Além de intoxicar adultos e crianças, substância matou plantações e árvores nativas; fazendeiro foi preso e liberado após fiança
O fazendeiro Carlos Raposo, de Nova Guarita, norte de Mato Grosso, contratou uma empresa aérea para lançar agrotóxico nas terras de famílias do Assentamento Raimundo Vieira III, vizinho de sua propriedade. Ele ainda é acusado de intimidações e quebra de cercas. Os assentados cortavam palha de fazer vassoura quando viram um avião amarelo com letras azuis se aproximar no céu, em voo baixo. Pensaram que era uma aeronave da Polícia Federal, que vinha resolver os “problemas”. O avião passou por eles, adiante aumentou a altitude e deu novo rasante. Daí veio um cheiro forte. “É veneno”, gritaram Rudinei Ribeiro, de 36 anos, e a mulher dele, Creuza da Silva Dutra, de 49. O aparelho despejou agrotóxico nos agricultores, nos telhados das casas e nas plantações.
Creuza pegou o celular e telefonou para a amiga Silvana Mota, de 32, que trabalha num pequeno posto de saúde da região. Ao chegar de moto ao assentamento, Silvana ainda viu o pessoal molhado. O agricultor Dalmiro estava deitado num banco, com tontura. Creuza gritava de dores no estômago e ardência nos olhos. Silvana pedia que ninguém tomasse água, para não espalhar o veneno pelo corpo. Seis crianças que estavam dentro das casas foram levadas para o posto de saúde. Vomitavam, reclamavam de dor de cabeça. Horas depois, chegou uma ambulância para levar o agricultor Edenilson Evaristo, de 45 anos, que sofria de problemas de pulmão.
Um morador telefonou para a Polícia Federal. Um agente teria recomendado: “Moço, põe um pano na cabeça e tira foto do avião”. Nem precisou. A polícia foi para o pequeno aeroporto do município de Alta Floresta e encontrou a aeronave. O piloto e o fazendeiro foram presos. Eles saíram da delegacia após pagarem fiança.
Ao retornarem às plantações, um dia depois, os agricultores perceberam que as folhas do milho, da mandioca e da melancia tinham sido atingidas. O bananal também estava comprometido. Técnicos agrícolas confirmaram a perda. “A mandioca deu depois uma casca preta, sem nada dentro”, lembra Edenilson. Eles tiveram de recomeçar a lavoura em outro lugar. A área atingida pelo veneno foi abandonada. A prefeitura suspendeu a compra de hortaliças para abastecer escolas.
A chuva de veneno ainda arrasou as mudas de árvores nativas doadas pelo Instituto Ouro Verde, organização que desenvolve projeto de recuperação de áreas degradadas e expansão de floresta na Amazônia. Até 1995, a área do assentamento tinha angelim, champanhe, mesca, mogno, cedro, marupá, itaúba, castanheira, pequizeiro-da-amazônia, tauru, timbori, canelão e canela-ferro. Grileiros que ocupavam a propriedade, anos antes, derrubaram boa parte da mata nativa. A itaúba, madeira dura, por exemplo, só restou nos troncos das cercas.
Foto. Em entrevista ao Estado, Carlos Raposo admite ter contratado a empresa de aviação para jogar veneno. Ele diz que os assentados, quando viram a aeronave, correram para tirar foto e aí foram atingidos. Os relatórios e ele próprio, no entanto, ressaltam que o veneno foi jogado na terra dos vizinhos. “O pessoal ficou debaixo do avião para tirar fotografia com o celular”, afirmou.
A disputa entre as 23 famílias do assentamento do Incra e o fazendeiro é pela área ocupada por elas, de 409 hectares, o equivalente a 400 campos de futebol. É uma terra avaliada em cerca de R$ 6 milhões por corretores de imóveis de Nova Guarita.
Em 1998, a família de Raposo chegou ao município, onde comprou 143 hectares de uma propriedade com título no cartório. A Fazenda Baixa Verde é vizinha à área da União de 409 hectares, onde o Incra instalaria o Assentamento Raimundo Vieira III. Raposo entrou com processos na Justiça para garantir a posse dessa área e receber pelas “benfeitorias” que teria instalado lá – no caso, cercas. Como nunca teve título da terra, o fazendeiro não construiu casas ou currais. Ele admite que sempre soube que a área pertence à União. Mas reclama da posse. “É só perguntar aos vizinhos se eu não estou aqui desde 1998. Há muito tempo, o pessoal do Incra me disse: ‘Aqui, documento é foice e enxada’.”
As famílias do assentamento dizem que Carlos Raposo foi “oportunista” e “ganancioso”. O fazendeiro tem sobrenome de bandeirante. Raposo é sobrenome materno, uma referência às raposas da Mata Atlântica. “O que dói é ouvir do Incra hoje que eu sou invasor de má-fé”, queixa-se.
‘Não é justo destruírem cerca do meu pai’
A agricultora Nair Antônia da Costa, de 38 anos, foi acordada pela filha Jéssica, de 18. O marido, Edenilson Evaristo, de 45, continuou dormindo no barraco construído no assentamento do Incra, o Raimundo Vieira III, em Nova Guarita. Pelas frestas, elas viram vultos que se tornaram imagens nítidas de homens sob as luzes de faróis de carro. Eles cortavam as cercas com motosserras. “Eu disse para a Jéssica: ‘Vamos ficar quietas, vamos só ouvir. Não acorda seu pai, deixa ele dormindo’. O Edenilson ia ficar nervoso e seria pior”, relata. A filha não queria aceitar a ordem. “Não é justo destruírem cerca do pai.”
No dia seguinte, Edenilson foi tirar leite das vacas. Seus animais, num total de dez, tinham escapado para a estrada. As cercas que montou estavam destruídas. Ele voltou para casa e começou a chorar. “Quando acordei para tirar o leite, vi minhas cercas cortadas. Fui para a Polícia Civil, que mandou eu procurar a Federal, porque a terra é do Incra”, conta. “A Federal disse que isso não podia ocorrer, mas ninguém foi preso até hoje.” Edenilson levou os animais para o curral de um conhecido na região, o João do Boi, que passou a ficar com o leite em troca do capim que as vacas comiam. Sem leite, a família passou fome.
Numa das derrubadas de cerca, o boi garanhão holandês comprado pelo casal de agricultores Creuza e Rudinei Ribeiro, de 36 anos, acabou cruzando com vacas nelore da Fazenda Baixa Verde. Os empregados da fazenda caparam o boi. “Nosso touro voltou quatro dias depois, todo bichado. Aí nós curamos ele”, conta Rudinei. O agricultor entrou com processo de reparação no Juizado de Pequenas Causas. Eles pediram R$ 2 mil pelo prejuízo, mas aceitaram acordo e receberam R$ 1,2 mil, sendo R$ 500 à vista. “Eu aceito, porque não vou precisar mais olhar para a cara dele (Raposo) e nem ele para a minha”, disse Creuza a um advogado do fazendeiro.
Sumiço da vaca. Laércio Santos de Abreu, de 30 anos, deu falta de uma vaca que estava para dar cria. O animal era um dos 13 que comprou com dinheiro recebido no trabalho na soja. Numa manhã de outubro passado, ele percebeu que a cerca perto do pequeno curral tinha sido destruída. A vaca só podia estar na fazenda vizinha, avaliou.
Ele tinha de passar pelos homens armados que estavam do lado de lá. Preparou o cavalo, pôs a filha menor, Lorena, de 3 anos, na frente. A mulher, Floriana Martins de Oliveira, de 27, foi na garupa com outro filho no colo, Carlos Eduardo, de 10. Laércio e a família foram buscar o animal. Antes que passasse pela cerca, um guaxeba parou o grupo: “Você pensa que vai para onde?”. Laércio respondeu: “Rapaz, vocês cortaram a minha cerca e eu quero o meu gado”. “Aqui não tem gado de ninguém. Você não pense que eu ando sozinho, porque eu não ando sozinho”, retrucou o guaxeba. “Só saio daqui com a minha vaca”, insistiu Laércio.
Era uma segunda-feira. Diante da cena insólita do homem com mulher e crianças, o pistoleiro resolveu dar um prazo: “Você entra, mas só tem até quarta para achar sua vaca. Depois disso, não me responsabilizo por você nem por seus meninos”. “Só saio daqui com minha vaca”, respondeu Laércio. “Você não deveria trazer criança para cá. Não traga mais”, disse o guaxeba. “Eu não podia deixar menino sozinho em casa enquanto procurava minha vaca.” O jagunço quis encerrar a conversa: “Só até quarta você pode andar por aqui, com menino ou sem menino”. Laércio finalizou: “Vou procurar a vaca até o dia em que achar”.
Laércio não localizou o animal. Ele é um dos assentados do Raimundo Vieira Lima III. Os pais, Antero Santos de Abreu, de Santa Catarina, e Vera Lúcia, do Rio Grande do Sul, foram para as margens da BR-163 na primeira leva de migrantes, em 1974, na época de derrubada da mata e início de abertura da rodovia. Vera Lúcia morreu ainda nos primeiros tempos, no parto de uma filha feito em condições precárias num posto de atendimento.
A conquista das terras da BR-163
Quando abriu a BR-163, estrada que liga Cuiabá a Santarém, nos anos 1970, a ditadura militar desapropriou e considerou “área de influência” um trecho de 100 quilômetros de um lado a outro da rodovia. Era ali que seriam assentadas as famílias que vinham do Sul, Sudeste e Nordeste em busca de terra.
Os militares demarcaram uma série de glebas – grandes áreas – onde instalariam os Projetos de Assentamentos (PAs). Uma dessas glebas foi a Gama, hoje localizada em Nova Guarita, Mato Grosso, onde existiam quatro assentamentos. Os militares foram varridos pela democracia do poder que usurparam sem terminar o asfalto da rodovia nem consolidar os assentamentos. As terras da União na “área de influência” viraram territórios de conflitos. Nos anos 1980, a malária se juntou à bala de grileiros das redondezas e ajudou a mandar embora as famílias dos assentamentos da gleba. Sem títulos ou negociações com o governo, os grileiros destruíram as cercas das pequenas propriedades e colocaram as deles.
Nas trilhas e margens da BR-163, a irmã Leonora fez fama ao dar apoio espiritual e encorajar famílias pressionadas por grileiros. Hoje com câncer, ela se retirou para Sinop, em Mato Grosso. Os assentados que permaneceram são responsáveis pelo leite e pelas verduras e hortaliças vendidos nos comércios das cidades da região. O forte da economia se tornou o gado de corte, dos currais das grandes propriedades.
Os conflitos continuaram. Hoje, não há nem sequer uma propriedade às margens da rodovia em situação ambiental legalizada, seja ela serraria ou atividade de manejo florestal. Nos últimos anos, com a nova legião de famílias sem terra, o Incra começou a demarcar novos assentamentos na Gleba Gama, em boa parte invadida por grileiros. O prefeito de Peixoto de Azevedo, Sinvaldo Santos Brito, foi um dos que ocuparam boa parte da gleba. O Incra, então, decidiu priorizar áreas de invasões recentes e sem benfeitorias para atender à demanda de famílias pobres que vivem de trabalhos temporários na lavoura de soja e estavam em barracas no Acampamento Renascer.
O Renascer, inspirado numa telenovela da TV Globo sobre a fase do cacau no sul da Bahia, foi cenário de sete mortes a partir de 1995. Só depois da matança o Incra instalou os Assentamentos Raimundo Vieira I, II, III e IV – referência a um dos mortos no acampamento. Quando técnicos da Eletrobrás apareceram para colocar postes do Programa Luz para Todos no Raimundo Vieira III, tiveram de correr. Pessoas ligadas ao fazendeiro Carlos Raposo não permitiram que os postes fossem instalados. Raposo e outros 15 fazendeiros têm processos na Justiça para reivindicar parte da Gleba Gama. A terra titulada não pertence à Gama.