SUMMIT MOBILIDADE URBANA LATAM 2018

O fim da lógica do autorama

Mobilidade depende de romper com modelo predominante de automóvel individual movido a combustível fóssil

30 de Maio de 2018
Mudanças. Mauro Calliari (mediador), Biderman, Eleonora, Clarisse e Ana: são necessárias políticas inclusivas AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO
Marco Bezzi, especial para o Estado

“Somos uma sociedade totalmente dependente do combustível.” Foi assim que Clarisse Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), começou sua apresentação no painel que desenhou o futuro da mobilidade e ainda reuniu Ana Waksberg Guerrini, head de políticas públicas e pesquisa da 99, Ciro Biderman, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-diretor da São Paulo Transporte (SPTrans), e Eleonora Pazos, diretora da UITP (Associação Internacional do Transporte Público na sigla em francês) na América Latina.

A dependência dos combustíveis fósseis e a necessidade de políticas inclusivas para os próximos anos pautou o debate realizado no Sheraton WTC. Logo no início, os números que Ana Guerrini, a head da 99, trouxe para a mesa, contemplaram esse novo olhar. Segundo pesquisas feitas pela plataforma, 68% das corridas são iniciadas ou finalizadas fora do centro expandido de São Paulo. “A população das periferias, hoje, tem acesso a tecnologia e está cada vez mais usando nossos serviços.”

No Rio de Janeiro, por exemplo, a 99 firmou uma parceria com a prefeitura dando desconto de R$ 4 para quem usasse o serviço da plataforma ao sair do metrô. Em São Paulo foram definidos pontos de encontros na estação de metrô Butantã para que alunos e empregados da Universidade de São Paulo (USP) compartilhassem um carro e para que fosse feita a interligação entre o transporte público e a 99, chegando em um tempo menor e com mais segurança à USP.

Mas as soluções, segundo Clarisse Linke, vão muito além do compartilhamento do carro. “A frota de veículos deve triplicar em 30 anos e podemos chegar a quase 120 milhões no Brasil”, contou a diretora executiva do ITDP. “Pensando em sustentabilidade, temos de garantir que a frota seja eletrificada e isso só vai acontecer se o estado for indutor desse processo.”

Ao abordar o transporte público, ela discorreu sobre o tripé do ITDP. “Precisamos evitar os deslocamentos distantes, mudar ou manter em modos mais eficientes e com maior capacidade e aprimorar a eficiência energética e tecnológica veicular.” Uma plataforma única e inteligente que abrace o passageiro do início ao fim da jornada foi a sugestão de Eleonora Pazos. “Precisamos compartilhar veículos com mais assentos.”

BRT. Ex-diretor da SPTrans, Ciro Biderman abordo a questão com um argumento mais pontual: “O problema do transporte hoje em dia (ou da mobilidade) essencialmente vem da governança. O BRT, por exemplo, entrega a mesma qualidade do metrô e é infinitamente mais barato e mais rápido de ser entregue para a população”. Ele lembrou que a lentidão em novas linhas do metrô não é exclusividade de São Paulo. “Nova York, por exemplo, tem uma linha que está sendo construída há 20 anos.”

Ele pontuou ainda que, após as duas revoluções industriais – a primeira que trouxe o vapor e outra a combustão como modos de combustíveis para locomoção –, nada mais aconteceu de novo neste campo. “A revolução da eletrificação do jeito que o cenário nos é revelado hoje em dia não aconteceria. Consumimos toda a energia sustentável”, diz.

Biderman apontou outro número que o aflige: “Estamos trabalhando na redução do número de veículos, mas o total de viagens continua igual. Temos de ficar atentos às primeiras e últimas milhas (pequenos trajetos de ligação percorridos em outros modais). Aposto que teremos o retorno das vans nesses trechos.”

120 MILHÕES DE VEÍCULOS DEVE SER O TOTAL DA FROTA DO BRASIL EM 30 ANOS

Greve de caminhoneiros evidencia dependência

Adoção em massa da matriz elétrica para o sistema de transporte do País é questionada por especialistas

Tanque vazio. Pessoas se aglomeram para tentar comprar gasolina no Rio de Janeiro Antonio Lacerda/EFE

A greve dos caminhoneiros e a consequente falta de combustível deu aos brasileiros uma medida mais precisa da dependência geral do País em relação aos deslocamentos baseados em combustível fóssil, com predomínio do carro individual.

Com a paralisação e a interdição de rodovias, serviços básicos como o funerário, a coleta de lixo, a distribuição de insumos hospitalares e de alimentos, além do transporte escolar e público, beiraram o colapso. “A preocupação com a falta de combustível enquadra o Brasil em um modelo ultrapassado de mobilidade urbana”, afirma Carlos Aranha, coordenador de Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo, conselheiro municipal de política urbana e cofundador do Bike Anjo.
Aranha aproveitou para destacar o abismo existente entre a realidade brasileira e a de cidades de países desenvolvidos, como Paris. “No mesmo dia em que, no Brasil, estamos todos preocupados em abastecer os tanques dos carros para chegar a um lugar que nem é tão longe da nossa casa, Paris está votando um referendo para banir o uso de gasolina e diesel na cidade até 2024”, compara.

Nesse cenário, especialistas que participaram da programação do Summit Mobilidade Urbana Latam 2018 destacaram a adoção de veículos limpos, compartilhados e integrados a outros modais como o tripé ideal para impulsionar deslocamentos mais eficientes e sustentáveis nas cidades.

Eleonora Pazos, diretora da UITP (Associação Internacional do Transporte Público na sigla em francês) na América Latina, resumiu a ideia: “O transporte está inserido na economia compartilhada. E essa é uma pauta ambiental também. Precisamos compartilhar veículos com mais assentos. E de uma plataforma unificada”.
O problema ambiental resultante do uso de combustíveis fósseis também foi ressaltado por Clarissa Linke, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), durante o evento. “Com as mudanças climáticas e o risco da temperatura subir mais do que o esperado por conta da poluição, os países vão ter de se comprometer mais. Precisamos aprimorar a eficiência energética”, disse.

Elétrico. Meios de transporte movidos exclusivamente pela energia elétrica não foram unanimidade entre os presentes, especialmente quando se analisa a infraestrutura brasileira.

Philipp Schiemer, CEO para América Latina da Mercedes-Benz, questiona o uso da matriz. “A quantidade de energia para uma frota de veículos como essa (de carros elétricos) é enorme. Estudos dizem que só conseguiríamos abastecer a frota que temos hoje se utilizarmos energia provinda de usinas nucleares. Temos que pensar em uma energia limpa e solar para o futuro, coisas que temos na Noruega e na Alemanha. É crucial a parceria entre público e privado”, afirma.

Ciro Biderman, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-diretor da São Paulo Transporte (SP Trans), foi na mesma linha. “A revolução da eletrificação do jeito que o cenário nos é revelado hoje em dia não aconteceria. Consumimos toda a energia sustentável.” / MARCO BEZZI E FLORA MONTEIRO, ESPECIAIS PARA O ESTADO

A preocupação com a falta de combustível enquadra o Brasil como ultrapassado Carlos Aranha, da Rede Nossa São Paulo

Quando a tarifa pega carona

Debatedores discordam sobre política de oferecer subsídio integral para usuários da rede de transporte público

Um tópico que dividiu os participantes do painel sobre políticas públicas foi a tarifa zero. Clarissa Linke, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), ressaltou que Paris e cidades alemãs estudam implementar o modelo. Já Ciro Biderman, da Fundação Getulio Vargas (FGV), considera a ação um equívoco completo.

“Há estudos do Cepesp (Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público) que revelam que o aumento do preço cria uma desistência muito baixa nos modais. A qualidade é o fator mais importante. E, nesse caso, é a velocidade.” O consumidor, portanto, não se importaria de pagar mais para chegar mais rápido ao seu destino.

Clarisse afirmou que é necessário repensar como podemos ter mais pessoas por veículo. “Temos de apostar numa cidade para pedestres.” Ela lembra que os mais ricos puderam diminuir o total de carros, mas os mais pobres continuam se endividando para comprar carros ou motos, dado que corrobora com a estimativa de aumento no número de veículos para as próximas décadas. / M.B.