Morte suspeita

Sem punição


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Bruno Ribeiro Textos
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Clayton Souza Fotos
As estatísticas de SP precisam de auditoria, dizem especialistas

Entre erros de procedimento nas delegacias de polícia e falhas na apuração correta de dados sobre homicídios, alguns dos maiores especialistas em segurança do Brasil apontam a necessidade de padronização de índices criminais e de controle externo da Segurança Pública do País para que a epidemia de violência seja analisada sob critérios confiáveis.

No caso de São Paulo, mais do que isso, pesquisadores como o cientista político Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP), defendem uma auditoria nos índices divulgados.

“Não sei porque cargas d’água colocaram sigilo nesses dados (a íntegra de boletins de ocorrência). Não tem como você falsear dados havendo uma outra base caminhando em paralelo, que é o Datasus. Não tem como esconder”, afirma o pesquisador. “O que é uma morte suspeita? O sujeito está com três tiros na cabeça? Tem de haver uma auditoria”, defende. “Deveria ter uma lei federal, discutida com seriedade no Congresso, determinando auditoria dos dados, e que também determinasse uma metodologia nacional, até para organizar a distribuição de verbas. É como na educação. Os indicadores são ruins? São. Mas há um diagnóstico.”

Beato argumenta que iniciativas do tipo esbarram na “resistência” que as polícias têm a se submeter a controles externos. “As polícias são muito corporativas. E vocês estão falando de homicídios. No caso de registro de roubos, há ainda mais problemas. Fizemos uma pesquisa de vitimização e contatamos que só 30% dos roubos são registrados”, completa.

Autoridades policiais explicam os dados falhos em São Paulo com duas hipóteses principais. Uma seria a frouxidão por parte dos superiores, que não fiscalizariam as rotinas nas delegacias. “Quando o delegado recebe uma notícia de homicídio, o que ele deveria fazer era assegurar que o local fosse preservado para a perícia e encaminhar o caso para o Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP)”, informa o delegado aposentado Nelson Silveira Guimarães, que chefiou as principais delegacias especializadas do Estado. “Mas o que ocorre é que todo mundo mexe na cena do crime, os policiais militares, os próprios policiais civis. Até hoje não existe um procedimento-padrão para homicídios.”

Guimarães diz que o registro de casos como “morte suspeita” é um erro. “Se você encontra uma ossada, não tem nenhuma informação, testemunha, nada, então é o caso de uma morte a esclarecer. Morte suspeita é uma ignorância. Suspeita de quê? Isso é quase uma manipulação de dados. É suspeita de homicídio.”

Outra hipótese seria a de que alguns agentes deixam de registrar delitos. Assim, os índices - não os crimes - são reduzidos, de forma que os policiais evitariam cobranças. “A Polícia Civil já havia cometido esse mesmo tipo de equívoco no passado. O título era ‘morte a esclarecer’ e com isso uma série de homicídios não foi registrada”, aponta o ex-delegado-geral de Polícia do governo Geraldo Alckmin (PSDB) Marcos Carneiro de Lima.

Para o Direito Penal, a mudança na classificação da natureza de um boletim de ocorrência constitui uma falha processual. O criminalista Alberto Zacharias Toron afirma que, assim como o réu deve ser levado a júri, mesmo se ainda houver dúvida sobre sua inocência (e cabe ao júri decidir se ele é culpado ou inocente e não ao juiz), o registro da ocorrência, que é a primeira fase do processo, também deve decidir, na dúvida, pela tipificação mais grave. Ou seja, a polícia deve registrar como homicídio.

“Se vale para o mais, vale para o menos. Em outras palavras: se o promotor, na dúvida, oferece a denúncia ao juiz que, na dúvida, a recebe, e se mesmo na pronúncia (a decisão de levar o réu a júri), o juiz pronuncia, ou seja, se você tem uma situação que é inferior a essa, é o simples registro do B.O., não tenho a menor dúvida que se deve registrar, in dubio, para verificar o homicídio, se houve homicídio doloso ou não”, afirma. A dúvida deve ficar a favor do réu apenas na condenação: na dúvida, o júri deve absolvê-lo.

Fórum criminal da Barra Funda. ROBSON FERNANDES/ESTADÃO

O procurador de Justiça de São Paulo José Francisco Cembranelli, que atuou no Tribunal do Júri da capital, lembra que o simples registro incorreto não impede a investigação e o processo penal. “Após o registro, ao longo das investigações, se é identificado o autor e são reunidas provas, a denúncia pode ser apresentada”, afirma. “Mas um promotor de Justiça arquiva muitos inquéritos em sua carreira porque eles são relatados sem autor.” O argumento do promotor é que um inquérito sem autor significa um crime sem punição.

Há ainda a questão da prática nas delegacias da reclassificação das “mortes suspeitas” para casos de “lesão corporal seguida de morte”. A promotora do Tribunal do Júri da capital Mildred Gonzalez afirma que, embora delegados de polícia façam suas classificações durante o inquérito policial, é o promotor quem de fato apresenta à Justiça um caso de homicídio ou de lesão corporal seguida de morte. “Essa classificação só é feita depois que o autor é identificado. Sem o autor, o caso é arquivado”, afirma.

A desembargadora Ivana David, da 4.ª Câmara de Direito Criminal do TJ, segue a mesma linha: "Não é possível adivinhar que ocorreu uma morte suspeita ou se o agente causador não tinha intenção de matar a vítima, no caso de lesão corporal seguida de morte, sem antes investigar o caso."

Datasus. A classificação da morte como homicídio, com ou sem intenção, é de interesse legal porque interfere na punição do responsável pelo crime. Ao classificar cada caso, a medicina tem outros objetivos, voltados a ações para medir riscos e ordenar políticas públicas - como rigor contra o consumo de álcool para evitar acidentes de trânsito. Para o cientista político Leandro Piquet, a diferença de objetivos é uma das explicações para os dados do Sistema Único de Saúde (SUS) diferirem dos homicídios divulgados pelo governo de São Paulo. “Mas as duas fontes podem e devem ser comparadas”, afirma.

Piquet lembra que, mesmo sem igualdade de números, os dois dados, postos em uma análise estatística, se mostram correlacionados. “É uma correlação de 0,9, ou quase perfeita”, ou seja: se um aumenta, outro aumenta também. Assim, variações diferentes, como ocorreu no ano de 2014, quando os dados da Saúde - divulgados no mês passado - mostraram leve aumento de assassinatos e a Secretaria da Segurança Pública, queda de 4%, podem significar ou um erro estatístico ou algo que precisa ser analisado.

“Em estatística, quando um caso é ruim, talvez por um erro, a gente tira do modelo e roda de novo. Vê como é que fica. Se ficar muito melhor, explicamos, ‘olha, tiramos o ano tal porque esse ano é atípico’. Agora, se no outro ano for a mesma coisa, aí você pode pensar: ‘Será que não teve uma mudança de critério na Segurança Pública?’ Sua pergunta de fundo é essa. ‘Será que estamos observando uma mudança de critério?’ Então precisa investigar os casos”, conclui.

A Saúde também tem uma nomenclatura para classificar as “mortes suspeitas”. São os “eventos cuja intenção é indeterminada”, quando o médico não sabe o que ocasionou o acidente, cuja proporção em São Paulo (9%) é maior do que a média do País (7%). No Estado, para o SUS, houve 5.906 assassinatos no ano de 2014, ante 2.332 mortes com “intenção indeterminada”. Parte dessas mortes também é de homicídios fora da conta. “São sempre as três causas de causa indeterminada. Ou homicídio, ou suicídio, ou acidente. Não há outras”, diz o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz.

Peritos analisam cena de crime após tiroteio em Perdizes, zona oeste de SP. EDU SILVA/FUTURA PRESS

A diferença para os índices da Segurança Pública é que, com os dados do SUS, os pesquisadores fazem projeções para estimar os homicídios dentro do universo das mortes por causa indeterminada. “Você pega quanto representa suicídios, quanto representa acidentes e quanto representa homicídios entre as causas determinadas. Fiz uma estimativa parca, recentemente, e ficou em 70% (de homicídios a serem incluídos no dado de assassinatos)”.

Jacobo busca, ainda, traduzir a salada de dados para a realidade cotidiana. É com o número de mortes, dividido pelo total da população, que pesquisadores catalogam determinada região como segura ou não. “Quando você tem uma taxa de 0,5 a até 5 homicídios para cada 100 mil habitantes, ainda é uma situação normal: a população não se preocupa, sai tranquila à rua. De 5 até 10 casos por 100 mil habitantes, há quebra de normalidade. Começa a aparecer uma série de fenômenos como estruturas privadas de proteção: seguranças, guaritas, etc.”

“Acima de 10, começa a fase epidêmica. Epidêmica porque se espalha. É a festa da bandidagem. Há territórios que são dominados pelo crime, cooptação das estruturas do Estado. É uma situação de guerra”, afirma. “O governo Alckmin está lutando para baixar o índice de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes e agora dizer ‘ah, por fim conseguimos baixar do nível epidemiológico’”, avalia. Para Jacobo, isso não aconteceu, pois São Paulo continua com os sintomas da epidemia.

Modelo. Por causa da confusão entre as polícias e mesmo dentro da saúde pública em classificar os homicídios, organizações como o Instituto Sou da Paz atuam para convencer governantes a adotar modelos únicos de contabilização das mortes. “Existe um corpo estendido no chão que não morreu de causas naturais. É esse o número que tem de estar colocado para a formação dos indicadores de segurança pública, de forma que a sociedade compreenda com facilidade”, diz o diretor-executivo da entidade, Ivan Marques.

“O Sou da Paz tem se esforçado para implementar o Protocolo de Bogotá, um documento que serve como referência para governos a partir de dados tanto da saúde quando das polícias”, explica. A origem da iniciativa está na incompatibilidade de comparação de índices sobre o tema produzidos pelos governos da América Latina, o que dificulta a comparação de dados.

Esse esforço, conclui Marques, não combina com iniciativas que impõem sigilo a dados relacionados à criminalidade. “O sigilo é um retrocesso. São Paulo foi pioneiro, em 1995, na gestão Mario Covas, em determinar a divulgação trimestral dos índices de segurança pública. O governo Alckmin esqueceu esse espírito democrático ao colocar sob sigilo dados básicos para qualquer consulta em segurança pública. É afastar a segurança, que já é uma caixa preta, daqueles que têm vontade de ajudar na construção de políticas para melhorá-la.”

Perfis

Leandro Piquet

Doutor em Ciências Políticas pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, é professor da Universidade de São Paulo (USP). Um dos fundadores do Programa de Pesquisas em Segurança Pública e Direitos Civis do Instituto de Estudos da Religião. Participou de pesquisas sobre violência para a Organização Pan-Americana de Saúde, para o Banco Interamericano de Desenvolvimento e para a Universidade de Londres.

Julio Jacobo Waiselfisz

Sociólogo formado pela Universidade de Buenos Aires, é coordenador da Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLASCO). Foi consultor de diversos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU), como o PNUD, OEA e Unesco.

Claudio Beato

Sociólogo, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP). Coordenou também a área de Segurança Pública do plano de governo na campanha do senador Aécio Neves (PSDB) à presidência da República, em 2014.

Ivan Marques

Mestre em Direitos Humanos pela Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres, é advogado formado pela PUC-SP. Coordenou o programa de proteção da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República entre 2010 e 2011. É diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, organização que colaborou como consultora técnica do projeto de gestão de segurança e integração das polícias do Governo do Estado de São Paulo.

Nelson Silveira Guimarães

Policial civil aposentado, foi diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo e do Departamento de Polícia Judiciária da Macro São Paulo (Demacro), três dos principais departamentos especializados da Polícia Civil.

Alberto Zacharias Toron

Advogado, é doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. É um dos mais requisitados criminalistas do País.

José Francisco Cembranelli

Procurador de Justiça, foi promotor de Justiça por 28 anos, atuando nas Varas do Júri da capital paulista.

Marcos Carneiro Lima

Foi delegado-geral da Polícia Civil no governo Geraldo Alckmin (PSDB) e dirigiu a Divisão de Homicídios da Polícia Civil. É formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco.