Por Edison Veiga

Cartão-postal da gestão Gilberto Kassab (PSD), a Lei Cidade Limpa, segundo especialistas, tem sido progressivamente desfigurada em São Paulo. Os paulistanos também já sentem as mudanças no visual da metrópole. Na gestão Fernando Haddad (PT), o descuido se reflete, por exemplo, nos números da fiscalização - as autuações caíram de 2.265 para 366 entre uma administração e outra. Banners, placas, faixas poluem os estabelecimentos comerciais e também as ruas. A gestão ambiental empacou, e a inspeção veicular, após alterações e suspensões, ainda não voltou a ser realizada na cidade.

Capítulo 1

Cidade Limpa ganha brechas, e mudanças são alvo de críticas

Cada governo tem sua vitrine, é bem verdade. E a falta de continuísmo de políticas públicas é um dos muitos problemas que explicam o atraso das cidades. Mas o que era o cartão de visita do prefeito Gilberto Kassab (PSD) deixou de ser tratado como prioridade na administração de Fernando Haddad (PT): a Lei Cidade Limpa.

Basta um passeio mais atento pela cidade para perceber que, aos poucos, a poluição visual volta a tomar espaço. A fiscalização parece ter diminuído – um comparativo do último ano de Kassab, quando foram aplicadas 2.265 multas, com o primeiro de Haddad, com apenas 366 autuações, é emblemático nesse sentido. A fiscalização se refere aos dados mais recentes.

“Infelizmente, a primeira coisa que essa administração fez foi desmontar uma diretoria que eu criei a duras penas, justamente para estudar questões da paisagem da cidade”, diz a arquiteta que elaborou a Lei Cidade Limpa, Regina Monteiro – ex-presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) e da Comissão de Proteção da Paisagem Urbana de São Paulo, atualmente presidente do Instituto das Cidades e conselheira do Movimento Defenda São Paulo.

Essa diretoria à qual Regina se refere foi montada com quatro funcionários públicos realocados de outros departamentos. “Eles faziam o georreferenciamento de tudo o que há na paisagem urbana, de semáforos a abrigos de ônibus, passando por relógios, lixeiras etc. Iria facilitar a fiscalização e começávamos a consolidar uma padronagem visual para São Paulo.”

Mudanças visuais

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“A Cidade Limpa significou uma mudança comportamental e cultural na cidade. E o Kassab teve tolerância zero. Entendeu que não adianta regular uma coisa que é irregular e partiu da premissa de que todo anúncio era irregular pela própria natureza de ter sido colocado em um espaço público”, diz o arquiteto, urbanista e designer Issao Minami, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e especialista em identidade visual das cidades.

Desfiguração. Conforme o Estado verificou, a população tem notado um certo desleixo no cumprimento da lei. “No começo, era um cartaz dentro da vitrine da loja, anunciando uma promoção. Depois o cartaz começou a sair da loja e hoje já há vários banners coloridos na rua toda”, diz o bancário Mário Luz, de 52 anos, que mora há 20 anos em um prédio na Rua Teodoro Sampaio, uma das principais artérias de comércio popular no bairro de Pinheiros, zona oeste.

“Claro que não é como antes (da Lei Cidade Limpa), mas parece que os donos de comércio estão ficando abusados, testando mesmo a fiscalização”, diz o balconista Samuel Diniz, de 34 anos, que mora no bairro do Cambuci, região central da cidade, mas que diariamente passa pelos calçadões do centro – como o Rua 15 de Novembro.

“O brasileiro é muito criativo na questão de ‘dar um jeitinho’, e com isso vai encontrando brechas na lei, e depois vai a ultrapassando”, diz Minami. “Mas, no caso da poluição visual, isso é uma praga.” Na avaliação de Regina, aos poucos os comerciantes vêm se aproveitando do afrouxamento da fiscalização. “Começam com cavaletes escritos em giz, apenas com a informação do cardápio. Daí surge a propaganda da marca de bebidas e por aí vai”, afirma.

Cronologia cidade limpa

Regina concorda que a publicidade em mobiliário urbano – como em pontos de ônibus, a exemplo do que acontece hoje – estava prevista já no início da lei. Mas não aprova a forma como evoluiu na gestão Haddad. “Com a Cidade Limpa, houve uma reorganização do espaço da cidade. E, com isso, conseguiríamos determinar os limites para a publicidade”, diz ela. “Hoje você vê e está superconfusa essa história.” Regina diz acreditar que há uma falta de planejamento visual do espaço ocupado pelos anúncios. “O escopo original previa que a publicidade não interferisse no design do abrigo, mas isso se perdeu. O que parece é que os novos abrigos servem à publicidade”, afirma.

A arquiteta também lembra que alguns equipamentos da cidade deveriam ter uma regulamentação após a implementação da Lei Cidade Limpa. Mas isso nunca aconteceu. “É o caso dos estacionamentos, que precisam informar o preço. Estava em nosso plano uma regulamentação específica”, diz ela.

Minami diz acreditar que, com fiscalização constante, é possível “segurar” os resultados da Cidade Limpa. “A legislação atual não é mais uma colcha de retalhos. Ela coloca os limites”, diz. Mas a missão, em seu entendimento, não é apenas da gestão municipal. “Do ponto de vista operacional, fiscalizar tudo isso é muito difícil. Então, todos nós, cidadãos, temos de ser fiscais da cidade. Não podemos imputar essa responsabilidade apenas para a administração.”

Fiscalização. A Secretaria de Comunicação da Prefeitura informa, em nota, que a Diretoria de Paisagem Urbana não foi extinta, mas “apenas reestruturada como gerência”, mantendo as mesmas atribuições. “A Secretaria de Coordenação das Subprefeituras informa que a fiscalização é feita por aproximadamente 560 agentes vistores. Neste momento uma operação coordenada em toda a cidade, apreendeu mais de 10 mil itens irregulares como banners, cavaletes e cartazes”, informa a pasta.

Capítulo 2

Inspeção veicular empaca na gestão petista após propostas de mudanças

Sem inspeção veicular obrigatória, o ar de São Paulo fica de 3% a 4% pior para respirar. A estimativa é do médico patologista Paulo Hilário Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em danos que a poluição atmosférica pode causar ao ser humano. Para ele, o fato de o programa não existir mais representa “um retrocesso”.

Divergências à parte sobre a forma como a inspeção era feita – pela empresa Controlar –, a inspeção anual nunca foi consenso entre especialistas. Prestes a completar cinco anos, em 2013, de acordo com o monitoramento feito pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), o ar da cidade havia apresentado pouca melhora – mas outros fatores, como o crescimento contínuo da frota e condições meteorológicas que prejudicam a dispersão dos gases, também pesam nessa avaliação.

De acordo com os dados da Cetesb, de 2008 (quando o programa começou) para 2013, os gases que apresentaram maiores reduções de concentração na atmosfera da capital foram o monóxido de carbono (CO) e o dióxido de enxofre (SO2). No primeiro caso, nesses cinco anos, o gás não ultrapassou em nenhum dia o padrão e o nível de atenção.

Veículos em teste

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Já o material particulado (MP), poluente mais relacionado com a redução da expectativa de vida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por provocar doenças respiratórias e até mesmo casos de câncer, ficou relativamente estável para o MP 10. Mas, a partir de 2009, passou a apresentar um aumento na sua versão mais fina, o MP 2,5 (com 2,5 micramilésimo de milímetro), considerado ainda mais danoso.

Todas as pesquisas específicas sobre a eficácia do programa foram desenvolvidas pela própria Controlar – nunca um estudo independente foi feito para avaliar tais informações.

Banner é visto no cruzamento da Av Santo Amaro com a Av. Juscelino Kubtcheck. Gabriela Bilo/Estadão.

Dados da Controlar, baseados na inspeção durante o ano de 2011, por exemplo, mostravam que foi possível conseguir uma redução de 49% nas emissões do gás em veículos leves. Entretanto, conforme levantamento do Instituto de Energia e Ambiente da USP, a tendência de queda já vinha sendo observada desde o fim dos anos 1990, muito em função dos avanços tecnológicos dos veículos – e do respeito ao Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), que estabeleceu uma série de medidas para reduzir a emissão de poluentes, como catalisador e injeção eletrônica.

Em estudo publicado em 2013, Saldiva calculou que o controle imposto a veículos desregulados e poluentes poupou 1.295 vidas e evitou 1.813 internações em São Paulo em decorrência de problemas respiratórios. A pesquisa afirmou ainda que a realização do procedimento representou uma economia de R$ 320 milhões aos cofres do Município.

Propostas. Durante a campanha eleitoral de 2012, o então candidato Fernando Haddad (PT) levantou a bandeira contra a cobrança da taxa de inspeção – o valor chegou a ser de R$ 61,98. Ele dizia que o modelo precisaria ser revisto. Quase três anos após sua eleição, a cidade está sem inspeção veicular. “A questão está judicializada”, argumenta a administração municipal, em nota.

Não sem razão, é verdade. Dois anos após aprovar na Câmara Municipal novas regras para a inspeção veicular, Haddad ainda não aplicou nenhuma delas. Suspenso desde janeiro de 2014, o programa só será executado novamente se a medida passar a ser estadual. O projeto, no entanto, está parado na Assembleia Legislativa desde 2010.

Cronologia inspeção

O impasse na retomada das vistorias ambientais passa ainda por medidas administrativas. O edital lançado pela gestão municipal após o fim dos serviços da Controlar está suspenso pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) há mais de um ano. E, assim como na Assembleia, não há previsão para que o processo avance. Quando alterou as regras do programa, em março de 2013, a Prefeitura já havia afrouxado a periodicidade.

A nova lei passou a exigir o teste apenas de veículos com mais de três anos de uso e a cada dois anos. Somente passaria a ser feita anualmente após o décimo ano de circulação do carro. Veículos movidos a diesel são exceção. A legislação manteve para caminhões, ônibus e vans a obrigatoriedade de passar pela inspeção anualmente.

“A Prefeitura defende que a discussão da inspeção seja feita também na Assembleia Legislativa do Estado, por entender que a poluição acontece não apenas dentro da capital, mas em toda a região metropolitana, por causa da conurbação. A aprovação de proposta de lei estadual também ajudaria a evitar a chamada ‘fuga de licenciamento’, quando carros que circularão na capital são licenciados em outros municípios, o que acarreta na perda da porção do IPVA que o Estado remete à cidade”, afirma a gestão municipal, em nota.

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