A invasão da droga nos rincões do sossego

Ricardo Brandt (Textos) | Robson Fernandjes (Fotos)
"A raspa da canela do capeta." Assim era conhecido o crack quando surgiu em São Paulo, na periferia da zona leste. Era fim dos anos 1980 e o Brasil vivia os desafios da redemocratização, após 20 anos de ditadura militar. Subproduto sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao ser queimada logo se tornou o prazer e a praga dos excluídos, de farrapos humanos que pouco importavam à sociedade e, consequentemente, ao poder público.

Passados mais de 20 anos, esse cenário mudou: hoje, o crack está presente em todos os cantos do Estado. Dos grandes centros urbanos, migrou para cidades pequenas e afastadas, antigos rincões do sossego. Também escalou a pirâmide social e chegou às mansões. Com a mesma rapidez com que corrompe e danifica o organismo, virou a principal droga ilícita tanto em municípios pobres e pouco desenvolvidos quanto em regiões de economia aquecida, estâncias turísticas, balneários, paraísos litorâneos e na roça.

Em mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), atualizado em tempo real pelas prefeituras, 194 cidades paulistas – das 556 participantes – declararam ter alto problema decorrente de consumo de crack. As prefeituras se baseiam nos dados de saúde, assistência social, segurança e educação, principalmente, para avaliar a situação local. Entre elas estão Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais do Circuito das Águas), Campos do Jordão (a "Suíça brasileira"), Ilhabela (reduto de Mata Atlântica no litoral norte), Cananeia (patrimônio da humanidade), além de cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado), Monte Alegre do Sul (capital do morango), São Roque (terra do vinho), Louveira (2.º maior PIB per capita do País).

Diferentemente das regiões metropolitanas, onde dependentes se concentram nas cracolândias em locais públicos, à vista de todos, nos recantos de sossego do interior o crack geralmente avança de forma oculta, com usuários "invisíveis" escondidos em casas de consumo, "mocós", no meio do mato, em pontos de venda conhecidos como "biqueiras" ou "bocas". São cidades pequenas, onde todos se conhecem, como Fernão (1,5 mil habitantes), Martinópolis (24 mil), Vera Cruz (10 mil), Gavião Peixoto (4,4 mil), Garça (43 mil) e Registro (54 mil).

Durante quatro meses, a reportagem do Estadão percorreu 6,6 mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais, estaduais e municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas, ambulatórios especializados e pontos de consumo – foram consultados 28 agentes públicos, profissionais da área e especialistas. No caminho, visitou 13 municípios que denunciaram alto ou médio problema com crack no mapa da CNM, em diferentes pontos do território paulista, e conversou com 50 usuários, ex-usuários, parentes e moradores para montar um diagnóstico do avanço e das mazelas provocadas pelo crack no interior de São Paulo.

Na maioria das cidades, a rede pública em geral é deficitária, os profissionais são despreparados para lidar com a dependência e as ações de governo acabam sendo feitas sem a integração necessária. Uma combinação de carências que potencializa os danos em cadeia provocados pelo aumento do consumo abusivo da droga e extrapola as áreas de saúde e polícia. Além de influir na degradação do usuário e no aumento da criminalidade, o avanço do crack faz crescer a população em situação de rua e pode interferir na economia local.

Apesar de o consumo de crack no Brasil ainda ser menor que o do álcool e o da cocaína em pó, o tratamento de dependentes da versão fumada da coca é um desafio para médicos e especialistas. Estudos indicam que, em média, apenas um terço dos usuários severos consegue se tratar e retomar a vida – os outros dois terços morrem ou continuam na droga. Para quem pode pagar, a recuperação é uma realidade mais próxima. Mas, para a grande maioria das pessoas que dependem da rede pública, os investimentos e programas de enfrentamento ao crack lançados nos últimos anos pelas diferentes esferas de governo ainda são um benefício distante – principalmente nas pequenas e médias cidades do interior. Quando há serviços ou empenho político local, falta a condição adequada para cumprir todo o ciclo necessário de atendimento – redução ou abstinência de uso, reaprendizado de como é a vida sem a droga e reinserção nos ambientes familiar e social.

Há outro empecilho: embora especialistas e as próprias autoridades concordem que as políticas dos governos federal e estadual devem caminhar juntas e se complementar, na prática União e Estado trilham rumos distintos. Enquanto a primeira prioriza o tratamento domiciliar, com acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o segundo aposta na Justiça terapêutica, com internações – involuntárias ou não – em hospitais especializados e comunidades terapêuticas para interromper o consumo de vez. Um descompasso que só prejudica quem tenta vencer o drama da dependência.