14 décadas de história pelas palavras do jornal

Análise textual mostra como fatos históricos e interesses cotidianos mudaram os termos de cada época

Rodrigo Burgarelli

Foram 3 bilhões de palavras em 2,1 milhões de páginas para contar a história do Brasil e do mundo de 1875 até hoje. O Estadão Dados fez uma varredura nas edições do jornal das últimas 14 décadas para descobrir as palavras mais usadas em cada período. O resultado revela a mudança nas preocupações de homens e mulheres desde o século 19 e a evolução do próprio conceito de notícia.

Na década de fundação do jornal, as notícias se equilibravam entre os interesses público e privado. Não por acaso “casa” está entre as dez palavras mais publicadas de 1875 a 1880 – o ranking desconsidera palavras conectivas sem significado semântico para esse tipo de análise, como artigos e preposições. Foram 20 mil menções, o equivalente a quase três por página. A Província de São Paulo tinha forte identidade regional e as cidades paulistas ainda eram pouco mais que vilas, nas quais os endereços de uns e outros eram conhecidos por quase todos.

Em 17 de junho de 1879, uma notícia começa assim: “Anteontem, às 10 da noite, alguns sócios do clube Gymnástico Portuguez notaram que em uma casa de miserável aparência e que fica fronteira ao edifício do clube, à rua do Imperador, dava-se alguma coisa de desusado, pois ouviam-se música e ruídos estranhos”. Já nos anos 1870 havia quem reclamasse do barulho dos vizinhos. A diferença é que naquela época cada reclamação era digna de nota.

Mudanças em expressões comuns se destacam. Um exemplo é a palavra “corrente”. Foi uma das 15 mais usadas na década de 1880 porque era costume dizer “8 do corrente”, por exemplo, para se referir ao oitavo dia do mês. Também era utilizada para acompanhar ano.

O desenvolvimento econômico pelo qual passou o País nos últimos anos do Império deixou sua marca na década de 1890. Histórias provincianas perderam espaço para assuntos econômicos e várias empresas começaram a anunciar seus produtos e a publicar atas de reuniões no jornal. A palavra “companhia” aparece em destaque entre as mais mencionadas.

Nem sempre, porém, os temas mais lembrados nos livros de história apareceram com frequência – República, por exemplo, foi apenas a 85.ª palavra mais citada pelo Estado nessa década, apesar de a proclamação ter sido em 1889.

Com o aumento vertiginoso da produção e exportação de café, vários termos relativos ao tema ganharam destaque. Saccas, na época grafada com duplo “c”, está entre as dez mais escritas dos anos 1910, assim como Santos, cidade por onde a maior parte da produção era exportada. É também a década que a palavra “telefone” aparece entre as principais pela primeira vez.

Os dez anos seguintes são marcados pelo uso do termo “vapor” para se referir aos navios estrangeiros que atracavam no porto santista. Com o crescimento das exportações e importações, ela chegou a dispensar acompanhamento – dizia-se apenas “o vapor inglez”, por exemplo, para designar um navio britânico. Em 1920, a ascensão de “nacional” entre as 25 palavras mais frequentes simboliza a transição do alcance do jornal, que diminuía paulatinamente seu caráter regional e se tornava referência na cobertura dos grandes temas do Brasil.

‘Governo’. Essa mudança se consolidou no decorrer do século. A crise de 1929, que marcou a diminuição da dependência da economia brasileira em relação ao café, teve efeito parecido nas páginas do jornal – o tema quase não aparece entre as palavras mais repetidas dos anos 1930. O fortalecimento do papel do Estado na Era Vargas enfatizou temas políticos. “Presidente” e “governo” passaram a figurar entre as dez mais citadas.

A tendência continuou na década seguinte, mas a agenda internacional passou a dominar o noticiário com a extensa cobertura sobre a 2.ª Guerra Mundial, principalmente entre 1940 e 1945 – período em que o Estado esteve sob intervenção da ditadura Vargas. Nas páginas do jornal, isso fica claro na repetição de termos como “guerra”, “forças” e “alemães”. A volta à democracia em 1946 é simbolizada por uma mudança entre as palavras mais citadas: “interventor”, que designava os governadores nomeados pelo presidente, dá espaço a termos como “assembleia” – referência principalmente à constituinte de 1946.

Daí em diante, “governo” e “presidente” nunca deixaram o topo da lista das palavras mais escritas no Estado, seguidas de perto por termos que resumem acontecimentos importantes de cada época. Um exemplo é a alta frequência da palavra “capital” nos anos 1950, turbinada pelos debates sobre a construção de Brasília.

‘General’. Nos anos 1960, o golpe militar levou o noticiário político a dominar grande número de páginas. Entre os termos mais citados, aparecem “general” e “ato”, referência aos 17 atos institucionais que criaram a base jurídica para o aprofundamento da ditadura no País.

Na década de 1970, o “milagre econômico” multiplicou o uso de palavras como “desenvolvimento”, “empresa” e “indústria”, que pela primeira vez aparecia entre as 100 mais citadas. Mas, a partir dessa década, um fenômeno interessante surge na análise textual, decorrente do aumento do número médio de páginas por edição – que passou de 30 em 1950 para mais de 100 na década de 1980. Mais páginas significam mais temas abordados, o que aumenta a dispersão das palavras usadas e diminui a ocorrência de termos historicamente relevantes entre os mais citados.

Isso não impediu que, durante a hiperinflação dos anos 1990, a palavra “preço” figurasse entre as mais repetidas pelo jornal. O advento de novas tecnologias também deixou sua marca. “Fax”, por exemplo, foi um dos termos mais citados nessa década. Nos anos 2000, é a expressão “www” que chama a atenção na lista das mais repetidas – foram mais de 200 mil menções na década, mais que o dobro do que teve o nome do ex-presidente Lula, por exemplo. Uma explicação para isso está nos classificados, que nos anos 2010 também alçaram para o topo palavras como “shopping”, “dorms” (dormitórios), “vgs” (vagas) e outros termos típicos do boom imobiliário que transformou as grandes cidades brasileiras.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’