O déficit habitacional é um problema crônico de São Paulo, desses que se arrastam desde muitas décadas atrás. Quando assumiu a Prefeitura, em janeiro de 2013, Fernando Haddad (PT) herdou o drama de 582 mil famílias sem moradia - de acordo com levantamento da Fundação João Pinheiro. Atualmente, há 1 milhão de pessoas à espera de uma casa no cadastro da Companhia de Habitação de São Paulo (Cohab). Para combater o problema, a gestão municipal elencou algumas ações prioritárias - que, até o momento, ainda não foram completamente concluídas. O plano de entregar 55 mil unidades em quatro anos será difícil de ser atingido. Até agora, 4.944 moradias foram concluídas. Outro item da área é o Programa de Reurbanização de Favelas, cujo plano é beneficiar 70 mil famílias. De acordo com o balanço das metas, 67,2% do projeto foi concluído. Desse total, 130 mil estão habilitadas para participar dos projetos municipais. O Programa Mananciais, em suas fases 2 e 3, aparece no balanço como tendo atingido um índice de conclusão de 52%.
Capítulo 1
Haddad investe 18% dos R$ 3,5 bilhões do Programa Mananciais
Poderia ser uma linda lagoa azul, mas quando a ajudante de cozinha Deise Tomaz Costa, de 24 anos, abre a janela de sua casa o que vê são montanhas de lixo, mato e, ao longe, uma água turva e poluída. Ela mora a poucos metros da Represa Billings, no bairro Cantinho do Céu, na região do Grajaú, zona sul de São Paulo. “Eu nasci e sempre vivi aqui”, conta ela. “E o que vejo é essa situação só piorando, apesar das promessas dos políticos.”
E esta é só a ponta do iceberg – ou, no caso, do monte de entulho. Cantinho do Céu, assim como o vizinho Jardim Prainha, tem ruas com asfalto pela metade, córregos de esgoto clandestino a céu aberto e uma coleção de obras inacabadas – em uma curta caminhada é possível encontrar tubulações nunca instaladas, por exemplo.
A região é alvo do ambicioso Programa Mananciais, parceria entre os governos municipal, estadual e federal, lançado em 1994 com o intuito de reorganizar as favelas localizadas às margens das Represas Billings e do Guarapiranga. No cronograma, há obras em 64 ocupações, que pretendiam preservar e despoluir os maiores reservatórios dentro da Grande São Paulo, usados para abastecimento. Há três anos, entretanto, moradores do local relatam não ver nenhum sinal de obra.
Em alguns pontos, é verdade, as ocupações irregulares foram retiradas. Mas, com a falta de continuidade efetiva do programa, os moradores veem desvantagens até nisso. “Antes, tinha casa aqui em frente e pelo menos era tudo limpo. Agora, com essa sujeira e esse matagal, minha casa e as de meus vizinhos ficam vulneráveis a todo tipo de bicho: barata, rato, aranha, até cobra já apareceu”, diz a manicure Josimara Silva, de 29 anos, há mais de 20 moradora da região.
Controladora de qualidade de uma indústria farmacêutica e moradora do bairro há mais de dez anos, Luciene Rosa Alves, de 43 anos, é do tipo que reclama, reclama, reclama, mas não se acomoda. Conhecida pela vizinhança como Mãe Teca, ela costuma organizar mutirões de limpeza das margens da Billings. “Porque se formos esperar pelos políticos, ficamos sem nada, né?”, diz ela.
À beira das represas
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Apesar de manter a postura crítica em relação ao poder público, Mãe Teca reconhece os avanços trazidos pelo Programa Mananciais. Consciente das questões ambientais da região onde reside, ela recorda da retirada das famílias e construções que estavam em solo que deve ser protegido e lembra de melhorias urbanas no entorno, como o caso do asfalto, ao menos das ruas principais. “Antes, qualquer chuva e era só lama”, conta.
A terceira etapa do programa começou em 2012, ao custo de R$ 3,5 bilhões, a serem investidos até 2016. Dos R$ 2,62 bilhões reservados para esse fim até 2014 – entre o último ano da gestão Gilberto Kassab (PSD) e os dois primeiros de Fernando Haddad (PT) –, foram aplicados apenas 18% do previsto, ou seja, R$ 458 milhões, segundo dados da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão.
Vinte e um anos depois do início do Mananciais, o cenário redunda aquele já longínquo 1994. Às margens das represas, populações invadiram terrenos que deveriam ser preservados e ali ergueram casas e barracos. Há décadas, tais assentamentos se consolidaram, têm água e luz e se configuram hoje em ruelas, travessas, becos, pequenas ruas. Um labirinto para quem vê de fora, no qual a reportagem entrou para conferir.
Atualmente, o principal problema para a continuidade das obras é a falta de liberação de recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), feito pela Caixa Econômica Federal. Em julho de 2013, a presidente Dilma Rousseff anunciou R$ 2,2 bilhões para a recuperação dos mananciais das Represas Billings e do Guarapiranga e R$ 1,5 bilhão para a construção de moradias para 20 mil famílias que vivem perto dos reservatórios.
Também há pendências que são atribuídas à gestão Kassab, ainda por causa da licitação do programa. Alguns itens previstos nos contratos para insumos, como asfalto e cimento, estão mais caros do que o teto da Caixa, que usa como base a Sinapi – uma cesta de índices da construção civil. O banco, por regra, não libera valores acima do Sinapi.
Em nota, o ex-prefeito, atual ministro das Cidades, rebate. “A licitação do Programa Mananciais, que beneficiaria diretamente 185 mil pessoas com saneamento básico, 13 mil famílias que vivem em área de risco e é fundamental para manter a qualidade da água das Represas Billings e do Guarapiranga, seguiu rigorosamente a legislação em vigor e a tabela de preço de Siurb (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras), porque não havia sido selecionado pelo governo federal”, argumenta Kassab, por meio da assessoria de imprensa.
“Ainda assim, a adoção da tabela Sinapi ou da Siurb não justifica a paralisação de um programa tão importante para a população de São Paulo, tanto é verdade que, durante a gestão, essas diferenças não foram impeditivo para repasses federais. Bastava a gestão aumentar sua contrapartida quando necessário. Na gestão Kassab, por exemplo, reurbanizações em Heliópolis, Paraisópolis, Jardim São Francisco e intervenções em outras comunidades não tiveram problemas em receber recursos federais”, diz a nota.
Pelo Plano de Metas, Haddad pretende beneficiar 70 mil moradores das margens das represas, com obras de saneamento e infraestrutura urbana. De acordo com a última atualização do balanço das metas, publicada no dia 3 de julho, 52% dos trabalhos ali já foram realizados, englobando “a implementação de infraestrutura urbana nos assentamentos precários, possibilitando o acesso dos moradores aos serviços urbanos, a consolidação geotécnica e/ou remoções em áreas de risco”.
O balanço da Prefeitura ainda informa que a área descrita pela reportagem “é parcial” e que “outras 20 mil famílias serão beneficiadas em locais ainda a definir”. Ainda segundo a administração municipal, de todo o programa, oito pontos foram concluídos nesta gestão, 11 estão em obras ou implementação de estruturas e 57 em etapas anteriores ao início das obras.
Capítulo 2
Construção de moradia é desafio para Haddad e sonho para sem-teto
No Plano de Metas da Prefeitura consta a materialização do sonho de Simone, de Sandra, de Maria e de tantas outras pessoas que não têm um teto próprio. Está escrito, lá no item 35, que a gestão atual pretende “obter terrenos, projetar, licitar, licenciar, garantir a fonte de financiamento e produzir 55 mil unidades habitacionais”.
Simone é a cozinheira Simone Peres Borges, de 40 anos. Sandra Maria Pereira Santana tem 48 anos e é doméstica. Maria da Conceição Oliveira Ramos, também doméstica, tem 32 anos. Em comum, as três esperam há anos por uma casa – atualmente, elas fazem parte do acampamento Nova Palestina, a maior ocupação de sem-teto de São Paulo, perto da Represa do Guarapiranga, na zona sul.
“Decidi entrar para um movimento porque governo é que nem feijão. Só funciona na pressão”, diz Simone. Ela entrou para a fila da habitação quando estava grávida de seu filho único. Na época, o programa era o Cingapura. Hoje, Igor é um homem de 21 anos. “O que não perco é a esperança”, diz, com brilho no olhar. “Tenho total confiança de que um dia vou sair do aluguel.”
Ela é uma das milhares de pessoas que estão acampadas na Nova Palestina e não moram ali. A ocupação, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), foi iniciada em novembro de 2013 e chegou a ter 8 mil famílias. “Mas a maioria sempre foi de pessoas que acampam e moram em outros lugares, de aluguel, como é o meu caso, ou de favor. Somente os que não têm outra opção é que vivem aqui, porque o próprio movimento não pretende favelizar, mas sim lutar por moradias dignas”, afirma ela.
De acordo com os dados mais atualizados da organização, hoje são 4,5 mil famílias acampadas ali – 50 delas residentes de fato. Caso este da doméstica Maria. Ela vivia, com marido e três filhos, no porão da casa da irmã, no Parque do Lago, bairro vizinho. “Quando fiquei sabendo daqui, acabei me mudando”, conta ela, há 8 anos na fila de espera pela casa própria. “No porão, era muito pior. E meus filhos estavam com problemas respiratórios por causa da umidade e pouca circulação do ar.”
“Adquirir os direitos demora”, conforma-se Sandra. Ela está cadastrada há 17 anos em um programa de habitação popular. Se no início era uma preocupação para a família toda, agora quando for contemplada, a casa será só dela. “Meus três filhos já estão criados e têm suas famílias. Um com 31, outro com 30, outro com 28 anos”, conta. Com esse tempo todo, uma coisa ela aprendeu: não confia mais em promessas de campanha eleitoral. “Na época ‘da política’, eles vêm aqui e prometem tudo. Depois se esquecem de cumprir e acho até que se esquecem da gente”, diz.
A Nova Palestina está instalada em um terreno de cerca de 1 milhão de metros quadrados, ao lado da Estrada do M’Boi Mirim. De acordo com os organizadores da ocupação, antes o lote, de propriedade particular, estava abandonado. Também segundo eles, os barracos foram instalados apenas na área já desmatada do terreno, o que corresponde a cerca de 30% da área total. O MTST diz que já efetuou tratativa com o proprietário das terras para adquirir a área com verbas do Minha Casa, Minha Vida, assim que a terceira fase do programa for liberada pelo governo federal.
Se os patamares financeiros forem idênticos à fase anterior, isso significa um valor de R$ 76 mil por unidade habitacional – 15% desse valor pode ser usado para a compra do terreno. É possível ainda pleitear dois aditivos de R$ 20 mil, um do Estado e outro do Município. Pelo projeto do MTST, a ideia é erguer ali um condomínio com 3,5 mil unidades.
Desde que o movimento ocupou o local, foi iniciada uma pressão sobre a Prefeitura para alterar o zoneamento do terreno. Deu resultado. Os vereadores mudaram as regras para os terrenos da Nova Palestina e da Copa do Povo, na zona leste, como forma de permitir a construção de habitações populares nas áreas. No caso do terreno onde está a Nova Palestina, o zoneamento classificado antes como de preservação permanente (Zepam) foi alterado para zona especial de interesse social (Zeis).
Em novembro de 2014, o prefeito Fernando Haddad (PT) alterou decreto de 2010 para permitir a construção de 3,5 mil moradias populares em parte do terreno da Nova Palestina, antes previsto para se tornar parque. Agora, os conjuntos para famílias carentes devem ocupar 30% da área, enquanto os outros 70% permanecem destinados a uma nova área verde.
Das 55 mil unidades habitacionais do Plano de Metas de Haddad, apenas 4.944 foram efetivamente entregues – apesar de a Prefeitura considerar que 45,2% da meta foi atingida. No caso, 2.080 unidades foram entregues em 2013, 1.869 em 2014 e 995 em 2015, nas Subprefeituras de Itaquera, Cidade Tiradentes, Penha, Butantã, Ipiranga, Jabaquara, São Mateus, Freguesia do Ó e Brasilândia, Pirituba, Campo Limpo, Santo Amaro, Jaçanã, Sé e Pinheiros.
De acordo com a Prefeitura, o índice de 45,2% explica-se porque as unidades já estão viabilizadas pela gestão, “uma vez que estão garantidos terrenos para a construção de casas”. A administração municipal também reforça que estão em obras 13.280 unidades em 56 empreendimentos. “Outras 55.758 unidades estão com obras a serem iniciadas e mais 31.040 em fase de aprovação ou elaboração de projeto”, diz o comunicado enviado pela Prefeitura.
O que são zeis?
Em uma estratégia para tentar reduzir o déficit habitacional, o Plano Diretor Estratégico aprovado pela gestão Fernando Haddad (PT) ampliou em 117% as áreas demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), voltadas à construção de moradias populares. Foram incluídas como Zeis regiões bem localizadas e perto do centro da cidade, como Campos Elísios, Bela Vista, Santa Ifigênia, Pari e Brás.
A lei também determina que 60% do que for arrecadado com outorga onerosa – taxa paga por construtoras para empreender acima do limite previsto para o bairro – devem ser investidos em habitação e mobilidade. Quem construir imóveis com mais de 20 mil metros quadrados precisa ceder 10% do valor para moradias populares.
Por outro lado – e aqui está um aspecto bastante polêmico da questão – há casos específicos em que um zoneamento classificado como de preservação permanente (Zepam) pode ser alterado para Zeis. É o que aconteceu com o terreno de 1 milhão de metros quadrados, localizado às margens da Represa do Guarapiranga, batizado pelos ativistas de Nova Palestina. Em área de manancial e antes previsto para virar parque, a área pode ser 30% ocupada por conjuntos para famílias carentes, enquanto os outros 70% permanecem destinados para uma nova área verde.