Na Era Vargas, cinco anos de intervenção

Homens de Filinto Müller invadiram o jornal em 1940 e forjaram apreensão de armas no forro do prédio

Lira Neto
Especial para o 'Estado'

Um grupo de brutamontes armados e mal-encarados, sob as ordens expressas do chefe de polícia da ditadura do Estado Novo, Filinto Müller, invadiu no dia 25 de março de 1940 a sede do jornal O Estado de S. Paulo – que à época funcionava na Rua Boa Vista, centro da capital.

A batida policial tinha como pretexto investigar supostas denúncias de que a diretoria do periódico, mancomunada com “um grupo de perigosos comunistas”, estaria organizando uma conspiração para depor o então ditador Getúlio Vargas.

Policiais bloqueiam entrada da então sede do jornal na Rua Boa Vista e funcionários aguardam do lado de fora (ACERVO/ESTADÃO)

Insinuava-se que o jornal da família Mesquita pretendia reeditar, em versão revista e ampliada, a Revolução Constitucionalista de 1932 – movimento que getulistas sempre preferiram chamar de “contrarrevolução”, em contraponto à vitoriosa Revolução de 1930, movimento civil-militar que levara Getúlio ao poder.

De acordo com os relatórios oficiais, a busca no imóvel resultou na apreensão de um arsenal de armas e munição pesada, incluindo metralhadoras, que teriam sido encontradas escondidas sobre o forro do prédio. Foi determinado o fechamento imediato da gráfica e da redação, enquanto Francisco Mesquita e outros diretores eram levados presos.

Após dez dias sem circular, o jornal reapareceu sob nova administração e alvo de intervenção federal, com o advogado e jornalista Abner Mourão figurando no alto do expediente como diretor efetivo.

Processo aberto pelo Tribunal de Segurança Nacional determinaria, contudo, a improcedência das denúncias, restando a suspeita histórica de que o armamento teria sido plantado pela própria polícia.



Ainda assim, o Estadão só voltaria ao controle dos Mesquita cinco anos depois, em dezembro de 1945, logo após a queda de Vargas – ironicamente derrubado por setores da caserna que haviam dado sustentação militar ao Estado Novo.

No decorrer da extensa Era Vargas, a relação entre Getúlio e O Estado de S. Paulo foi marcada por incontáveis sobressaltos. Ainda em 1930, o jornal endossara sua candidatura à Presidência, declarando apoio à Aliança Liberal, coligação que surgia no cenário político como o corolário das bandeiras defendidas pelos Mesquita na Primeira República.

Quando, em 29 de outubro de 1930, o revolucionário Getúlio Dornelles Vargas passou de trem por São Paulo a caminho do Rio – onde dali a cinco dias tomaria posse no Palácio do Catete –, o Estadão saudou aquele momento de euforia cívica com uma imensa foto do futuro chefe de governo no centro da primeira página. A edição comemorativa esgotou em poucas horas. Os principais concorrentes, que haviam apoiado a candidatura de Júlio Prestes, não puderam sair às ruas, pois suas oficinas e redações tinham sido empasteladas por populares pró-Getúlio.

O apoio do jornal ao novo regime não resistiu, porém, às primeiras medidas adotadas pelo autodenominado Governo Provisório. O fechamento do Congresso Nacional, a nomeação de interventores estaduais e a suspensão da Constituição Federal, consideradas por Getúlio etapas necessárias à consolidação do movimento revolucionário, encontraram forte oposição nos meios políticos e, sobretudo, em São Paulo, onde a efetivação de um interventor militar, o pernambucano João Alberto Lins de Barros – considerado um corpo estranho às tradições paulistas –, foi encarada como afronta pela sociedade local, que exigia um “paulista e civil”.

Segundo Julio de Mesquita Filho, o tenentista João Alberto, um homem “nascido sob o signo do Padre Cícero e criado na admiração dos cangaceiros Antônio Silvino e Lampião”, militar “cuja infância se passara na contemplação dos mocambos de Recife”, não era adequado para administrar São Paulo.

Getúlio, em nome da centralização política e da ideia de edificar seu projeto nacionalista, procurava desmontar, nos diferentes Estados, as tradicionais oligarquias e as respectivas máquinas partidárias regionais. Não se tratava, é óbvio, de tarefa de simples execução.

Houve reações de toda espécie. No caso paulista, Getúlio assistiu com assumido temor à aproximação entre os liberais do Partido Democrático (PP) que haviam apoiado a Revolução de 30 – entre os quais a família Mesquita – e as velhas lideranças do oligárquico Partido Republicano Paulista (PRP) derrubadas do poder pelo movimento.

Na tentativa de contornar o evidente mal-estar, Getúlio viu-se obrigado a rifar João Alberto. Para ocupar o lugar vago, numa tentativa de conciliar o que logo se mostraria inconciliável, convidou ninguém menos do que Plínio Barreto, redator-chefe de O Estado de S. Paulo. O fato desgostou o líder tenentista Miguel Costa, um dos comandantes da legendária Coluna Prestes e recém-nomeado por Vargas para o posto de chefe da Força Pública e secretário de Segurança no Estado.

Antevendo os atritos que por certo sobreviriam, Barreto declinou do convite, o que explicitou a animosidade entre liberais-democráticos e tenentistas, provocando o agravamento da crise política e institucional.

Enquanto foi possível, Getúlio Vargas procurou alternar afagos e benesses. “Sempre que alguém rosna mais forte nos calcanhares de Getúlio, ele atira um osso, às vezes sem carne, para o resmungador se aquietar”, chegou a definir o tenentista Agildo Barata.

Em janeiro de 1932, porém, os liberais de São Paulo romperam em definitivo com o Catete e, dali a poucos meses, pegaram em armas contra o antigo aliado, exigindo a imediata reconstitucionalização do País.

A Revolução Constitucionalista – ou contrarrevolução – significou um capítulo à parte na história do Estado. Francisco Mesquita foi para a frente de batalha enquanto o irmão, Julio de Mesquita Filho, assumiu o papel de conselheiro político do coronel Euclydes Figueiredo, comandante das forças rebeldes no Vale do Paraíba.

Quando, após quatro meses de sangrentos confrontos, as tropas federais neutralizaram o movimento paulista, Getúlio decretou a cassação dos direitos civis, por três anos, de cerca de 200 implicados no levante. Na longa lista de deportados estavam os irmãos Mesquita, que mesmo no exílio seguiram conspirando contra o poder varguista. Retornaram cerca de dois anos depois, em 1934, já no processo de reconstitucionalização pelo qual tanto haviam militado.

Resistência. O interregno democrático foi breve. Quando, em 1937, Getúlio fechou de vez o regime, instaurando o Estado Novo, o jornal permaneceu como uma das únicas frentes de resistência na imprensa à ditadura, o que levaria Julio de Mesquita Filho a ser preso outras 17 vezes e, de novo, conduzido ao exílio. O periódico ficou sob direção do irmão Francisco até aquele tumultuoso 25 de março de 1940, quando a sede da Boa Vista foi invadida pelos homens de Filinto Müller.

Em 6 de dezembro de 1945, ao retomar enfim o controle do jornal, com Getúlio submetido a retiro compulsório em São Borja, a família Mesquita se recusou a aceitar a legitimidade editorial dos exemplares impressos ao longo dos cinco anos de intervenção. Naquele dia, repetiu o número 21.650 estampado na primeira edição sob interventoria de Abner Mourão. Até hoje, aliás, o Estadão desconsidera, em sua contagem oficial, os números editados entre a invasão do jornal e a sua volta às mãos dos donos.

Quando Getúlio, sem precisar sair do interior gaúcho e apenas poucas semanas após a queda, elegeu-se deputado por seis unidades da federação e senador por outras duas – incluindo, no dois casos, São Paulo – o jornal deplorou o ocorrido. “Foi cometido o erro de se manterem intactos os direitos políticos do ex-ditador”, analisou um dos editoriais da casa. “Decaído do poder, ele continuou, escandalosamente, a dirigir partidos políticos e a traçar diretrizes para a luta eleitoral.”

Por isso, não foi de estranhar que O Estado, cinco anos adiante, em 1950, tenha se posicionado frontalmente contra o retorno de Getúlio, desta vez como presidente constitucional e democraticamente eleito, consagrado por uma votação até então recorde na história do País.

Ironicamente, uma vitória eleitoral cujo caixa de campanha foi financiado, em larga escala, por representantes da emergente burguesia industrial paulista – nova elite empresarial surgida no bojo das mudanças econômicas, políticas e sociais da tão controvertida Era Vargas.

É JORNALISTA E AUTOR DA BIOGRAFIA GETÚLIO, PUBLICADA EM TRÊS VOLUMES PELA COMPANHIA DAS LETRAS.