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Felipe Mortara / LUKLA

Imensos picos nevados com nomes célebres. Vales com profundidades quase não dimensionáveis. Fotogênicas crianças sherpas diante de monumentos budistas com bandeirinhas tremulantes. Na mais famosa trilha do Nepal, que leva ao Acampamento-Base do Monte Everest, você encontrará um pouco disso tudo, sim. Mas o que mais povoará seu horizonte é chão. Chão, pedras, areia, poeira, galhos e folhas. Chão e as botas e bastões de caminhada dos companheiros à frente. Essencialmente, chão.

 

“É uma trilha muito pouco restritiva. O principal problema é a altitude. Não tem dificuldade técnica nenhuma”, explica Rodrigo Raineri, sócio da agência Grade 6 Viagens e alpinista brasileiro que mais vezes esteve no cume do Everest, três. “Se compararmos a caminhada à base do Everest com a escalada até o topo, eu diria que uma não tem nada a ver com a outra. A segunda exige um preparo físico, técnico e mental alto. Já o trekking chega onde começa a escalada.”

 

Como nunca fui adepto de academia, meu treino para os 15 dias de caminhada (ida e volta) se resumiu a algumas pedaladas aos domingos. Dois meses antes da viagem, passei a subir escadas e aumentar suavemente a dose de andanças na cidade. Uma consulta e um exame de espirometria com o fisiologista do esporte Turíbio de Barros e o ortopedista Caio D’Elia, do Instituto Vita, me deram a certeza de que eu suportaria a caminhada.

Logo recordei que a graça de percorrer longos trechos de cabeça baixa surgia ao parar. Era aí que, com a cabeça erguida e olhos bem abertos, processava a drástica mudança de cenário: novos picos que surgiam no horizonte, as diferentes vegetações e relevos que se delineavam. Nestes momentos, a mágica acontecia. Observava minha própria transformação.

 

O antes da caminhada é muito mais ansioso que o durante. Dado o primeiro passo, a grande preocupação é, literalmente, dar o seguinte. “É normal que o grupo converse mais no começo e aos poucos se disperse, e cada um fique sozinho com seus pensamentos. O que eu mais pensava era simplesmente no meu próximo passo, porque o ritmo era importantíssimo para a adaptação à altitude”, sintetizou meu colega de quarto, o administrador curitibano Roberto Mehler, de 32 anos.

 

Tudo na mente. É inegável a vocação espiritual e peregrina da trilha. Por estar muito próximo ao Tibete, o Khumbu é uma das regiões nepalesas com maior concentração de budistas – ainda que no Nepal 80% da população siga o hinduísmo e 16%, o budismo. Além disso, as demonstrações de fé do povo sherpa se espalham por toda a trilha, de stupas cônicas a rodas de oração, passando pelas clássicas bandeirinhas coloridas que espalham orações ao vento.

O apelido informal de “Caminho de Santiago do Himalaia” não chega a ser um exagero. Ainda que mais curto (110 quilômetros versus mais de 800 do europeu), é igualmente desgastante por conta da altitude: saímos de 2.800 metros e chegamos a 5.550 antes de alcançar o Acampamento-Base, 5.350 metros acima do nível do mar. Em média, caminha-se 7,3 quilômetros por dia.

 

“Sempre dou esse olhar mais espiritual ao caminho, como uma peregrinação mesmo. Mas sinto que a maioria dos clientes procura um grande desafio pessoal, um projeto de vida, no meio de uma cultura ímpar”, observa Carlos Santalena, guia da Grade 6 que fez o percurso 10 vezes.

 

Apesar de ter outro objetivo final, o cume do Everest, o engenheiro paulistano Cid Ferrari, de 50 anos, meu companheiro de caminhada, compara. “Tanto o Monte Kosciuszko (2.228 m), na Austrália, como o Elbrus (5.642 m), na Rússia, você sobe em um dia. Ou seja, quem chega até o Acampamento-Base já fez um belo cume”, diz. Seu sonho, contudo, teve de ser adiado: a avalanche ocorrida na Cascata de Gelo do Khumbu em 18 de abril abalou os guias sherpa e alterou a dinâmica das subidas ao cume (mais informações na página 12).

 

Namorada de Ferrari, a estilista Juliana Carvalho, de 35 anos, dá as dicas a quem pretende encarar o desafio. “Recomendo essa trilha àqueles que são ou querem ser aventureiros, não se incomodam com falta de conforto, são curiosos e gostam de atividades intensas ao ar livre e em grupo. Bom humor é fundamental.”

 

Waldemar Niclevicz, primeiro brasileiro a alcançar o cume, em 1996, acredita que os destinos turísticos mais populares estão batidos. “Hoje é insuportável ir a Londres, Paris ou ao Taj Mahal. Tem muita gente que está investindo mais em experiência de vida do que em viagens urbanas. E o Everest tem um magnetismo que atrai a todos.”

 

 

 

 

É uma trilha muito pouco restritiva. Não há dificuldade técnica. O problema é a altitude” Rodrigo Raineri alpinista
PERTO DO CÉU

A 5.350 metros de altitude, o Acampamento-Base do Everest é a maior recompensa de uma trilha de 110 quilômetros cuja vocação espiritual induz os trekkers a um revelador mergulho introspectivo