Expedição

No País das Cantoras

Um bálsamo para vozes femininas, obra do compositor virou teste para avalizar muitas carreiras

Por Renato Vieira

No País das cantoras, elas têm uma admiração de primeira hora pela obra de Tom Jobim. Da Era do Rádio à nova MPB, intérpretes de diferentes gerações e estilos passaram por esse cancioneiro que alcançou dimensão sagrada. A partir de 1952, quando conseguiu um emprego de arranjador na Continental, o compositor foi se mostrando aos poucos. Nora Ney, contratada da gravadora, gravou dois anos depois Solidão, parceria com Alcides Fernandes, e O Que Vai Ser de Mim, que não ficaram para a posteridade. Dois sambas-canção com letras de dor de cotovelo, ao gosto dos frequentadores dos enfumaçados clubes e boates de Copacabana em que o músico tocava para ganhar um dinheiro a mais.

As pequenas e bem colocadas vozes de Doris Monteiro e Sylvia Telles – esta gravaria um disco só com músicas de Tom num momento posterior, Amor de Gente Moça (1959) – tentam estabelecer um novo padrão de interpretação em meados dos anos 1950, sem arroubos vocais. Elas têm nas canções de um Jobim pré-bossanovista, mas já requintado, o veículo ideal para suas intenções. No meio do caminho há Angela Maria, a cantora mais popular do Brasil, cantando A Chuva Caiu, uma toada escrita com Luiz Bonfá.

Dolores Duran merece consideração especial. Com Jobim, ela escreveu três canções que alcançaram o status de clássico: Se É Por Falta de Adeus, Estrada do Sol e Por Causa de Você, a única que gravou. Originalmente, teria letra de Vinicius de Moraes. Ao ouvir a melodia tocada por Tom no piano da Rádio Nacional, Dolores escreveu a sua com lápis de sobrancelha e mandou um bilhete ao Poetinha. “Vinicius, outra letra é covardia, hein!”. Tom e Vinicius aceitaram. Os homens bossa nova também estavam na vanguarda comportamental, num tempo em que o meio musical era predominantemente machista.

A voz feminina que alçou Jobim à vanguarda da música brasileira é Elizeth Cardoso, ao ser convidada por Vinicius de Moraes e Irineu Garcia, dono do selo Festa, para gravar o álbum Canção do Amor Demais, com músicas da frutífera parceria Jobim/Vinicius. É um dos marcos iniciais da bossa nova, ao lado do 78 rotações de João Gilberto com Chega de Saudade no lado A. Discoteca básica e referência para registros futuros. João tocou violão em algumas faixas e tentou ensinar Elizeth a cantar de um jeito que se casaria melhor com sua batida, sem sucesso. Nem precisava. A Divina, como era chamada, tinha uma bossa particular.

Depois do concerto coletivo do Carnegie Hall, em 1962, a música brasileira se internacionalizou e Tom ficou nos Estados Unidos. Sua sofisticação harmônica conquistou Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Carmen McRae e outras que tinham de domar a potência da voz para passar sem vacilos pela sutileza das notas. Quem também passaria por americana, apesar de ser de Salvador, é Astrud Gilberto, cuja voz cool apareceu pela primeira vez em Getz/Gilberto, disco reunindo o saxofonista Stan Getz e João com participação de Tom, cantando versões em inglês para Garota de Ipanema e Corcovado. Um sucesso comercial no mundo inteiro. Astrud, que nunca havia cantado antes, tornou-se profissional quase à força.

Como Tom é coisa nossa, aquela que é considerada a maior cantora do Brasil mereceu um presente. Elis Regina tomou para si Águas de Março, que chegou pelas mãos de seu diretor artístico Roberto Menescal, sentindo-se vingada. Ela havia sido rejeitada pelo maestro para interpretar o papel de Pobre Menina Rica, musical de Carlos Lyra e Vinicius, no disco com o registro do espetáculo. “Essa gaúcha ainda está cheirando a churrasco”, teria dito. Em 1974, conseguiu o que nenhuma cantora de sua geração teve chance até então. Um disco com o maestro. Regravada em dueto pelos dois, Águas de Março ganhou seu registro definitivo.

Já de volta ao Brasil, Tom emplacou dois discos com Miúcha produzidos por Aloysio de Oliveira, o mesmo de Elis & Tom. Se com Elis o maestro reviu sua própria obra, com a irmã de Chico Buarque se sentiu à vontade para tocar piano em canções de autores que vieram antes dele, caso de Ary Barroso e Custódio Mesquita. O maestro sabia que a voz feminina era a mais adequada para acompanhá-lo, o que se reflete na formação e na escolha da Banda Nova, com vocalistas como Paula Morelembaum e Simone Caymmi. Ainda em vida, Tom recebeu belas homenagens de Ella Fitzgerald e Joyce, que lhe dedicaram discos. Gal Costa, Claudette Soares e mais recentemente Vanessa da Mata e Carminho também fizeram os seus. Outras deverão fazer. O desafio é deixar a bossa sempre nova.