"Esse é um problema de maior visibilidade porque muitas pessoas consomem essa droga em locais públicos. O usuário não consegue se organizar a ponto de adquirir uma quantidade x para seu consumo e se recolher à sua casa, a um local mais privado. A pessoa vai consumindo o crack ao longo do dia, com pequenas quantias de dinheiro, muitas vezes doações de companheiros do vício", observa Vitore Maximiano, secretário nacional de Políticas sobre Drogas.
Para manter o vício, boa parte dos usuários compulsivos das metrópoles faz bico ou cata lixo reciclável. Fora das capitais, a realidade é diferente: levantamento divulgado em setembro pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) mostrou que em cidades menores há menos gente vivendo nas ruas e a mendicância e o envolvimento com o tráfico ainda são menores. Mas o número de histórias de pessoas que abandonam casa, família e trabalho não para de crescer.
"Experimentei crack aos 14 anos de idade e voltei a usar aos 23. Foi em Americana. De lá para cá, morei na rua três vezes. Numa delas, por oito meses. Essa é a minha 14.ª internação na tentativa de parar", conta Michel (nome fictício), de 31 anos, há dois meses internado em uma comunidade terapêutica de Vera Cruz.
Sua origem socioeconômica não é a padrão descrita em pesquisas. Nascido em Tupã, sua família tem uma financeira e um haras. Michel viveu confortavelmente com a mulher e a filha, hoje com 11 anos, mas trocou tudo para ficar na rua vivendo em função da droga. "O que eu tinha perdi. Perdi o casamento, perdi tudo. Vendi três carros, moto. Vendi a preço de banana, troquei carro por droga", conta ele, que diz já ter pedido esmola, se prostituído, traficado e roubado para manter o vício. "O crack está em qualquer cidade, está dentro de mansão, não só mais em favela. Tenho amigos internados, amigos de família rica que morreram, amigos que enlouqueceram dentro de clínica de psiquiatria, que não têm mais condição de viver em sociedade."
O dono da comunidade terapêutica onde Michel está internado, que funciona há 17 anos em Vera Cruz, é o coordenador do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) de Garça, José Roberto Ottoboni. "De cinco ou seis anos para cá, entre 80% e 90% dos nossos pacientes são usuários de crack. E dá para ver que são de outro nível socioeconômico, o que mostra que o crack não faz distinção. A mudança que teve nos últimos anos é bastante gritante."
Segundo Dartiu Xavier da Silveira, Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), as populações de rua, miseráveis e excluídas, buscam no crack algum prazer, porque é uma droga potente e barata. "Mas ela não é exclusiva dessas populações. No meu consultório particular, atendo pessoas de classe média e alta dependentes de crack, que têm vínculos familiares, casa e emprego."
Interno da Fazenda do Senhor Jesus, mantida pelo padre Haroldo Rham em Campinas, onde o tratamento pode custar até R$ 4 mil por mês, Dênis (nome fictício), de 48 anos, é outro exemplo de que o crack não é droga só de pobre. Filho de um ex-prefeito e ex-deputado estadual e federal, ele não chegou a morar na rua, porque quando se viu vencido pela compulsão da pedra, após quase 28 anos viciado em cocaína, pediu ajuda à família. "No crack, eu consegui pedir ajuda, por ter conhecimento sobre aonde isso ia me levar. Por já ter afundado com a cocaína, consegui vir para cá antes. Senão ia parar na rua ou morrer, como vários amigos", conta.
Primeiro a abrir uma comunidade terapêutica no Brasil, em 1978, padre Haroldo atribui ao prazer propiciado pelo crack essa disseminação vertical. "Por causa do prazer, agora pessoas de todas as classes usam. Temos em nossa obra médicos, dentistas, psiquiatras, muitos jovens que terminaram faculdade e também muitos favelados. Como eles vivem juntos em dormitórios, não posso imaginar. Mas a razão é porque eles querem se recuperar."
O crack começou como droga dos guetos. Por envolver um processo de produção mais bruto, que não utiliza tantos produtos químicos quanto o refino da cocaína, era uma droga estigmatizada até mesmo entre viciados. Segundo levantamento da Coordenadoria Municipal de Prevenção às Drogas (Comad) de Campinas, ainda se vende nas minicracolândias locais uma pitada a R$ 0,60. O problema é que, por causa do uso compulsivo, o dependente não consegue ficar numa única pedra por dia e o barato acaba saindo caro. No mercado do crime das bocas do interior visitadas pelo Estadão, a pedra pode ser comprada por R$ 5 e R$ 10.
"O crack é muito acessível. A primeira ideia é de que é uma droga barata, mas no final você percebe que não é: o uso vai aumentando de tal forma que ela se torna cara", confirma a diretora do hospital para tratamento de dependentes em Botucatu, Janice Megid.
Com mais de 9 mil dependentes químicos cadastrados no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) de Ribeirão Preto, a terapeuta Gisele Amorim percebe que, também no interior, o crack está associado à degradação social. "Muitos usuários estão em situação de rua, desempregados, fora do mercado de trabalho", resume. "O crack flagela, deixa a pessoa numa condição sub-humana. Não sou especialista em saúde, meu problema é policial, mas a gente nota a condição em que a pessoa fica", complementa a diretora do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão aos Narcóticos (Denarc), Eliane Biasoli.
No interior paulista, a circulação elevada do crack nem sempre pode ser associada à pobreza ou à falta de oportunidades. Em Ibitinga, por exemplo, onde o consumo é um problema instalado, não há desemprego. "Muito pelo contrário: temos pleno emprego e falta de mão de obra qualificada. Temos de importar de outras cidades", conta a presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Bordado de Ibitinga e Região, Josineide Silva, que concentra 1.024 empresas e lojas em cinco cidades. Mais de 80% dos moradores locais vivem dessa economia, que, no entanto, já começa a sentir reflexos do avanço do crack. "A reclamação é em relação a faltas, desempenho no trabalho, muitas cartas de advertência. No dia de vale, principalmente, ele (trabalhador viciado) recebe na empresa e aparece só no outro dia de manhã em casa, falta no serviço. Enquanto não consome todo o dinheiro, não sossega."
Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, a percepção de aumento da droga está diretamente ligada ao local de consumo. "Existe uma interiorização do problema e algo muito impactante que é a visibilidade. Quando você começa a ver essa população em situação de rua, em alta vulnerabilidade, usando crack a céu aberto, há um grande impacto. Não quer dizer que aumentou, mas sim que está muito visível."
"Conheci o crack aos 19 anos, mas era chamado freebasing. Seja o que for, essa dependência e essa química são uma epidemia hoje em dia", dispara ele, em um dos poucos momentos de lucidez, entre uma saraivada de palavras e ideias desconexas.
Teco Jumanji foi campeão brasileiro de skate freestyle na década de 1980 e morou nos Estados Unidos, onde vive um de seus irmãos skatistas. Viciado em crack, perdeu tudo, foi parar em ruas da capital e viveu como indigente na cracolândia até três anos atrás, quando foi resgatado graças a um vídeo feito durante a Virada Cultural que se transformou em viral na internet. Durante o evento, um morador de rua sujo e mal vestido pegou o skate de um jovem e deu um show diante da câmera. Foi ao ar como o "tiozão do skate".
Um grupo de skatistas conseguiu identificar quem era o mendigo, mobilizou-se para levantar dinheiro e pagou os R$ 7 mil da internação de Jumonji em uma clínica em Atibaia. O ex-skatista saiu de lá abstêmio, mas recaiu, voltou para as ruas para usar a droga e acabou sendo diagnosticado com tuberculose quando procurou atendimento durante uma crise.
"Na questão do crack, falam muito em saúde. Não que não seja
importante, mas a gente tem de começar a ampliar esse conceito, porque
a droga envolve muito a questão social, está muito ligada à
criminalidade e traz consigo prejuízos que em outras drogas são bem
menores", adverte a terapeuta Talita Valle, do núcleo de
Saúde Mental de Ibitinga.