‘Estado’ apoia golpe de 1964, mas rompe com regime meses depois

Jornal passou à oposição quando militares cancelaram eleição de 1965 e passaram a ceder espaço à linha dura

José Maria Mayrink

O jornal O Estado de S. Paulo apoiou o golpe de 1964 para derrubar o presidente João Goulart, mas rompeu definitivamente com o regime militar após a edição do Ato Institucional n.º 2 (AI-2), que cancelou as eleições previstas para 1965. O entusiasmo de Julio de Mesquita Filho com o governo começou a cair com a constatação de que o presidente, general Humberto de Alencar Castello Branco, cedia espaço à linha dura do Exército, liderada pelo general Arthur da Costa e Silva, ministro da Guerra. O jornal passou a publicar violentos editoriais contra a ditadura já antes de 1968, quando o presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, que fechou o Congresso, cassou mandatos parlamentares, arrochou a censura à imprensa e prendeu dezenas de opositores.

Alto preço. Julio de Mesquita Filho: decepção com linha dura

O Estado pagou caro pela derrota de seus ideais. “Foi em primeiro lugar a vida de meu pai: com o AI-5, ele deixou de escrever o principal editorial do jornal e caiu doente”, afirmou Ruy Mesquita em 2004. O último foi justamente Instituição em Frangalhos, que causou a apreensão do jornal horas antes do anúncio do AI-5 (veja ao lado). Julio de Mesquita Filho morreu seis meses depois, em junho de 1969, após a reativação de uma úlcera de duodeno. “O trauma moral pelo que estava acontecendo no País o levou à morte”, concluiu Ruy na mesma entrevista.

A agitação social e política dominava o Brasil desde a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Militares tentaram impedir a posse de seu vice, João Goulart, que só conseguiu assumir com a instauração do parlamentarismo – em 1963, o regime seria extinto após plebiscito. Sob a influência de sindicatos e políticos de esquerda como Leonel Brizola e Miguel Arraes, Goulart prometia fazer reformas de base, entre elas a agrária.

A crise chegou ao auge em 13 de março de 1964, quando Goulart fez um inflamado discurso na Central do Brasil, ao lado do Ministério da Guerra, no centro do Rio, com apoio do líder comunista Luís Carlos Prestes e de associações de sargentos e praças das Forças Armadas. No mesmo dia, assinou um decreto de desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e barragens e outro transferindo cinco refinarias de petróleo à União. No dia 19, a Marcha da Família com Deus pela Democracia, organizada pela União Cívica Feminina e outros grupos, levou 500 mil pessoas às ruas de São Paulo, em reação à “ameaça comunista”.

Julio de Mesquita Filho começou a conspirar com outros líderes civis e um grupo de militares, com patentes de coronel para baixo, antes de os generais, legalistas ou indecisos, se decidirem pelo golpe – ou contragolpe preventivo ao golpe que, acreditavam, o governo preparava para implantar uma república sindicalista com apoio de comunistas. Oficiais coordenados pelo major Rubens Resstel, do 2.º Exército, atualmente Comando Sudeste do Exército, reuniam-se com intelectuais e empresários para armar a reação. “Em defesa da democracia, eu sou um conspirador”, declarou Julio de Mesquita Filho, em dezembro de 1963, três meses antes da deposição de Goulart.

Censor. Nilo Ferreira analisa reportagens: 1.136 textos cortados em menos de 2 anos (DOMICIO PINHEIRO/ESTADÃO)

O jornalista participava dos encontros clandestinos, muitas vezes em sua casa em São Paulo ou sua fazenda em Louveira, quando as Forças Armadas ainda não pareciam dispostas a intervir no quadro político. Um de seus aliados era o governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que defendia a queda de Goulart, mas se opunha ao golpe. Lacerda argumentava que, se fossem às armas, os militares não deixariam tão cedo o poder, acabando com seu projeto de se candidatar a presidente da República.

Julio de Mesquita Filho admitia esse risco, mas preferia acreditar que os generais sairiam logo de cena, com a convocação de eleições para escolha de um civil, após execução de um programa revolucionário de “limpeza do cenário político, com cassações de direitos políticos”, como disse Ruy Mesquita em 2004. “Em nosso caso, não se pretendia fazer uma revolução radical – nem era uma revolução na verdadeira acepção do termo – porque era apenas um golpe para deter o golpe que se preparava.”

Ele e os irmãos, Julio de Mesquita Neto e Luiz Carlos Mesquita, como garantiu o pai a Carlos Lacerda, estavam prontos a dar a vida pelo País.

Amigo da família, Lacerda conversou muito com Julio de Mesquita Filho. “Uma noite, ele apareceu sem se anunciar na fazenda em Louveira. Meu pai disse a ele que achava que o golpe era inevitável e deveria vir o mais breve possível a intervenção militar para deter o golpe de Jango”, contou Ruy.

“Julio de Mesquita Filho viu com grande arrependimento a modificação do movimento do qual participou em 1964”, escreveu o diplomata Roberto Salone no livro Irredutivelmente Liberal, acrescentando que, “com essa decepção, começa a mais desabrida oposição do Estado à ditadura, a um regime autoritário, cujo desfecho foi o AI-5”.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’ E AUTOR DE MORDAÇA NO ESTADÃO