Sentença de ministra do Supremo diz que há 70 anos não existe índio em área de disputa secular com ruralistas
Os tratores se movimentam entre a plantação e um pedaço de mata na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, a 320 km de Campo Grande (MS). A poucos metros dali, uma família guarani-caiová, acampada num canto da propriedade, tenta se concentrar nas orações diante de uma cova improvisada. Duas semanas antes, Virgílio Veron, de 47 anos, cometeu suicídio ao saber que a Justiça havia determinado nova retirada dos índios.
A possível chegada de tropas para despejar as famílias deixou a comunidade em estado de tensão. Naqueles dias, Virgílio não escondia o temor. “Ele não conseguia dormir ou comer. Deixou seis filhos, não suportou”, diz Valdelice Veron, sua prima.
Mulheres da aldeia já se mataram nessas terras, porque sofreram violência muito ruim (sexual) nas mãos dos pistoleiros”
Em barracos de lona e papelão, os guaranis-caiovás observam os tratores, à espreita. O Estado presenciou o momento em que dois homens armados passaram xingando, de moto, pelo acampamento. Valdelice diz que as agressões são constantes. Os tiros, também.
A área conhecida como Taquara foi reocupada pelos índios em 13 de janeiro. Não foi uma data qualquer. O dia escolhido homenageava o cacique Marcos Veron, de 73 anos, pai de Valdelice que lutou por décadas para reaver a terra da aldeia. Em 2003, foi morto após ser agredido a socos, pontapés e coronhadas de espingarda. Teve traumatismo craniano. Após o assassinato de Veron, quatro filhos morreram em conflitos.
Como outros 600 índios da aldeia, a família Veron passou os últimos anos em barracos de lona, à margem de estradas. “Mataram meu pai e até hoje não houve justiça. Por isso viemos para cá. Não vamos mais sair daqui”, avisa Valdelice.
Ela tinha 24 anos quando perdeu o pai. Hoje, é a voz mais influente entre os guaranis-caiovás para impedir a matança em curso no Mato Grosso do Sul, Estado que acumula mais da metade dos assassinatos de índios ocorridos no País. De 1996 a 2016, foram 957 indígenas assassinados no Brasil, por vários motivos. Pelo menos 209 delas foram por armas de fogo, em conflitos por terra.
A situação no campo tende a ficar mais sangrenta. Ruralistas têm pressionado o governo a liberar a venda de terra para estrangeiros. Querem suspender um parecer da Advocacia-Geral da União que proíbe o avanço internacional. Num cenário onde não se respeita as terras públicas, a abertura deve provocar aumento da especulação de preços e ainda mais tensão sobre os territórios indígenas.
No dia 14 de junho, a 38 km do acampamento dos Veron, pistoleiros mataram o índígena Cloudione Rodrigues Souza, de 26 anos, em Caarapó. Outros seis foram baleados. Josiel Benites, de 12 anos, foi alvejado na barriga. Eles sobreviveram. Três dias depois, outros três guaranis foram alvejados.
“Nunca fomos tratados como gente. Nos chamam de minoria, mas somos muitos. Para vocês, quando alguém morre, acabou. Nós estamos aqui, com nossos antepassados. Eles estão com a gente”, diz Valdelice.
Derrota no STF. Ela promete seguir na luta pelos 9,7 mil hectares em Juti, área que foi estudada pela Funai há mais de uma década. Em 2007, o Ministério Público cobrou demarcação da área, mas o processo não avançou. Em 2014, o Supremo Tribunal Federal aceitou mandado de segurança do ruralista Avelino Antonio Donatti e derrubou a posse imemorial (permanente) para os índios. A favor de Donatti, a ministra Cármen Lúcia argumentou que a fazenda foi adquirida em 1998 e “há mais de 70 anos não existe comunidade indígena na região”. A ministra baseou seu voto num laudo antropológico controverso. O estudo minimiza a expulsão dos guaranis-caiovás em 1940 e tenta sustentar que “apenas alguns” teriam permanecido na área, no trabalho de “peões”. Embora tenha admitido um “desassossego” diante da dificuldade de atender aos anseios da comunidade indígena, “há muito desapossada de suas terras, muitas vezes agravada em seus direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana”, Carmén Lúcia aceitou o pedido.
Valdelice é a expressão real do desassossego. A polícia pode chegar a qualquer hora e sua família voltar para a beira da estrada. “Quando a ministra Carmem Lúcia suspendeu a demarcação, ela assinou a sentença de morte do guarani-caiová, assinou a sentença de morte da família Veron.”
Caiovás perdem bebê após equipe negar socorro
Dercíria Batista Kaiwoá, de 15 anos, correu desesperada pelo mato em busca de um lugar onde seu telefone celular funcionasse. Após várias tentativas, falou com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. O bebê de um ano e dois meses, Jandison Batista, sofria febre alta e uma tosse constante. Não conseguia comer. Na tarde daquela sexta-feira, 13 de novembro de 2015, a situação se agravou. A criança chorava sem parar e respirava com dificuldade.
Pelo celular, a mãe relatou a situação do filho aos agentes de saúde e pediu socorro urgente. Dercíria e o marido Dênis Lopes, de 17 anos, estavam com o filho em um barraco da aldeia Kurusu Ambá, acampamento indígena localizado em Coronel Sapucaia, último município do Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai. A Sesai negou ajuda. “Eles disseram que não tinham como vir, porque não tinham autorização para chegar ao acampamento e porque aqui era uma região de muito risco, por causa de pistoleiros. A gente insistiu, falou da situação do nosso filho, mas não vieram”, relata Dercíria. Jandison morreu no dia seguinte, vítima de pneumonia. “Meu filho morreu. A saúde não veio. Outros podem morrer também”, diz Dênis Lopes, pai da criança.
Perguntamos ao casal se havia alguma lembrança do pequeno guarani-caiová, um retrato, roupa ou certidão. Dênis Lopes tirou um celular velho do bolso e mostrou uma foto do filho, única recordação que sobrou do bebê. “Tínhamos todas as coisas dele em casa, mas os pistoleiros vieram e tocaram fogo no nosso barraco. Não sobrou nada. Só ficou essa foto”, diz o pai.
Aconteceu num domingo, 31 de janeiro de 2016, após uma tentativa de um grupo de fazendeiros retirar 200 índios de uma área da fazenda Madama. Por volta do meio-dia, pistoleiros chegaram em caminhonetes de surpresa ao acampamento. Deram tiros para todo lado. Aterrorizados, os índios, adultos e crianças, correram para o mato. Um dos carros carregava um tonel de combustível. Jogaram diesel sobre os barracos e atearam fogo no acampamento.
O coordenador regional da Funai de Ponta Porã, Elder Ribas, classificou aquele ataque como o pior ocorrido na região. O caso foi registrado na Polícia Militar pelo proprietário da fazenda, Aguinaldo Ribeiro, como crime de “esbulho possessório”. No episódio, o fazendeiro disse que os índios “fugiram” após pecuaristas terem soltado “fogos de artifício” para assustá-los.
Desde 2007, quando começou a retomada de Kurusu Ambá, quatro lideranças indígenas foram assassinadas, uma delas na mesma fazenda Madama. Em junho de 2015, os índios foram alvos de agressões violentas, durante uma tentativa de ocupação da terra. Duas crianças desapareceram e casas foram queimadas.
Há quase uma década, a terra indígena Kurusu Ambá está em processo de identificação e delimitação. Desde 2012, o relatório de identificação da área está na Funai, à espera de publicação, conforme termo de ajustamento de conduta firmado com o Ministério Público Federal em 2008. “Estamos abandonados aqui, somos discriminados e ameaçados. Não temos nenhuma segurança, nem dignidade. Somos uma realidade que o governo não quer ver”, diz o cacique Smart Kunumi.
No início de março, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, fez uma visita ao Mato Grosso do Sul, Estado que historicamente responde pela maioria esmagadora de casos de violência contra os povos tradicionais. O Ministério da Saúde indica que, só em 2014, foram registrados 138 assassinatos de índios por motivos diversos em todo o País. Desse total, 41 assassinatos ocorreram no Mato Grosso do Sul. Em 46% dos casos, envolvem pessoas até 29 anos de idade.
Nova estrada divide índios de mil cruzeiros
Líderes carajás divergem sobre impacto da construção de trecho da BR-242 dentro da maior ilha fluvial do mundo
A Ilha do Bananal e o destino dos carajás estão prestes a serem atravessados por uma estrada federal. Sokrowé Karajá, pajé da aldeia Santa Isabel do Morro, ergue o braço para apontar a região da reserva ambiental onde está prevista a abertura de um longo trecho da BR-242. A rodovia levaria o asfalto para dentro da maior ilha fluvial do mundo, uma área equivalente a mais de três vezes o tamanho do Distrito Federal, com quase 20 mil quilômetros quadrados.
É ali que estão quatro mil índios da etnia símbolo do Brasil na propaganda da ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945, e representados numa cédula de mil cruzeiros, do Banco Central, que circulou de 1990 a 1994. A estrada ainda não cruzou os rios, mas divide os índios. O vice-cacique Txiarawa Karajá tenta conter os efeitos das promessas de autoridades da região. “Sou contra a estrada. Quando BR entra em terra indígena traz confusão, traz drogas. Não é bom para nosso povo”, afirma. O pajé Sokrowé Karajá, por sua vez, avalia que a rodovia trará benefícios. “A gente poderia vender coisas na estrada, cobrar pedágio”, diz.
A falta de consenso entre os índios passa ao largo dos planos costurados sem divergências pelos poderes público e privado. Em setembro passado, políticos, fazendeiros e empresários de Mato Grosso e Tocantins se juntaram em uma viagem por 90 quilômetros de estradas de terra dentro da ilha para defender a ligação dos dois Estados. Em motocicletas, carros e caminhões, fizeram o “Rally Logístico”, evento regado a álcool e mulheres para mostrar que, na seca, entre maio e outubro, é possível fazer a travessia. Na cheia, entre novembro e abril, os trechos ficam intrafegáveis, parte embaixo d'água.
A chamada Rodovia Transbananal faz parte de um projeto idealizado pelo governo Juscelino Kubitschek e iniciado pelos militares, em 1973. A ilha entrou no mapa do traçado da BR-242, que corta o Mato Grosso e avança pelo Tocantins, com centenas de quilômetros de estrada de terra e, dali, segue asfaltada até o litoral da Bahia, somando 2,3 mil quilômetros. Políticos e empresários dizem que dependem apenas de um decreto da Presidência da República para o início da obra, reduzindo em 1.100 quilômetros o transporte de cargas de Leste a Oeste do País, desafogando os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR). Nas planilhas, se estima que R$ 1 bilhão será despejado na construção da estrada. A coordenação da Funai em São Félix do Araguaia informou que nunca recebeu estudo sobre quais seriam os impactos da obra na vida dos carajás, javaés e avá-canoeiros. A informação foi confirmada pela sede da autarquia, em Brasília. “A Funai não tem conhecimento do projeto, e não foi instada a se manifestar”, declarou. “Conforme prevê a legislação ambiental, a Funai, como órgão indigenista oficial, tem a obrigação de se manifestar em todo e qualquer licenciamento de obras que afetem, direta ou indiretamente, as terras e comunidades indígenas.”
Onda de suicídio de adolescentes assusta carajás
Foram ao menos 18 casos desde 2012, quando a luz elétrica chegou à aldeia; cacique fala de contato com brancos a feitiçaria
A noite do sábado 13 de fevereiro foi tensa na casa do diretor da escolinha da aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, em Tocantins. Horas antes de viajar a Palmas em busca de socorro para estancar a série de suicídios de jovens da comunidade, Txiarawa Karajá, 38 anos, teve de desfazer a mochila. Seu filho de 17 anos tinha tentado se enforcar. Salvo a tempo pelo pai, o jovem relatou que teve uma visão. Seu irmão, que se matou em 2014, quando tinha apenas 13 anos, pedia-lhe para ir morar com ele.
Pela manhã do domingo, o cacique da aldeia, Manaije Karajá, 32 anos, no cais de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, cidade mais próxima, se aproxima da equipe de reportagem para relatar o drama da comunidade. É um claro pedido de socorro. “O vice-cacique iria comigo para Palmas conversar com procuradores. Mas não deu para ele vir. Teve problema com o filho”, relata Manaije. “Vocês precisam ir até a aldeia para conversar com as famílias. A gente não sabe mais para quem recorrer.”
A aldeia de Manaije conta com 900 índios, entre adultos e crianças. É um povo que tem no Araguaia, o Berohoky – o grande rio de pirarucus e tucunarés – sua principal fonte de alimentos. A terra da ilha do Bananal é habitada em sua superfície pelos vivos e, nas suas profundidades, por mitos e por quem morreu. Os carajás costumam chorar ao máximo pelos seus mortos para, depois de alguns dias, esquecê-los. Uma estratégia para isso é não citar os nomes deles, algo que se tornou difícil desde que a série de suicídios começou.
O cacique conta 18 suicídios de jovens entre 13 e 25 anos desde 2012, ano em que a luz elétrica chegou. A causa da tragédia é algo tão complexo quanto o futuro que se espera para os carajás. “A gente não sabe definir o certo. Uns dizem que é o contato com os brancos, outros que é feitiçaria. Também falam em comida envenenada na cidade, ociosidade e falta de dinheiro para comprar as coisas”, diz Manaije. Ele conta que a comunidade apelou para o futebol, na tentativa de ter uma ocupação que integre a aldeia e contenha a série de mortes. “A gente iluminou a quadra de esporte para tentar diminuir um pouco (os suicídios), ocupar o tempo deles, reduzir o problema, mas não acabou”, afirma. “É uma depressão que dá nos meninos, uma raiva de si mesmo.”
Manaije relata casos de adolescentes que pediram aos pais tênis e motocicletas e que, diante da negativa, foram para o mato com uma corda e se enforcaram. O uso indiscriminado de bebida alcoólica se espalhou entre muitos índios. Em pequenas garrafas de plástico, garotos cheiram gasolina até perderem os sentidos. A possibilidade dos casos estarem relacionados com feitiçaria de outras aldeias tem aumentado a tensão em Santa Isabel do Morro, criando as figuras dos pajés do bem e do mal, mas sem que os nomes de uns e outros fiquem claros. Os pajés do bem são os responsáveis em acabar com o efeito das feitiçarias.
Em meio a tensão, é tempo da dança dos Aruanãs, os espíritos que dominam a vida e a morte dos carajás. No último mês de fevereiro, crianças se preparavam para o ritual da iniciação, quando homens com máscaras e roupas de palhas de buritis ensaiam o ritual, percorrendo uma estrada da aldeia em cantos cadenciados, para anunciar o novo momento do menino carajá. As mulheres são proibidas de se aproximar da casa dos Aruanãs, uma maloca de palha erguida a certa distância da aldeia, onde os homens preparam as vestimentas.
No local sagrado, o menino Wereudi Karajá, de 13 anos, terá seu corpo pintado de preto e será confinado por oito dias. Ele poderá sair apenas à noite para se alimentar e fazer necessidades. Será sua passagem da infância para a vida adulta, quando deixará para trás o período Weryryhykỹ e entrará na fase de Jiré, em seus primeiros contatos para se tornar um homem Iny.
Cerâmica. A etnia tem contato com a sociedade nacional desde o século XIX. O povo iny, como os carajás se autodefinem, tem mantido de forma surpreendente tradições que sempre fascinaram intelectuais e pesquisadores. A arte das ceramistas é uma delas. Até os anos 1940, as ritxoko (boneca na fala das mulheres carajás) ou ritxoo (termo usado na fala dos homens) eram de barro cru, com cabeleiras de cera de abelha, não passavam de cinco centímetros e tinham formas triangulares, sem pernas e braços definidos. Eram pintadas apenas com urucum, jenipapo e barro vermelho. Depois, as ceramistas passaram a produzir bonecas maiores, queimadas em fornos, com os membros do corpo detalhados. Também começaram a usar tintas industriais. O tempo e o contato com as cidades, porém, não acabaram com o modo tradicional de fazer as bonecas. Em Santa Isabel do Morro, Mahuederu Karajá, uma das mais antigas ceramistas, produz ritxokos ou ritxoos nas formas antigas e novas. Pelo menos na cerâmica, marcada no passado e no presente por um grafismo sofisticado, os carajás demonstram que a complexa cultura do Bananal consegue absorver conhecimentos e pressões de quem mora do outro lado do rio.
Índios acusam Bumlai de contaminar rio em Dourados
Os pequenos guarani-caiová deitam na terra para beber a água que desce pelo córrego do acampamento indígena Apyka’i, a sete quilômetros do centro de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Sandrieli, de seis anos de idade, e Jackson, de quatros anos, esticam o pescoço e mergulham o rosto no fio de água suja que corre ao lado da rodovia BR-463. Crises de vômito, diarreia e febre passaram a ser rotina na vida das crianças. Feridas aparecem pelo corpo.
A água que contamina os meninos kaiowá passa por terras arrendadas por um pecuarista que ganhou notoriedade nos inquéritos da Polícia Federal. Atrás dos barracos onde hoje sobrevivem as famílias indígenas, floresce a plantação de cana financiada por José Carlos Bumlai, amigo pessoal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva preso desde novembro pela Operação Lava Jato por uma série de suspeitas, entre elas a de contratar empréstimos simulados para beneficiar o PT.
Bumlai aluga as terras da Fazenda Serrana e de outras propriedades para alimentar os caldeirões de sua usina, a São Fernando Açúcar e Álcool. A empresa, que no papel está no nome de seus filhos, Guilherme e Maurício Bumlai, é investigada pela Lava Jato e tem dívida superior a R$ 1 bilhão. Desse passivo, cerca de R$ 400 milhões são devidos ao BNDES, um imbróglio financeiro distante da realidade e da compreensão de índios que, desde 2009, aguardam uma definição sobre seu pedaço de terra. “Aqui é nosso lugar sagrado, nosso ‘tekoha’, a terra onde estão enterrados nossos antepassados. Não adianta querer tirar a gente daqui. A vida da gente só tem sentido se for em cima dessa terra”, diz a kaiowá Damiana Cavanha, avó de Sandrieli e Jackson.
O acampamento Apyka’i expõe o cenário de abandono e degradação que se espalha entre os índios guarani-caiová que vivem no Mato Grosso do Sul. Desde 1999, quando foram expulsos da terra, esse grupo de índios perambula pela região, sobrevivendo como pode. Seis pessoas da comunidade, entre elas duas crianças, morreram atropeladas. Em fevereiro de 2014, Delci Lopes, de 17 anos, estava ao lado do marido, quando um caminhão carregado com bagaço de cana atingiu a moça na margem da BR-463 e arrastou seu corpo por alguns metros. Uma anciã da aldeia, diz Damiana Cavanha, morreu após ser alvo do veneno borrifado na lavoura. “Aquilo caiu em cima dela. Ela adoeceu e morreu poucos dias depois.”
A São Fernando disse à reportagem que possui um “rigoroso plano de monitoramento ambiental” sobre as fontes de água da região e que cumpre a legislação, sem nunca ter sido questionada sobre casos de contaminação. A empresa declarou que, em 20 de setembro de 2013, índios invadiram a fazenda e impediram seus funcionário de entrar na área, ameaçados com paus, pedras, facões, arcos e flechas. A usina parou. “Desde essa data, a São Fernando nunca mais entrou na área, estando suspenso o contrato com a Fazenda Serrana”, disse.
Hoje a área ocupada pelos índios é alvo de uma nova ordem de reintegração de posse. Em condições sub-humanas, os índios esperam por estudos para a demarcação da terra ancestral, um processo arrastado em meio a uma sucessão de ações judiciais e quatro ações de despejo. A mais recente foi dada em setembro de 2015 pela 1ª Vara Federal de Dourados. A Advocacia-Geral da União (AGU) não recorreu da decisão, sob alegação de que não há um processo formal de demarcação em andamento. O pedido pega poeira nas prateleiras da Funai. Acuada numa área inferior a três hectares na comunidade “Curral do Arame”, Damiana Cavanha sabe que a decisão de deixar o local pode ser executada a qualquer instante. “Não temos para onde ir. O que a gente quer é ficar com nossos antepassados, nosso pedaço de chão. Pedimos, por favor, nos deixem em paz.”