Todos os assassinatos que não entraram nas estatísticas da cidade de São Paulo foram descobertos em meio a dados de 3.766 boletins de ocorrência de “morte suspeita”, obtidos via Lei de Acesso à Informação. Os casos são dos primeiros seis meses da gestão Alexandre de Moraes à frente da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Para fazer o levantamento, a reportagem cruzou registros de homicídio e latrocínio, colheu informações em delegacias, visitou locais de crimes, ouviu parentes e testemunhas e consultou especialistas em Segurança Pública, juristas e autoridades policiais.
A apuração teve início em agosto, com pedido ao governo do número de registros de “morte suspeita” no primeiro semestre de 2014 e de 2015 na capital e no Estado. O Departamento de Administração e Planejamento da Polícia Civil (DAP) informou aumento nos registros, em proporções parecidas com os índices divulgados pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB) sobre redução nos números de homicídios.
Também em agosto, mais dois pedidos foram feitos por Lei de Acesso. Em um, o levantamento com todos os BOs de “morte suspeita” na capital, de janeiro a junho de 2015. A resposta informou o número do documento, a delegacia de registro, o endereço, a data e a hora - mas não o histórico da ocorrência, o que impossibilitava identificar casos com indícios de violência. Após recurso, a reportagem recebeu os relatos em setembro, embora os arquivos omitissem nome da vítima, testemunhas e telefones. No segundo pedido, foi solicitado “todos os boletins de ocorrência de homicídios” entre janeiro e junho de 2014 e no mesmo período de 2015 na capital.
Uma busca simples por expressões como “arma de fogo”, “traumatismo” e “agressão” nas planilhas fornecidas pelo governo separou 84 casos com possível emprego de violência nos registros de morte suspeita. Do total, foram selecionados 42 em que os textos tinham indícios de assassinato mais evidentes. Entres as ocorrências descartadas, por exemplo, estava a de uma vítima asfixiada com um saco plástico, dentro de uma casa sem sinais de arrombamento nem de objetos roubados.
Delegacias. Para localizar testemunhas e familiares das vítimas, o Estado buscou os 42 boletins selecionados em 17 Distritos Policiais da cidade. A etapa também serviu para levantar informações sobre os inquéritos policiais. Nas delegacias que forneceram informações, foi possível eliminar ocorrências em que a hipótese de assassinato era afastada pela investigação policial. Em uma delas, por exemplo, um idoso de 75 anos havia sido encontrado submerso na piscina de uma casa, na zona norte, amarrado a uma cadeira. Apesar de ser um relato suspeito de assassinato, a Polícia Civil ouviu testemunhas e concluiu se tratar de suicídio.
Como nem todas as delegacias funcionam o dia inteiro, foi comum achar casos registrados em um distrito, mas com a responsabilidade pelo inquérito ser de outro. Dos boletins levantados, 26 têm o endereço de um hospital como “local da ocorrência”, uma vez que pertenciam a delegacias que têm hospitais em sua área de atuação.
“‘Morte suspeita’ é para ligar a luz vermelha. Para a autoridade policial saber que precisa esclarecer a fundo”, justificou à reportagem um policial de uma delegacia onde foram registrados cinco dos 42 casos - mas que não ficaria responsável por investigar nenhum deles. Não raro, o documento é concluído sem nenhuma testemunha ser ouvida.
Ao registrar a ocorrência, a delegacia que elabora o boletim encaminha o caso para a área em que a agressão aconteceu. Para instaurar inquérito, em geral, os policiais aguardam o laudo do Instituto Médico-Legal (IML) ficar pronto e comprovar a morte violenta. Isso quando ficam sabendo do caso. Ao Estado, dois delegados disseram não ter recebido a comunicação da ocorrência de DPs de suas áreas. Outra autoridade policial informou que iria abrir inquérito só depois de ter sido alertada pela reportagem.
Em média, um laudo do IML é concluído em cerca de dois meses - e a demora pode comprometer a eficiência da investigação. “Nas primeiras 48 horas (após o crime), a polícia tem de trabalhar de forma efetiva, incansável, para tentar colher todas as provas possíveis”, afirma Marcos Carneiro Lima, ex-delegado-geral. “Nesse momento que acabou de acontecer, pessoas próximas da vítima e até suspeitos estão mais fragilizados, e podem cair em contradição.”
O período também é suficiente para que os crimes fiquem fora das estatísticas divulgadas a cada 30 dias pela SSP - que sempre informa dados do mês anterior. Os índices podem ser atualizados no decorrer do ano e informados no Diário Oficial e no site da secretaria. Por isso, o Estado verificou que, do primeiro semestre de 2015, no entanto, apenas o número de homicídios de março diferem do dia da divulgação.
Família. Com nome, telefone e endereço, que constam nos BOs físicos, a reportagem entrou em contato e ouviu familiares das vítimas e colheu informação em locais dos crimes. Foram excluídos do levantamento casos em que parentes disseram não ter convicção de se tratar de um homicídio e os casos de suicídio.
Várias famílias moram em regiões pobres, próximo de pontos de venda de droga, e têm baixa escolaridade. O caso de uma psicóloga de 61 anos, moradora de um edifício de classe média, morta após ser arremessada de um carro e bater a cabeça no asfalto durante um assalto, era o único a destoar do perfil - ele constava nas estatísticas, como foi descoberto posteriormente.
A análise de boletins que tinham apenas declarantes policiais ou funcionários de hospital foi feita com base no relato do histórico - estratégia que a própria Secretaria da Segurança usa para traçar o perfil dos homicídios no Estado. O Estado consultou policiais civis e ex-delegados para avaliar se a tipificação de morte suspeita estava correta.
Em outubro, foi feito um novo pedido por Lei de Acesso de “todos os registros referentes aos casos incluídos nas estatísticas de janeiro a junho de 2015” de homicídio doloso e latrocínio. “Os levantamentos estão sendo finalizados pela Prodesp. Tão logo sejam concluídos, entraremos em contato com Vossa Senhoria para agendarmos a retirada do resultado”, foi a primeira resposta, que dava a solicitação por atendida em novembro. A reportagem entrou com recurso e recebeu a relação dois dias depois.
Graças a este pedido, foi possível confirmar que os assassinatos apurados durante a busca de fato não estavam nas estatísticas.
Ao fim do processo de apuração com policiais, especialistas, familiares e testemunhas, a reportagem reuniu 29 assassinatos registrados como morte suspeita. Três ocorrências foram detectadas nas planilhas que relatavam os casos contabilizados na estatística e, assim, descartadas da contagem. Uma suposta travesti, esfaqueada no Largo do Arouche. Um idoso que havia sido torturado e morto dentro de casa. E a psicóloga que destoava do perfil de vítimas esquecidas.
Em fevereiro, a reportagem questionou a SSP sobre 34 casos. Antes de receber a resposta, informou à pasta, por escrito, que a própria apuração havia descartado oito deles. A secretaria se posicionou sobre 34 ocorrências mesmo assim.
Dos 26 casos que ainda faziam parte do levantamento, a SSP informou que 11 eram de lesão corporal seguida de morte, quatro de homicídio, três de roubo, duas mortes suspeitas, além de suicídio, infarto, atropelamento, latrocínio, óbito e dúvida entre queda e agressão, cada um com uma ocorrência. Desses, o Estado descartou uma vítima que havia passado por longo período de internação no hospital - o que pode comprometer o nexo entre a agressão e a morte - e outro em que a denúncia de lesão corporal foi aceita e o caso é julgado por um juiz singular, e não pelo Júri.
A secretaria também afirmou que os cinco casos reconhecidos como assassinato constam nas estatísticas da capital - embora nenhum desses registros fora encontrado nas planilhas obtidas por Lei de Acesso. O Estado manteve as ocorrências que tramitam na Vara do Júri, portanto, são considerados homicídios pela Justiça, além dos casos em que a reclassificação foi feita após divulgação dos índices criminais ou que a polícia não havia investigado e, mesmo assim, concluiu não ser homicídio.