Expedição

O bis interrompido de Frank Sinatra e Antonio Brasileiro

‘Se a bossa nova tivesse produzido apenas esse disco,
já estaria justificada’, publicou a revista ‘Down Beat’ sobre um dos maiores encontros do século 20

Por Tárik de Souza

Não canto baixinho assim desde quando tive laringite”, pilheriou o alvo da célebre peça de jornalismo literário Frank Sinatra está resfriado, escrita por Gay Talese, na revista Esquire, em 1966. Na época, o repórter, impedido de falar com o cantor, entrevistou uma centena de pessoas ligadas a ele, erigindo um robusto perfil de 55 páginas. Já a boutade de Sinatra saiu impressa no ano seguinte, na contracapa de um disco, em que além de abrandar o portentoso barítono vocal, responsável por sua alcunha ‘The Voice’, ele ainda fazia outras impensáveis concessões para adaptar-se ao ambiente musical de seu convidado. Pela primeira vez, declinou o nome completo – Francis Albert Sinatra – que no título do álbum não poderia ficar menor que o de Antonio Carlos Jobim, a quem só conseguiu localizar em meio a zoeira boêmia de certo boteco de Ipanema, onde o convite foi recebido, a princípio, entre gargalhadas e descrédito. Era o épico encontro marcado entre a bossa nova, já em declínio no mercado brasileiro, e a canção americana aparentada ao jazz, uma de suas influências primais. Lançado pelo selo do cantor, Reprise, o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim trazia suntuosas orquestrações do maestro alemão Claus Ogerman.

Rejeitado, a princípio, por Jobim em seu disco de estreia (The composer of Desafinado plays, de 1963), o “prussiano”, como ele o apelidou, rendeu-se ao minimalismo “one finger piano” do solista, num resultado cotado com cinco estrelas pela revista Down Beat, sob a advertência: “Se a bossa nova tivesse produzido apenas esse disco, já estaria justificada”.

Ou seja, quando Sinatra fez suas mesuras em direção a Jobim, a gravação instrumental de Desafinado, pelos jazzistas Stan Getz e Charlie Byrd, arrebanhara um milhão de compradores, em 1962, e, dois anos depois, The girl from Ipanema tinha assombrado ainda mais o planeta, nas vozes confidentes de João e Astrud Gilberto, o sax do mesmo Getz e o piano do co-autor da música com Vinicius de Moraes. Sem tempo para ensaios, em meio a inúmeros compromissos do anfitrião, as gravações se resumiram a apenas três intensas noites, entre 30 de janeiro e 1º. de fevereiro de 1967 no Studio One do Western Records, localizado no 6050 do Sunset Boulevard de Hollywood. Sinatra pescou as dez faixas do álbum entre canções que já conhecia de Jobim e outros parceiros além de Vinicius, como Newton Mendonça, Dolores Duran e Aloysio de Oliveira, mesmo que algumas versões, escritas por letristas americanos, ficassem muito aquém dos originais.

Criação da linguagem. Na abertura, a Garota (que só continuou de “Ipanima”, por insistência de Jobim), promove um dueto bilíngue, onde o violão do compositor pontua a batida da bossa, sublinhada pelo carioca Dom Um Romão, baterista expoente do samba jazz do Beco das Garrafas. Em Insensatez (How Insensitive) também há uma intromissão de Jobim em português, num contraplano com o então considerado maior cantor do planeta. Incorporados ao sotaque rítmico da bossa, I concentrate on you (Cole Porter), Change partners (Irving Berlin) e Baubles, Bangles and beads (Wright/Forrest) imantam ouvidos ianques ainda refratários ao gênero forasteiro. Mas também situam a caligrafia jobiniana entre ases da american song.

Descontadas Meditação e Corcovado, em versões ralentadas, predominam canções mais camerísticas de Jobim (O amor em paz, Dindi, Inútil Paisagem), onde Sinatra distende o vozeirão bem timbrado, enquanto Ogerman esbanja as densas tapeçarias de cordas e sopros, que foi obrigado a economizar no voo solo inaugural de Jobim. O disco catapultou a dupla ao 19º. lugar do hit parade americano e ficou 28 semanas nas listas. Pela regra replicante do showbiz americano, um inescapável pedido de bis do público.

Escoltada por novo arranjador, o carioca Eumir Deodato, na época com 26 anos, a dupla voltou aos mesmos estúdios, em fevereiro de 1969 para um Sinatra-Jobim (Reprise 1028), que traria na capa uma foto do cantor recostado na traseira de um ônibus, numa floresta. Mas o poderoso chefão, descontente com o resultado, disparou a ordem imediata para sustar o lançamento. 3.500 exemplares iniciais foram destruídas e apenas algumas versões em fitas cassete de 8 faixas chegaram às lojas, e hoje valem uma fortuna por conta da raridade. Além da capa bizarra, o cantor implicou com o resultado de três faixas, The song of the sabiá, Bonita e Desafinado. Sem elas, o segundo encontro da dupla renderia apenas sete músicas, insuficientes para um LP, o suporte básico do produto disco na época.

O reencontro. A solução viria em 1971: as sobreviventes foram acopladas a outros sete registros de Sinatra de standards americanos, com a orquestra do maestro Don Costa, no álbum Sinatra & Company. Escaparam da degola Drinking Water, onde Sinatra decupa em (bom) português o título refrão do pioneiro afro samba Água de Beber, mais o samba canção Por causa de você (Don’ t ever go away) e as camerísticas Se todos fossem iguais a você (Someone to light up my life) e Estrada Branca (The happy madness), esta com Jobim a bordo, num leve scat (“ô dandá”). Também escaladas, as sincopadas Samba de uma nota só (One note samba) e Triste, como as anteriores, ganharam o revestimento orquestral mais ágil e diáfano de Deodato.

Tom Jobim (1927-1994) ainda participaria, à distância, enviando sua parte gravada, do álbum duplo Duets, de Frank Sinatra (1915-1998), no standard Fly me to the moon. Em 2010, com os dois já fora de cena, finalmente sairiam em CD The complete Reprise recordings da dupla, somando 20 faixas ao todo. Entre elas, uma das defenestradas, Desafinado (Off key) teria desvelado o provável motivo do veto, por Stan Cornyn, autor do texto do encarte. “Aqueles dois homens juntos numa canção de amor não soavam o verdadeiro Sinatra”. Pano rápido!