Morte suspeita

‘Minha família virou um pedaço de papel’


Felipe Resk Textos
Bruno Ribeiro Textos
Clayton Souza Fotos
A cozinheira Alieti da Silva e outros parentes de vítimas da violência relatam a rotina de uma vida sem Justiça

No fundo de um armário, no segundo andar de um sobrado em A. E. Carvalho, na periferia da zona leste de São Paulo, a cozinheira Alieti da Silva, de 64 anos, guarda três carteiras de identidade. A do filho, Francisco Monteiro. A da filha, Gisele Monteiro. E a da neta, Thuany Tainá de Sousa Monteiro. Todos assassinados. Alieti recolhe os documentos nas mãos e cerra os lábios. “O que está sobrando da minha família é isto: uma pedaço de papel.”

Monteiro foi vítima de homicídio há mais de dez anos com uma facada pelas costas. Gisele foi assassinada depois, com cinco tiros pelo ex-marido. Thuany Tainá, filha de Monteiro, morreu aos 19 anos, após ser agredida por uma vizinha. Mais recente, o assassinato completou um ano em 23 de janeiro. “Não teve Natal, não teve ano-novo, não teve nada”, relembra Alieti. “Todo dia, eu saio de casa e fico esperando… Parece que eu vejo ela vindo, sabe? É angustiante sentir que está faltando alguma coisa.”

Avó de Thuany Tainá Monteiro, moradora da zona leste de SP, já perdeu três parentes de forma violenta. Foto: Clayton de Souza

Abandonada pela mãe e órfã do pai, Thuany Tainá viveu desde a infância com a avó. A jovem tornou-se ausência em uma noite de quinta-feira. Saiu de casa para buscar uma roupa emprestada. Foi surpreendida no caminho de volta, segundo familiares, por uma vizinha: em quem havia batido e por quem havia sido jurada três semanas antes. Teve os cabelos puxados, sofreu uma pancada na nuca e dois chutes no rosto. Socorrida às pressas, chegou morta ao hospital.

A mulher nunca mais foi vista na região: a família de Thuany Tainá ouviu dizer que fugiu para o interior. Em uma pasta de plástico, a cozinheira conserva uma foto rasgada e outros três retratos maiores, com o rosto e o nome da suposta agressora escrito em caligrafia infantil. Levantou as informações com amigos e foi por conta própria à delegacia, entregar uma cópia. Alieti investigou pela polícia.

Dos filhos dela, dois sobraram vivos. Para esquecer as perdas, já tentou sair caminhando a esmo pelas ruas. Pensou em virar andarilha. Também já tentou parar de caminhar. Jogou-se sobre um carro em movimento. “Eu não tenho vontade de nada mais”, diz a cozinheira, que se consulta a cada três meses em um psiquiatra. “Meus filhos nunca foram ladrão, nunca foram bandido, nunca foram nada. O mal da gente é ser pobre. É o único mal que a gente teve.”

A cozinheira Alieti da Silva não tem informações sobre investigações da morte de Thuany Tainá Monteiro. Foto: Clayton de Souza

Para uma irmã, o mal de Marcos Antônio Pimentel, de 45 anos, além de ser pobre, era ser alcoólatra. Desde a morte da mãe, em 2011, ele perambulava de boteco em boteco da Vila Maria, na zona norte, onde morava na rua. Em fevereiro de 2015, Pimentel foi despejado na porta de um pronto-socorro, com fratura nos ossos, hematomas pelo corpo, a língua cortada e os lábios machucados. A família acredita que ele foi vítima de tortura e espancamento.

“Por conta do alcoolismo, ele já chegou a brigar com outras pessoas - e sempre ganhou. Parece que a força dele dobra. Mas do jeito que aconteceu naquela noite, não”, conta a irmã, que recebeu uma ligação do hospital informando o estado de saúde em que Pimentel se encontrava. “Eu nunca - nem em vídeo, nem na televisão - tinha visto um espancamento de tal proporção. É como se uma pessoa tivesse estudado todos os ossos de um ser humano para quebrar um por um.”

Irmã de Marcos Antônio Pimentel, morador de rua espancado em fevereiro do ano passado que morreu em hospital da zona norte. Foto: Clayton de Souza

O irmão morreu três dias depois de ser internado. Até hoje, a família não sabe o motivo das agressões nem os autores do crime - embora a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informe que o inquérito policial do caso foi concluído e relatado. Foram à delegacia registrar um boletim de ocorrência para liberar o corpo, fazer o velório e enterrar o parente. Segundo contam, não foram procurados depois. E não quiseram mais saber da polícia.

Uma professora de 48 anos chegou a procurar a polícia várias vezes. Primeiro, para comunicar a morte do sobrinho Caio Augusto Vasconcellos de Tílio, de 28 anos, assassinado em um bar da Avenida 9 de Julho, em março de 2015. Única parente do rapaz em São Paulo, foi nela que Tílio havia se apoiado ao perder a namorada, morta durante uma briga em uma lanchonete do subsolo da Galeria do Rock, na região central, menos de dois anos antes.

"Foram três ou quatro caras que espancaram ele quase até a morte. Depois, ele foi esfaqueado", conta a tia da vítima. "Eu passei a ir à delegacia. Perguntava se tinha alguma coisa. Nada. Na última vez, perguntei para a escrivã o que precisava, o que eu deveria fazer. Ela respondeu: ‘Olha, os investigadores não vão atrás’." A professora cansou de insistir com a polícia.

A irmã de Marcos Pimentel diz não ter nenhuma informação por parte da polícia sobre o andamento das investigações. Foto: Clayton de Souza

Também foi em um bar que o servente Vanderlei Aparecido Duque, de 49 anos, arrumou confusão. Brigou com um desconhecido, foi enforcado e desmaiou. Portador de doença renal, passou dias internado sem fazer hemodiálise. “Ele ficou em coma e nunca mais acordou”, conta uma irmã da vítima, que acredita ainda que pode ter havido negligência médica. Não sabe qual foi o resultado da polícia.

Em comum, os quatro casos se tornaram registros de morte suspeita. O histórico de nenhum desses boletins de ocorrência chega a ter 25 linhas, nem menciona procura pelos possíveis agressores. Nenhum desses BOs tem testemunhas, só declarantes. Em todos os casos, familiares disseram não saber o desfecho dado pelas investigações.

Irmã de Vanderlei Aparecido Duque, cuja morte é tratada como caso de lesão corporal. Foto: Clayton de Souza

O registro de Duque informa que a vítima apresentava escoriações na face e no ombro direito, mas aponta a causa provável da morte por alto nível de potássio no sangue e insuficiência renal crônica. “Meu irmão fazia hemodiálise, mas estava bem”, diz a familiar. “Se não tivesse sido enforcado, não tinha parado no hospital.” “Para eles, é só mais uma briga de bar. Mas a justiça de Deus não falha.” A SSP afirma que investigou o caso. O inquérito concluiu se tratar de uma lesão corporal seguida de morte. O Ministério Público pediu para polícia investigar mais. O autor do crime continua desconhecido.

No de Tílio, o histórico afirma que o motivo da internação se deve a uma tentativa de homicídio, mas por “falha no sistema” não foi possível fazer a comunicação do óbito. "Pensei em ir atrás, em contratar alguém para investigar. Acabei não indo, porque ninguém sairia ganhando se eu fosse lá me meter a besta. Não adianta eu ficar querendo dar satisfações", lamenta a tia do jovem. A SSP admite que o crime se trata de homicídio e diz que a investigação está em andamento há quase um ano. Afirma ainda que ocorrência está incluída na estatística oficial.

O boletim de Pimentel não fala em tortura nem espancamento. Diz apenas que ele foi vítima de agressão, era morador de rua e que a declarante não faz ideia de quem pode ser o criminoso. Hipertensão de trauma encefálico é apontada como a provável causa da morte. “Eu, quando vi aquilo (o espancamento), fiquei em choque”, afirma a irmã. A SSP informa que o caso tramita na 1.ª Vara do Tatuapé como lesão corporal seguida de morte, embora o Tribunal de Justiça tenha informado que a inquérito não foi localizado.

Irmã de Vanderlei Aparecido Duque, servente que morreu após briga de bar em maio de 2015. Foto: Clayton de Souza

No BO de Thuany Tainá, a única informação que não diz respeito a uma morte violenta é que ela era usuária de drogas. Aos 14 anos, a jovem chegou a esconder uma sacola de lança-perfume na escola e acabou descoberta. Passou a usar cocaína, chegou a namorar um traficante e a ficar mais de 60 dias sem aparecer em casa. A família conta, no entanto, que a situação havia mudado seis meses antes do assassinato.

Thuany Tainá conheceu um homem mais velho, com quem engatou um namoro, e parou de usar drogas. Também começou a frequentar a igreja e até pensava em ser mãe. “Eu fui lutando, lutando, lutando, lutando. Lutei muito por ela”, lembra a avó. “Na hora que a menina estava livre…”, interrompe Alieti, para completar pouco depois: “Isso é uma dor que não passa. Essa dor não passa nunca.”

Inicialmente, a Secretaria da Segurança Pública informou que a jovem era mais uma vítima de lesão corporal seguida de morte – e, por isso, não seria correto incluí-la nas estatísticas de homicídio. Em nova nota, a pasta reconheceu o caso como homicídio. O processo tramita na 4.ª Vara do Júri da capital. A polícia solicitou prazo ao Fórum para relatar o inquérito. Faltam informações nos papéis.