O Estadão visitou 13 cidades que aparecem no Observatório do Crack da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) com problema alto ou médio decorrente do consumo da droga. Com 43 mil habitantes, Garça integra a lista de localidades que acenderam a luz vermelha de alerta para o crack. Situada no Centro-Oeste paulista, suas unidades de saúde são referência de atendimento para municípios menores do entorno. Um deles é Fernão, com 1,5 mil moradores, a menor cidade do Estado com alto problema com a droga.
Em Garça, não há uma cracolândia em local público. Mas existem "fumódromos", uma versão adaptada das casas de ópio orientais. "A maioria dos atendidos vem de bairros onde há pontos de venda de crack. E uma coisa que tem no município são as casas de uso de crack", confirma o psicólogo José Roberto Ottoboni, coordenador na cidade do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) – carro-chefe da política federal de tratamento dos dependentes químicos e porta de entrada para a rede pública de saúde. "Teve um caso aqui de uma família inteira. O tio, a mãe e o filho de 12 anos: todos usavam crack e a casa deles era uma casa de uso. Eles não tinham renda e o uso que faziam era a partir das pessoas que iam lá utilizar o espaço", lembra Ottoboni. O menino foi internado, a mãe continua a usar droga e o tio sumiu.
O Estadão visitou duas dessas casas em Garça. Situadas em bairros distintos, têm vizinhos que preferem não falar sobre o assunto. Os donos pediram para não ser identificados, mas permitiram a filmagem dos locais. Um deles, de madeira e aos pedaços, é ocupada por uma senhora e seu filho, usuário de crack e com transtornos mentais. Na outra, o dono é um ex-caminhoneiro de 61 anos, viciado em crack há mais de 15. "É polícia?", pergunta desconfiado Jaime (nome fictício). Com a porta aberta e sem janela na frente, a casa popular de alvenaria quase não tem mobília – apenas um colchão, um sofá estropiado, geladeira enferrujada vazia e um fogão aos pedaços. A única coisa minimamente organizada é um altar improvisado no quarto em que ele descansa quando fica sem usar crack, com fotos dividindo espaço com imagens de santos. "Eu fico aqui. Quando alguém vem, me dá um agrado."
Cristiano (nome fictício), de 33 anos, chega com uma pedra de crack na mão, cachimbo na outra. Desconfiado, pede para não ser identificado, porque a mulher e a família não sabem do vício. "Venho porque aqui ninguém me vê." Segundo ele, em qualquer bairro de Garça é possível encontrar a droga para comprar. "Mas a cidade é pequena, então não dá pra usar na rua."
Para o principal articulador da política sobre drogas do governo paulista, Ronaldo Laranjeira, os números da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) confirmam uma realidade conhecida do poder público, mas não documentada: "O crack está em todos os municípios, isso a gente pode falar". Em sua opinião, o avanço pelo interior segue "um fenômeno nacional" de pulverização do mercado da droga, movido pela melhoria das condições econômicas da população. "A droga segue o dinheiro. No Estado, ocorreu a pulverização dessa rede de distribuição. O tráfico não é só mais na favela."
"Quando a gente começou a funcionar, acreditava que teria um determinado número de pacientes, mas em pouco tempo nós tivemos uma demanda espontânea muito grande nas seis cidades que atendemos – Garça, Gália, Guarantã, Fernão, Álvaro de Carvalho e Ubirajara", explica Ottoboni, do Caps AD de Garça. Para ele, a ideia de que o aumento do consumo abusivo do crack é um problema de metrópole é um equívoco. "O que tem é que nas cidades grandes os usuários acabam se reunindo em guetos. Aí ganham visibilidade muito grande, só se fala da cracolândia. Mas aqui também tem muito. Em Marília, se você for nas vilas onde se vende o crack, corre o risco de ser abordado por alguém oferecendo. Tanto é que alguns pacientes falam que eles usariam em qualquer cidade do País e conseguiriam muito rápido."
Em Campos do Jordão, o consumo do crack ocorre à noite em uma das praças centrais da cidade, atrás do mercado municipal, e também de dia, às escondidas, nas escadarias abertas no meio dos quarteirões. Em uma delas, que dá acesso ao prédio abandonado e em ruínas da antiga Santa Casa, o movimento é diário. "Não posso aparecer. Saí do trabalho agora e vim fumar", diz um rapaz na casa dos 20 anos. Na primeira vez em que o Estadão esteve no local, um homem que se identificou como José se aproximou do carro e perguntou o que a reportagem queria. Preocupado, pediu para não ser prejudicado: "Volta mais tarde".
Chamada de "Suíça brasileira", Campos do Jordão vê o problema do crack se refletir também no número de internações do único hospital de tratamento de tuberculose do Estado. "O Hospital Leonor Mendes de Barros é referência em São Paulo. Hoje temos em média 130 pacientes internados – 98% dependentes químicos", explica Renato Marcelo da Silva, diretor técnico da unidade.
Nas praias, onde há grande circulação de pessoas, o uso é mais restrito. O Estadão visitou uma passagem de pedestres apontada como local público de consumo. A via foi aberta entre residências à beira-mar para ligar a avenida principal à faixa de areia. Um jovem que não quis ser entrevistado confirmou o que a lata amassada – apetrecho usado para fumar a pedra – e a pichação "cracolândia" em um dos muros já haviam denunciado. Outros dois jovens, aparentemente consumindo a droga, afastaram-se ao notar a presença da reportagem. Após pedir para não ser identificado por medo de represálias, um morador de uma casa com dois andares e altos muros relatou problemas enfrentados pela vizinhança. "Dia e noite, eles ficam ali e embaixo da ponte. O cheiro é horrível, porque fazem de tudo."
"Tem bastante sim. Em Ilhabela, assim como em qualquer parte do País, já existiu uma cracolândia", conta o psicólogo Sérgio de Moura, de 42 anos, coordenador do Caps local, citando a desativação de um antigo local de consumo em um terreno no bairro da Barra Velha. "É uma demanda que cresce a cada ano. Achar que porque é uma ilha... Ele está aqui sim."
Levantamento da rede municipal identificou 206 pessoas em tratamento por causa da droga. Os números foram compilados para solicitar ao governo federal a transformação do Centro de Atenção Psicossocial de modalidade 1 (Caps 1) – unidade mais simples, voltada apenas ao atendimento de transtornos mentais – em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) – com estrutura, pessoal e recursos específicos para atendimento de dependentes químicos.
Cananeia, cidade do litoral sul paulista tombada pela Unesco como patrimônio da humanidade, também declara ter alto problema com crack. "Essa é uma região muito pobre do Estado. O consumo é alto entre moradores e também na região, em cidades como Eldorado Cananeia", afirma o psicólogo Cleiton Motta, do Caps 1 de Registro – cidade-referência para Cananeia e outros municípios do Vale da Ribeira.
Com 10 mil habitantes, Martinópolis é outra estância turística balneária a enfrentar o avanço do crack. Localizada no Oeste paulista, bem distante do mar, já declara ter alto problema decorrente da droga. "A gente percebe esse número crescente a cada dia. Muitos não procuram ajuda e, quando procuram, estão em estágio muito avançado", explica a psicóloga Mariana Malavolta, de 31 anos, coordenadora do Caps da cidade.
O município na região de Presidente Prudente é visitado por turistas que passam o dia às margens da Represa Laranja Doce. "Há pontos de consumo em bairros com venda de droga e em algumas praças. A gente percebe ainda muito uso em boca, onde eles compram e acabam usando dentro da casa mesmo. Na represa, temos informação de que também existem pontos de venda e consumo."
Segundo moradores, apesar de pouco visível, o problema é conhecido. "Eu ouço falar bastante, mas só sei do caso de uma mulher da cidade", conta Vitória Adler, de 17 anos, na praça central, ponto de encontro de aposentados durante o dia e de jovens à noite. "Acho que tem muito sim, principalmente quando tem festa e vem gente de fora. Na praça, tem consumo de madrugada, independente da droga. Já existe até um preconceito de vir para praça à noite", conta Ana Flávia Sakamoto, também de 17.
A antropóloga Taniele Rui, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), viveu durante dois anos o dia a dia dos usuários de crack no interior e na capital paulista para entender esse padrão de uso e locais de consumo. "Nossos estudos são sempre sobre grandes cidades, então se conhece pouco sobre o que se passa no interior. É importante considerar que há uma heterogeneidade das cenas de consumo de crack. São dinâmicas muito difentes. E também não dá para associar que onde tem consumo de crack tem uma cracolândia."
"Nunca cheguei a qualquer cidade, maior ou menor, em que as pessoas não digam: ‘Nossa cidade está cheia de crack’. Evidentemente que está nas cidades maiores. Tem cracolândia aqui em Campinas, ali onde antigamente iam os trens. A gente vai lá e os jovens estão sentados fumando um atrás do outro", conta o padre Haroldo Rham, de 95 anos, que há seis décadas se dedica ao tratamento de dependentes químicos.
Campinas é a maior cidade do interior paulista. Com 1 milhão de habitantes e economia rica, virou polo de desenvolvimento tecnológico graças às suas universidades. Na região central, até o ano passado usuários de crack se concentravam na área do terminal de transporte coletivo, sob um viaduto onde estão também a linha férrea e os galpões da antiga estação de trem. Desde que a prefeitura começou a revitalizar o local, a minicracolândia foi pulverizada. Há pontos de uso aberto em dois becos perto da rodoviária, em um matagal perto do Estádio da Ponte Preta e em praças, como a do antigo fórum, na frente do Largo do Rosário.
Para Nelson Hossri, da Coordenadoria de Prevenção ao Uso de Drogas de Campinas, o consumo do crack na cidade aumentou a partir de 2012, em decorrência das ações repressivas contra usuários na cracolândia da Luz, em São Paulo. "Campinas teve um problema sério quando a capital realizou uma operação amadora – dependentes acabaram se espalhando por diversas cidades, inclusive as grandes ao seu redor, e ficam perambulando. Também começou a aumentar o número de moradores de rua." Segundo ele, existem hoje na cidade aproximadamente 600 – 80% dependentes de álcool e crack.
Em São José do Rio Preto, cidade do Noroeste do Estado com 434 mil habitantes e economia pujante, o consumo da droga é feito abertamente tanto no centro como em bairros periféricos. "Tem uma concentração na área central, onde também estão muitos moradores de rua. É a área de melhor acesso para coletar reciclável – uma forma de renda fácil – e onde tem mais circulação de pessoas e, consequentemente, de oportunidade de dinheiro. Mas há outras cenas importantes em áreas periféricas, onde de tarde e à noite eles estão nas ruas, a céu aberto e em alguns terrenos desocupados, que chamamos de 'mocós'", conta a psicóloga Daniela Terada, coordenadora de Saúde Mental da cidade, que tem dois Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD).
Em 2012, a Secretaria Municipal de Saúde de Rio Preto identificou um elevado número de locais de consumo de crack na cidade, a maioria em praças e terrenos. Na ocasião, mais de mil usuários foram contabilizados. Em fevereiro deste ano, a Polícia Militar desmontou a maior cracolândia local – um conjunto de barracos emparedados no canto de um terreno baldio onde funcionava uma fábrica de vassouras. A reportagem esteve no local, que continua sem barracos, mas voltou a ser ocupado. Mais de 15 pessoas fumavam crack sobre colchões e sofás velhos.
Em uma avenida comercial movimentada do mesmo bairro, a 500 metros dali, o consumo da droga ocorre em pelo menos dois pontos – num posto de combustíveis abandonado e na calçada, na frente de um imóvel comercial, onde dependentes passam dia e noite sentados entre carros.
"Fumo há seis anos. Para ser sincero, isso aqui não é salvação nem solução. É a válvula de escape, né. Tá em Apocalipse: é a sétima praga", diz Sid (nome fictício), de 31 anos, compulsivo no crack há seis, fumando pedra no cachimbo improvisado que ele faz e vende. "R$ 10." Com filhos e casa, está nas ruas há pelo menos dois meses. No local, há mais três usuários sentados e outros que passam, em busca da droga, e seguem para outros pontos de consumo do bairro. A polícia faz ronda, mas não impede o uso.
Sem saber o que fazer, a população também fica refém da situação. Sentado em uma das principais praças do centro, o professor aposentado João de Freitas, de 73 anos, avalia que o consumo de crack poderia ter sido atacado quando surgiu. "Se olhar lá para trás, no jardim, vê lá... não é crack, não vamos falar que aquilo é crack, aquilo é pobreza", diz, apontando para um grupo de jovens dormindo na praça, onde o consumo da droga ocorre dia e noite.
"Tem muito sim, com certeza. Eu mesmo tinha um funcionário que morreu devido ao uso de crack. O crack e a maconha são drogas de fácil mercado", opina o proprietário rural Odécio Coutinho, de 65 anos, também morador de Rio Preto. "Acho que isso está em todos os lugares."
Na região, cidades pequenas como Mirassol (56 mil habitantes), Monte Aprazível (21 mil), Nova Granada (19 mil), Jaci (5,6 mil) e Gastão Vidigal (4,1 mil) estão na lista da Confederação Nacional dos Municípios de cidades com alto problema de crack. Em Jaci, a prefeitura começou há dois anos a instalar câmeras de segurança para inibir o consumo em praças e escolas.
Em Ribeirão Preto, outra grande e rica cidade paulista, já existem pelo menos três minicracolândias em áreas de grande movimento. Uma funciona nos galpões da antiga Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Ceagesp), outra nas ruínas de uma tecelagem e a terceira, às margens de um córrego cercado por uma pequena favela e por lixões, onde também há venda de droga.
Na Ceagesp, há relatos desde 2011 de consumo coletivo de crack. Tanto no barracão, que tem uma parte coberta e outra já sem o telhado, onde usuários ficam escondidos no mato, quanto nos arredores. Numa antiga praça na avenida do prédio abandonado, a reportagem encontrou um grupo fumando. Outro local visitado foram as ruínas de uma antiga tecelagem, onde moradores e comerciantes denunciaram que o movimento é diário e grupos de até 20 pessoas se concentram para usar a droga.
"Quando me vi dominado, chamei minha ex-mulher e falei: ‘Vai embora com as crianças porque estou fracassado e não aguento mais meus filhos olhando para mim e vendo eu usando essa coisa", conta Magno (nome fictício), de 43 anos, em um lixão que serve de ponto de consumo em Ribeirão. "Perdi tudo: conta no banco, ferramentas. Meu filho tinha 10 anos."
Para profissionais da saúde que atendem dependentes, há relação entre a presença elevada de drogas, a concentração de consumidores, o tráfico internacional de drogas e a pujança econômica do interior paulista. "Funcionamos desde 1996 e uma das razões para ele ter sido aberto é que o crack já estava chegando bastante forte. A cidade era considerada a rota caipira", conta Gisela Pereira, terapeuta ocupacional do Caps AD de Ribeirão, onde por dia são atendidas de 80 a 90 pessoas, com nove novos pacientes entrando diariamente.
"Na pesquisa que será realizada a partir de 2014, pela primeira vez faremos avaliação de áreas rurais, de pequenos, médios e grandes municípios e de capitais e regiões metropolitanas para que tenhamos um diagnóstico bastante preciso do País em relação ao crack, às drogas ilícitas e também às drogas lícitas", promete o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano.
O estudo da Fiocruz feito para o governo federal com usuários frequentes apontou que oito em cada dez usuários consomem o crack em espaços públicos com circulação de pessoas. Grandes cidades, como Campinas, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Santos, São José dos Campos e Sorocaba, já recebem desde 2012 verbas federais para criar seus consultórios de rua (um dos equipamentos públicos itinerantes de atenção aos dependentes), especialmente voltados à busca de pacientes em cracolândias.
Mas, nos laranjais e cafezais, produtores e sindicatos ainda têm de lidar com o vício entre os agricultores, principalmente os mais jovens. Já chamada de "criptonita", em referência ao mineral que acaba com a força do Super-Homem, a droga é usada como combustível pelos trabalhadores rurais e também como válvula de escape, depois de extenuantes jornadas. Muitos alojamentos de trabalhadores que migram para passar seis meses no Sudeste e conseguir um pouco de dinheiro acabam virando casas de consumo. "A gente tem trabalhador da colheita de laranja e temporário da colheita do café. Gente que vem de fora, como ocorre muito em Gália e Fernão, e acaba se envolvendo com o crack, não no ambiente de trabalho, mas no local onde dorme e passa o fim de semana", afirma o coordenador do Caps AD de Garça, José Roberto Ottoboni.
O problema é relatado também pela diretora do primeiro hospital público do interior voltado ao tratamento de dependentes do crack, aberto em novembro em Botucatu, Janice Megide, e pela coordenadora de Saúde Mental de São José do Rio Preto, Daniela Terada.
"Há cidades do nosso entorno, como Barra Bonita, que têm usinas e recebem muita gente do Nordeste. Eles vêm para ficar seis meses no corte da cana e dão muito problema ao município", afirma Janice. "De repente, chegam várias pessoas de uma vez e é preciso ter uma estrutura de saúde para abarcar essa população migratória, flutuante, que vem com muita demanda de álcool e agora de crack."
Mais acima, no Noroeste do Estado, o relato é parecido. "Tem a população que migrou, principalmente do Nordeste e de cidades vizinhas, para trabalhar no cultivo de cana e foi um problema dentro da lavoura o uso de crack para aumentar a produtividade. Essas pessoas perderam o controle", completa Daniela, de São José do Rio Preto.
Em 2012, a Polícia Civil prendeu no Centro-Oeste paulista dez pessoas de uma quadrilha acusada de vender crack a trabalhadores rurais. Elas eram de Borebi, cidade de 2,2 mil habitantes na região de Bauru. O grupo, com 14 integrantes ao todo, foi descoberto depois de dois meses de monitoramento de 50 mil ligações.
Em uma das conversas, um usuário tentava negociar
com o traficante a troca de um carneiro por cinco pedras de crack.
"Borebi é uma das menores cidades do Estado e do País, mas tem um grande
número de usuários de drogas. São pessoas que trabalham o dia todo, mas
que no fim da tarde vão atrás dos traficantes de caminhão, de trator,
oferecendo bens pessoais", afirmou, à época, o delegado Luis Claudio
Massa.