Expedição

De que bairro saiu Jobim?

O escritor e pesquisador Zuza Homem de Mello faz um mergulho
nos anos anteriores à bossa nova, quando o maestro formava sua identidade

Por Zuza Homem de Mello

A primeira vez que se lê o nome Antonio C. Jobim no selo de um disco na linha abaixo do título deu-se em abril de 1953. Figurava na etiqueta do 78 rotações Incerteza, que indicava também, como era praxe, o gênero da música: samba-canção. Gravado pelo seresteiro da orla paulista Mauricy Moura, procedia da parceria de Jobim com seu amigo de infância Newton Mendonça, como ele pianista de boates em Copacabana. Ambos faziam letra e música indistintamente, mas Jobim exercia outra atividade paralela, a de arranjador na gravadora Continental. Foi como ele pôde praticar a esmerada educação musical adquirida com respeitados professores do Rio de Janeiro, os de piano Lucia Branco e Tomás Terán, e os de orquestração, Alceo Bocchino e Radamés Gnattali, numa “relação tão útil quanto a do mestre e do aluno e tão doce quanto a do pai e o filho”, na descrição de Sérgio Cabral, autor da sua exemplar biografia.

Alceo e Radamés despejaram seu conhecimento no colo do jovem promissor, bonitão, casado de novo, atento a tudo que ouvia e talentoso. Nessas condições pode-se afirmar que Jobim pode ser considerado o mais preparado músico de sua geração quando viesse a compor. Ou por outra, já o vinha fazendo mas, receoso, guardava na gaveta como quem aguarda o momento certo.

Se Incerteza, bem como Pensando em Você e Faz uma Semana, sambas-canção dos discos seguintes, não despertaram grande atenção, tanto que nenhum chegou a ser regravado, o quarto disco tinha algo a mais. Era Solidão com Nora Ney, mais tarde interpretado por João Gilberto em espetáculos não gravados, por Gal Costa, por Caetano Veloso, Zezé Gonzaga e Dick Farney que, no ocaso de sua carreira, registrou emocionante versão. A canção se desenvolve a partir de um elegante motivo de quatro notas, em melodia que se desfolha com espontaneidade sobre acordes encadeados por um compositor essencialmente harmônico.

Essa sua marca, de compositor que sabe trabalhar a harmonia para melodia relativamente simples, fica mais evidente no seu quinto disco como autor, em que se define seu nome oficial, sem o apelido Tom entre parênteses: Antonio Carlos Jobim. É o samba-canção Outra vez na voz de Dick Farney, em que ele exercita letra e melodia baseada no motivo de apenas três notas que são revirados de várias maneiras por sete vezes (Outra vez / Sem você / Outra vez / Sem amor / Outra vez / Vou sofrer / Vou chorar) até o arremate da seção com uma frase de seis notas (Até você voltar). A riqueza dessa melodia tão simples é ressaltada pela sequência harmônica da mesma maneira que ocorreria muitos anos mais tarde com a obra prima Águas de março. Gravado por Dick Farney em junho de 1954, Outra vez teria destino privilegiado ao ser incluído no célebre LP Canção do amor demais com Elizeth Cardoso, porém com a revolucionária novidade do violão de João Gilberto. Um samba-canção que se aproxima da bossa nova.

Quem começava a se excitar com os primeiros lançamentos dos discos LPs não conseguiu se conter quando surgiu o dez polegadas Sinfonia do Rio de Janeiro, monumental produção de Tom Jobim e Billy Blanco com um scratch de cantores de primeira linha e a orquestra de Radamés Gnattali em temas descrevendo as belezas da cidade rodeada de montanhas, sol e mar. Cinco dos onze temas eram sambas-canção: Arpoador (com Lucio Alves), Noites do Rio (Doris Monteiro e Os Cariocas), O mar (Elizeth Cardoso e Dick Farney), A montanha (Emilinha Borba) e O morro (Nora Ney), que se tornou o mais conhecido. Dick e Lucio, por sinal, estavam por cima da carne seca com o sucesso de Tereza da Praia, o diálogo musical que havia projetado os dois autores da Sinfonia nesse mesmo ano de 1954.

O samba-canção Se é por falta de adeus, gravado por Doris Monteiro, marca no ano seguinte a primeira coautoria, de outras no mesmo gênero, de Jobim com Dolores Duran. Se as poucas novas composições não chegaram a repercutir, pelo menos a toada A Chuva Caiu, em parceria com o exímio violonista Luiz Bonfá, chegou às paradas na interpretação da nova sensação, Ângela Maria.

1956 seria o ano de boas novas e radical transformação na carreira do destacado arranjador, então na gravadora Odeon. Não só foi convocado para a orquestração do primeiro LP da futurosa cantora Silvia Telles, Carícia, como também era o autor da mais comentada faixa do disco, mais uma parceria com Newton Mendonça. Foi a noite tinha uma cara tão estranha fosse pelas harmonias, fosse pelo tratamento orquestral, que até o experiente Aloisio de Oliveira, diretor da gravadora, estranhou o que chamou de “uma coisa inteiramente nova dentro dos padrões brasileiros”, não sabendo bem como qualificar o que era samba-canção. Na dúvida, ficou calado. E intrigado. E talvez até apaixonado pela voz da cantora com quem viria a se casar.

A primeira grande oportunidade da vida de Tom Jobim aconteceu fortuitamente também em 1956. Era ele quem estava no bar Vilariño quando Vinicius de Moraes manifestou ao crítico Lucio Rangel necessitar de um compositor para o musical que tencionava levar avante sobre um Orfeu negro. Tom foi chamado, acertaram os ponteiros e se entregaram a compor canções formando uma nova dupla. Deu super certo. Foi como veio à tona o samba-canção Se todos fossem iguais a você, maior destaque da peça, da trilha gravada e imediatamente regravada nove vezes com realce para Maysa, que se proveu de novo sucesso.

Se todos fossem iguais a você marcaria um distanciamento de Tom Jobim do samba-canção. E o motivo foi Chega de Saudade, por causa de João Gilberto. Um distanciamento mas não um afastamento, pois em anos posteriores Caminhos Cruzados ou Ligia ilustram as frequentes reaproximações com sua primeira opção como compositor, o samba-canção.

Zuza Homem de Mello vai abordar novamente os primórdios de Tom Jobim no livro ‘Copacabana’, previsto para sair no segundo semestre de 2017, pela Editora 34.