias depois, outros três guaranis foram alvejados.

“Nunca fomos tratados como gente. Nos chamam de minoria, mas somos muitos. Para vocês, quando alguém morre, acabou. Nós estamos aqui, com nossos antepassados. Eles estão com a gente”, diz Valdelice.

Neta do cacique Marcos Veron, em acampamento da terra indígena Taquara, em Juti (MS). Família permanece unida, na tentativa de reconquistar área ocupada por seus povos ancestrais Dida Sampaio / Estadão
Na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, a 320 quilômetros de Campo Grande (MS), índios guaranis ergueram barracos improvisados, na tentativa de rever as terras que foram habitadas por seus antepassados Dida Sampaio / Estadão
Na entrada do acampamento dos índios guaranis, em Juti (MS), fragmento de carcaça da cabeça de um bode marca a retomada das terras pelos índios Dida Sampaio / Estadão
Pajé guarani-caiová dança e puxa os cantos tradicionais da etnia, que há mais de uma década foi expulsa das terras que habitavam, no Mato Grosso do Sul Dida Sampaio / Estadão
Ñandeci Júlia Cavalhera, esposa do cacique e líder dos índios guaranis-caiovás Marcos Veron, brutalmente assassinado por pistoleiros em 2003, a mando de fazendeiros, no Mato Grosso do Sul Dida Sampaio / Estadão
Nova geração de guaranis-caiovás nasceu fora de suas terras tradicionais, mas hoje fazem parte dos movimentos que tentam retomar parte da terra indígena Taquara, em Juti (MS) Dida Sampaio / Estadão
Araldo Veron, um dos 18 filhos do cacique e líder dos índios guaranis-caiovás Marcos Veron, promete “pintar a terra com o próprio sangue” para reaver a área onde viveram seus antepassados, no Mato Grosso do Sul Dida Sampaio / Estadão
Pagé guarani-caiová na terra indígena Taquara, que foi estudada pela Funai há mais de uma década e já é reconhecida, mas até hoje depende de uma decisão conclusiva do Supremo Tribunal Federal (STF) para a sua demarcação Dida Sampaio / Estadão
Valdelice Veron, hoje uma das principais lideranças dos índios guaranis-caiovás em todo o País, luta com sua família para tentar reaver as terras de seus parentes, no Mato Grosso do Sul. Ameaçada de morte em diversas ocasiões, Valdelice já perdeu quatro irmãos em conflitos por terra Dida Sampaio / Estadão
Criança guarani-caiová vive no acampamento da terra indígena Taquara, onde as noites são comumente marcadas por tiros dados por pistoleiros que vivem na propriedade vizinha, em Juti, no Mato Grosso do Sul Dida Sampaio / Estadão
Descendentes do cacique Marcos Veron, assassinado em 2003, cobram justiça até hoje pela morte do líder guarani-caiová. Veron foi morto aos 70 anos de idade, durante uma tentativa de retornar à sua terra. Foi espancado por funcionários de um fazendeiro, até vir a óbito poucas horas depois Dida Sampaio / Estadão
Mapa da área requerida pelos índios guaranis-caiovás em Juti (MS). No Brasil, vivem hoje cerca de 51 mil índios guaranis, em sete Estados diferentes, sendo a etnia mais numerosa do País. Há ainda índios guaranis que vivem no Paraguai, Bolívia e Argentina Dida Sampaio / Estadão
Menino guarani-caiová vive ao lado de plantação de soja da Fazenda Brasília do Sul, em Juti, a 320 quilômetros de Campo Grande (MS). Além da luta pela terra, índios tentam preservar suas tradições Dida Sampaio / Estadão
Ao lado de plantação de soja, família Veron mostra o local onde foi enterrado, duas semanas antes, o guarani-caiová Virgílio Veron, que cometeu suicídio após saber que a Justiça havia determinado nova reintegração de posse da área Dida Sampaio / Estadão
Povo guarani, que já chegou a ocupar uma área de 350 mil quilômetros quadrados no Mato Grosso do Sul, vive hoje em pequenos lotes espremidos entre propriedades de fazendeiros Dida Sampaio / Estadão
Garoto guarani-caiová reúne lascas de madeira para fazer fogueira e cozinhar alimentos no acampamento da terra indígena Taquara, em Juti (MS), onde famílias esperam a demarcação da área há anos Dida Sampaio / Estadão
Caminhão passa ao lado de índios na terra indígena Taquara, em Juti (MS). Conflitos são quase diários, com ameaças feitas por pessoas armadas que passam em frente ao acampamento dos indígenasDida Sampaio / Estadão

Derrota no STF. Ela promete seguir na luta pelos 9,7 mil hectares em Juti, área que foi estudada pela Funai há mais de uma década. Em 2007, o Ministério Público cobrou demarcação da área, mas o processo não avançou. Em 2014, o Supremo Tribunal Federal aceitou mandado de segurança do ruralista Avelino Antonio Donatti e derrubou a posse imemorial (permanente) para os índios. A favor de Donatti, a ministra Cármen Lúcia argumentou que a fazenda foi adquirida em 1998 e “há mais de 70 anos não existe comunidade indígena na região”. A ministra baseou seu voto num laudo antropológico controverso. O estudo minimiza a expulsão dos guaranis-caiovás em 1940 e tenta sustentar que “apenas alguns” teriam permanecido na área, no trabalho de “peões”. Embora tenha admitido um “desassossego” diante da dificuldade de atender aos anseios da comunidade indígena, “há muito desapossada de suas terras, muitas vezes agravada em seus direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana”, Carmén Lúcia aceitou o pedido.

Valdelice é a expressão real do desassossego. A polícia pode chegar a qualquer hora e sua família voltar para a beira da estrada. “Quando a ministra Carmem Lúcia suspendeu a demarcação, ela assinou a sentença de morte do guarani-caiová, assinou a sentença de morte da família Veron.”

Caiovás perdem bebê após equipe negar socorro

Dercíria Batista Kaiwoá, de 15 anos, correu desesperada pelo mato em busca de um lugar onde seu telefone celular funcionasse. Após várias tentativas, falou com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. O bebê de um ano e dois meses, Jandison Batista, sofria febre alta e uma tosse constante. Não conseguia comer. Na tarde daquela sexta-feira, 13 de novembro de 2015, a situação se agravou. A criança chorava sem parar e respirava com dificuldade.

Denúncia. Dercíria Kaiowá, 15 anos, e Dênis Lopes, 17 anos, culpam o Ministério da Saúde pela morte do filho de 1 ano Dida Sampaio / Estadão

Pelo celular, a mãe relatou a situação do filho aos agentes de saúde e pediu socorro urgente. Dercíria e o marido Dênis Lopes, de 17 anos, estavam com o filho em um barraco da aldeia Kurusu Ambá, acampamento indígena localizado em Coronel Sapucaia, último município do Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai. A Sesai negou ajuda. “Eles disseram que não tinham como vir, porque não tinham autorização para chegar ao acampamento e porque aqui era uma região de muito risco, por causa de pistoleiros. A gente insistiu, falou da situação do nosso filho, mas não vieram”, relata Dercíria. Jandison morreu no dia seguinte, vítima de pneumonia. “Meu filho morreu. A saúde não veio. Outros podem morrer também”, diz Dênis Lopes, pai da criança.

Perguntamos ao casal se havia alguma lembrança do pequeno guarani-caiová, um retrato, roupa ou certidão. Dênis Lopes tirou um celular velho do bolso e mostrou uma foto do filho, única recordação que sobrou do bebê. “Tínhamos todas as coisas dele em casa, mas os pistoleiros vieram e tocaram fogo no nosso barraco. Não sobrou nada. Só ficou essa foto”, diz o pai.

Aconteceu num domingo, 31 de janeiro de 2016, após uma tentativa de um grupo de fazendeiros retirar 200 índios de uma área da fazenda Madama. Por volta do meio-dia, pistoleiros chegaram em caminhonetes de surpresa ao acampamento. Deram tiros para todo lado. Aterrorizados, os índios, adultos e crianças, correram para o mato. Um dos carros carregava um tonel de combustível. Jogaram diesel sobre os barracos e atearam fogo no acampamento.

O coordenador regional da Funai de Ponta Porã, Elder Ribas, classificou aquele ataque como o pior ocorrido na região. O caso foi registrado na Polícia Militar pelo proprietário da fazenda, Aguinaldo Ribeiro, como crime de “esbulho possessório”. No episódio, o fazendeiro disse que os índios “fugiram” após pecuaristas terem soltado “fogos de artifício” para assustá-los.

Desde 2007, quando começou a retomada de Kurusu Ambá, quatro lideranças indígenas foram assassinadas, uma delas na mesma fazenda Madama. Em junho de 2015, os índios foram alvos de agressões violentas, durante uma tentativa de ocupação da terra. Duas crianças desapareceram e casas foram queimadas.

Há quase uma década, a terra indígena Kurusu Ambá está em processo de identificação e delimitação. Desde 2012, o relatório de identificação da área está na Funai, à espera de publicação, conforme termo de ajustamento de conduta firmado com o Ministério Público Federal em 2008. “Estamos abandonados aqui, somos discriminados e ameaçados. Não temos nenhuma segurança, nem dignidade. Somos uma realidade que o governo não quer ver”, diz o cacique Smart Kunumi.

No início de março, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, fez uma visita ao Mato Grosso do Sul, Estado que historicamente responde pela maioria esmagadora de casos de violência contra os povos tradicionais. O Ministério da Saúde indica que, só em 2014, foram registrados 138 assassinatos de índios por motivos diversos em todo o País. Desse total, 41 assassinatos ocorreram no Mato Grosso do Sul. Em 46% dos casos, envolvem pessoas até 29 anos de idade.

Nova estrada divide índios de mil cruzeiros

Líderes carajás divergem sobre impacto da construção de trecho da BR-242 dentro da maior ilha fluvial do mundo

A Ilha do Bananal e o destino dos carajás estão prestes a serem atravessados por uma estrada federal. Sokrowé Karajá, pajé da aldeia Santa Isabel do Morro, ergue o braço para apontar a região da reserva ambiental onde está prevista a abertura de um longo trecho da BR-242. A rodovia levaria o asfalto para dentro da maior ilha fluvial do mundo, uma área equivalente a mais de três vezes o tamanho do Distrito Federal, com quase 20 mil quilômetros quadrados.

É ali que estão quatro mil índios da etnia símbolo do Brasil na propaganda da ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945, e representados numa cédula de mil cruzeiros, do Banco Central, que circulou de 1990 a 1994. A estrada ainda não cruzou os rios, mas divide os índios. O vice-cacique Txiarawa Karajá tenta conter os efeitos das promessas de autoridades da região. “Sou contra a estrada. Quando BR entra em terra indígena traz confusão, traz drogas. Não é bom para nosso povo”, afirma. O pajé Sokrowé Karajá, por sua vez, avalia que a rodovia trará benefícios. “A gente poderia vender coisas na estrada, cobrar pedágio”, diz.

A falta de consenso entre os índios passa ao largo dos planos costurados sem divergências pelos poderes público e privado. Em setembro passado, políticos, fazendeiros e empresários de Mato Grosso e Tocantins se juntaram em uma viagem por 90 quilômetros de estradas de terra dentro da ilha para defender a ligação dos dois Estados. Em motocicletas, carros e caminhões, fizeram o “Rally Logístico”, evento regado a álcool e mulheres para mostrar que, na seca, entre maio e outubro, é possível fazer a travessia. Na cheia, entre novembro e abril, os trechos ficam intrafegáveis, parte embaixo d'água.

A chamada Rodovia Transbananal faz parte de um projeto idealizado pelo governo Juscelino Kubitschek e iniciado pelos militares, em 1973. A ilha entrou no mapa do traçado da BR-242, que corta o Mato Grosso e avança pelo Tocantins, com centenas de quilômetros de estrada de terra e, dali, segue asfaltada até o litoral da Bahia, somando 2,3 mil quilômetros. Políticos e empresários dizem que dependem apenas de um decreto da Presidência da República para o início da obra, reduzindo em 1.100 quilômetros o transporte de cargas de Leste a Oeste do País, desafogando os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR). Nas planilhas, se estima que R$ 1 bilhão será despejado na construção da estrada. A coordenação da Funai em São Félix do Araguaia informou que nunca recebeu estudo sobre quais seriam os impactos da obra na vida dos carajás, javaés e avá-canoeiros. A informação foi confirmada pela sede da autarquia, em Brasília. “A Funai não tem conhecimento do projeto, e não foi instada a se manifestar”, declarou. “Conforme prevê a legislação ambiental, a Funai, como órgão indigenista oficial, tem a obrigação de se manifestar em todo e qualquer licenciamento de obras que afetem, direta ou indiretamente, as terras e comunidades indígenas.”

Onda de suicídio de adolescentes assusta carajás

Foram ao menos 18 casos desde 2012, quando a luz elétrica chegou à aldeia; cacique fala de contato com brancos a feitiçaria

A noite do sábado 13 de fevereiro foi tensa na casa do diretor da escolinha da aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, em Tocantins. Horas antes de viajar a Palmas em busca de socorro para estancar a série de suicídios de jovens da comunidade, Txiarawa Karajá, 38 anos, teve de desfazer a mochila. Seu filho de 17 anos tinha tentado se enforcar. Salvo a tempo pelo pai, o jovem relatou que teve uma visão. Seu irmão, que se matou em 2014, quando tinha apenas 13 anos, pedia-lhe para ir morar com ele.

Vídeo No Tocantins, Carajás enfrentam onda de suicídio. Em Rondônia, a poluição do Rio Roosevelt, na terra dos Cinta-larga

Pela manhã do domingo, o cacique da aldeia, Manaije Karajá, 32 anos, no cais de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, cidade mais próxima, se aproxima da equipe de reportagem para relatar o drama da comunidade. É um claro pedido de socorro. “O vice-cacique iria comigo para Palmas conversar com procuradores. Mas não deu para ele vir. Teve problema com o filho”, relata Manaije. “Vocês precisam ir até a aldeia para conversar com as famílias. A gente não sabe mais para quem recorrer.”

A aldeia de Manaije conta com 900 índios, entre adultos e crianças. É um povo que tem no Araguaia, o Berohoky – o grande rio de pirarucus e tucunarés – sua principal fonte de alimentos. A terra da ilha do Bananal é habitada em sua superfície pelos vivos e, nas suas profundidades, por mitos e por quem morreu. Os carajás costumam chorar ao máximo pelos seus mortos para, depois de alguns dias, esquecê-los. Uma estratégia para isso é não citar os nomes deles, algo que se tornou difícil desde que a série de suicídios começou.

O cacique conta 18 suicídios de jovens entre 13 e 25 anos desde 2012, ano em que a luz elétrica chegou. A causa da tragédia é algo tão complexo quanto o futuro que se espera para os carajás. “A gente não sabe definir o certo. Uns dizem que é o contato com os brancos, outros que é feitiçaria. Também falam em comida envenenada na cidade, ociosidade e falta de dinheiro para comprar as coisas”, diz Manaije. Ele conta que a comunidade apelou para o futebol, na tentativa de ter uma ocupação que integre a aldeia e contenha a série de mortes. “A gente iluminou a quadra de esporte para tentar diminuir um pouco (os suicídios), ocupar o tempo deles, reduzir o problema, mas não acabou”, afirma. “É uma depressão que dá nos meninos, uma raiva de si mesmo.”

Manaije Karajá, 32 anos, cacique da aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, em Tocantins, diz que o principal problema do povo carajá é o alto índice de suicídio, principalmente entre jovens Dida Sampaio / Estadão
Menino carajá na porta de sua casa, na Ilha do Bananal, Tocantins. Ao lado de sua aldeia, conhecida como Santa Isabel do Morro, os governos do Mato Grosso e do Tocantins planejam construir uma longa estrada para ligar os dois Estados, cruzando o Rio Araguaia Dida Sampaio / Estadão
Em Espigão D’Oeste, o cacique Rondon Cinta-larga e sua família reclamam da constante pressão de garimpeiros em suas terras, por conta de jazidas de diamantes. Em dezembro de 2015, uma semana após receber a reportagem, aldeia foi alvo de uma Operação Crátons, da Polícia Federal, um desmembramento da Lava Jato para combater a extração e comercialização ilegal de diamantes em terras dos índios cintas-largas, em Rondônia Dida Sampaio / Estadão
Próxima à entrada da reserva indígena Parque do Aripuanã, dos índios cintas-largas, em Rondônia, áreas são devastadas pela ação ilegal de madeireiros Dida Sampaio / Estadão
Crianças da etnia cinta-larga tomam banho nas águas quentes do lendário Rio Roosevelt, na região de Espigão D’Oeste, em Rondônia. O rio, que originalmente se chamava “Rio da Dúvida”, foi batizado a partir de uma expedição feita no início do século XX pelo ex-presidente americano Theodore Roosevelt, em suas incursões pelo interior do Brasil Dida Sampaio / Estadão
Índios carajás ensaiam a dança dos “Aruanãs”, espíritos que dominam a vida e a morte da etnia. A dança faz parte de um ritual que celebra a passagens de meninos para a vida adulta, quando o garoto carajá deixa para trás o período Weryryhykỹ e entra na fase de Jiré, em seus primeiros contatos para se tornar um homem Iny Dida Sampaio / Estadão
Um dia antes de receber a reportagem, Txiarawa Karajá, 38 anos, vice-cacique da aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, em Tocantins, conseguiu evitar o suicídio de seu filho de 17 anos, que tinha tentado se enforcar na noite anterior, prática que tem se espalhado entre os indígenas da região Dida Sampaio / Estadão
Garoto carajá observa ensaio da dança dos “Aruanãs”, na Ilha do Bananal, em Tocantins Dida Sampaio / Estadão
Crianças cintas-largas nadam no Rio Roosevelt, em reserva indígena localizada a cerca de 70 quilômetros de Espigão D’Oeste, em Rondônia. Índios reclamam que têm ocorrido casos de contaminação da água, por conta do uso de defensivos agrícolas nas cabeceiras do rio, na região de Vilhena Dida Sampaio / Estadão
A arte das cerâmicas é tradição dos índios carajás, na Ilha do Bananal, em Tocantins. Até os anos 1940, as ritxoko (boneca, na fala das mulheres carajás) ou ritxoo (termo usado na fala dos homens) eram de barro cru, com cabeleiras de cera de abelha, não passavam de cinco centímetros e tinham formas triangulares, sem pernas e braços definidos. Eram pintadas apenas com urucum, jenipapo e barro vermelho. Depois, as ceramistas indígenas passaram a usar tintas industriais e a produzir bonecas maiores, queimadas em fornos, com os membros do corpo detalhadosDida Sampaio / Estadão

Manaije relata casos de adolescentes que pediram aos pais tênis e motocicletas e que, diante da negativa, foram para o mato com uma corda e se enforcaram. O uso indiscriminado de bebida alcoólica se espalhou entre muitos índios. Em pequenas garrafas de plástico, garotos cheiram gasolina até perderem os sentidos. A possibilidade dos casos estarem relacionados com feitiçaria de outras aldeias tem aumentado a tensão em Santa Isabel do Morro, criando as figuras dos pajés do bem e do mal, mas sem que os nomes de uns e outros fiquem claros. Os pajés do bem são os responsáveis em acabar com o efeito das feitiçarias.

Em meio a tensão, é tempo da dança dos Aruanãs, os espíritos que dominam a vida e a morte dos carajás. No último mês de fevereiro, crianças se preparavam para o ritual da iniciação, quando homens com máscaras e roupas de palhas de buritis ensaiam o ritual, percorrendo uma estrada da aldeia em cantos cadenciados, para anunciar o novo momento do menino carajá. As mulheres são proibidas de se aproximar da casa dos Aruanãs, uma maloca de palha erguida a certa distância da aldeia, onde os homens preparam as vestimentas.

No local sagrado, o menino Wereudi Karajá, de 13 anos, terá seu corpo pintado de preto e será confinado por oito dias. Ele poderá sair apenas à noite para se alimentar e fazer necessidades. Será sua passagem da infância para a vida adulta, quando deixará para trás o período Weryryhykỹ e entrará na fase de Jiré, em seus primeiros contatos para se tornar um homem Iny.

Cerâmica. A etnia tem contato com a sociedade nacional desde o século XIX. O povo iny, como os carajás se autodefinem, tem mantido de forma surpreendente tradições que sempre fascinaram intelectuais e pesquisadores. A arte das ceramistas é uma delas. Até os anos 1940, as ritxoko (boneca na fala das mulheres carajás) ou ritxoo (termo usado na fala dos homens) eram de barro cru, com cabeleiras de cera de abelha, não passavam de cinco centímetros e tinham formas triangulares, sem pernas e braços definidos. Eram pintadas apenas com urucum, jenipapo e barro vermelho. Depois, as ceramistas passaram a produzir bonecas maiores, queimadas em fornos, com os membros do corpo detalhados. Também começaram a usar tintas industriais. O tempo e o contato com as cidades, porém, não acabaram com o modo tradicional de fazer as bonecas. Em Santa Isabel do Morro, Mahuederu Karajá, uma das mais antigas ceramistas, produz ritxokos ou ritxoos nas formas antigas e novas. Pelo menos na cerâmica, marcada no passado e no presente por um grafismo sofisticado, os carajás demonstram que a complexa cultura do Bananal consegue absorver conhecimentos e pressões de quem mora do outro lado do rio.

Índios acusam Bumlai de contaminar rio em Dourados

Os pequenos guarani-caiová deitam na terra para beber a água que desce pelo córrego do acampamento indígena Apyka’i, a sete quilômetros do centro de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Sandrieli, de seis anos de idade, e Jackson, de quatros anos, esticam o pescoço e mergulham o rosto no fio de água suja que corre ao lado da rodovia BR-463. Crises de vômito, diarreia e febre passaram a ser rotina na vida das crianças. Feridas aparecem pelo corpo.

O pequeno Jackson Kaiowá, de quatro anos, passa pela cerca do acampamento Apyka’i, onde vivia com a família, a sete quilômetros do centro de Dourados, no Mato Grosso do Sul. No início de julho, Jackson e seus parentes foram despejados após novo processo de reintegração de posse. O acampamento foi destruído Dida Sampaio / Estadão
Damiana Cavanha, da etnia guarani-caiová, é uma das últimas resistências indígenas que lutam por um pedaço de terra numa área próxima ao centro de Dourados (MS), onde estão enterrados seus antepassados Dida Sampaio / Estadão
Crianças guaranis-caiovás brincam em acampamento ao lado da BR-463, onde é comum a ocorrência de atropelamentos de indígenas e outros assentados que vivem ao longo da estrada Dida Sampaio / Estadão
Índios vivem em situação precária a sete quilômetros do centro de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Água utilizada para beber e lavar passa por dentro de plantações e foi contaminada por defensivos agrícolas Dida Sampaio / Estadão
Família de Damiana Cavanha (à direita), da etnia guarani-caiová, sobrevive como pode, enquanto aguarda a definição sobre a terra indígena Apyka’i, desde 2009. Em julho, eles foram expulsos do local Dida Sampaio / Estadão
Faixa erguida por moradores de acampamento nas margens da BR-463, em Dourados (MS). Região é utilizada para produção de cana do pecuarista José Carlos Bumlai Dida Sampaio / Estadão
Família de índios guaranis-caiovás plantam mandioca e produzem artesanatos em suas aldeias, para depois vendê-los na cidade e comprar alimentos, como pães, na região de Sidrolândia (MS) Dida Sampaio / Estadão
Dercíria Batista Kaiwoá, de 15 anos, e Dênis Lopes Kaiwoá, de 17 anos, perderam o filho de um ano e dois meses, Jandison Batista, por falta de atendimento médico, em Coronel Sapucaia, último município do Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai Dida Sampaio / Estadão
Índios guaranis-caiovás na terra indígena Kurusu Ambá, alvos constantes de ameaças e tiroteio por fazendeiros e grileiros de terra da região de Coronel Sapucaia, no Mato Grosso do SulDida Sampaio / Estadão

A água que contamina os meninos kaiowá passa por terras arrendadas por um pecuarista que ganhou notoriedade nos inquéritos da Polícia Federal. Atrás dos barracos onde hoje sobrevivem as famílias indígenas, floresce a plantação de cana financiada por José Carlos Bumlai, amigo pessoal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva preso desde novembro pela Operação Lava Jato por uma série de suspeitas, entre elas a de contratar empréstimos simulados para beneficiar o PT.

Bumlai aluga as terras da Fazenda Serrana e de outras propriedades para alimentar os caldeirões de sua usina, a São Fernando Açúcar e Álcool. A empresa, que no papel está no nome de seus filhos, Guilherme e Maurício Bumlai, é investigada pela Lava Jato e tem dívida superior a R$ 1 bilhão. Desse passivo, cerca de R$ 400 milhões são devidos ao BNDES, um imbróglio financeiro distante da realidade e da compreensão de índios que, desde 2009, aguardam uma definição sobre seu pedaço de terra. “Aqui é nosso lugar sagrado, nosso ‘tekoha’, a terra onde estão enterrados nossos antepassados. Não adianta querer tirar a gente daqui. A vida da gente só tem sentido se for em cima dessa terra”, diz a kaiowá Damiana Cavanha, avó de Sandrieli e Jackson.

O acampamento Apyka’i expõe o cenário de abandono e degradação que se espalha entre os índios guarani-caiová que vivem no Mato Grosso do Sul. Desde 1999, quando foram expulsos da terra, esse grupo de índios perambula pela região, sobrevivendo como pode. Seis pessoas da comunidade, entre elas duas crianças, morreram atropeladas. Em fevereiro de 2014, Delci Lopes, de 17 anos, estava ao lado do marido, quando um caminhão carregado com bagaço de cana atingiu a moça na margem da BR-463 e arrastou seu corpo por alguns metros. Uma anciã da aldeia, diz Damiana Cavanha, morreu após ser alvo do veneno borrifado na lavoura. “Aquilo caiu em cima dela. Ela adoeceu e morreu poucos dias depois.”

A São Fernando disse à reportagem que possui um “rigoroso plano de monitoramento ambiental” sobre as fontes de água da região e que cumpre a legislação, sem nunca ter sido questionada sobre casos de contaminação. A empresa declarou que, em 20 de setembro de 2013, índios invadiram a fazenda e impediram seus funcionário de entrar na área, ameaçados com paus, pedras, facões, arcos e flechas. A usina parou. “Desde essa data, a São Fernando nunca mais entrou na área, estando suspenso o contrato com a Fazenda Serrana”, disse.

Hoje a área ocupada pelos índios é alvo de uma nova ordem de reintegração de posse. Em condições sub-humanas, os índios esperam por estudos para a demarcação da terra ancestral, um processo arrastado em meio a uma sucessão de ações judiciais e quatro ações de despejo. A mais recente foi dada em setembro de 2015 pela 1ª Vara Federal de Dourados. A Advocacia-Geral da União (AGU) não recorreu da decisão, sob alegação de que não há um processo formal de demarcação em andamento. O pedido pega poeira nas prateleiras da Funai. Acuada numa área inferior a três hectares na comunidade “Curral do Arame”, Damiana Cavanha sabe que a decisão de deixar o local pode ser executada a qualquer instante. “Não temos para onde ir. O que a gente quer é ficar com nossos antepassados, nosso pedaço de chão. Pedimos, por favor, nos deixem em paz.”