Especial: Cerco aos isolados

Livros contra o crime

Na beira do rio, Machado de Assis e Júlio Verne viram 'armas' na floresta

André Borges (textos) e Werther Santana (fotos)

É perto de meio-dia. A turma de 15 alunos já deixou a sala de aula e correu para casa. Em sua mesa, o professor José Cruz Queiroz do Nascimento permanece atrás de provas e exercícios. Na pequena escola da “Comunidade Contrabando”, na fronteira do Peru com o Brasil, Nascimento tenta fazer a diferença na vida de crianças que nascem nas vilas espalhadas ao longo do Rio Javari.

A sala de aula é uma grande casa de madeira com assoalho suspenso para os tempos de cheia. Apesar do calor forte e da umidade amazônica, o ar é fresco dentro da escola. Nas poucas cadeiras, os alunos da primeira e da quinta séries do ensino fundamental dividem a atenção do professor. Diariamente, Nascimento, de 43 anos, pega o barco em Atalaia do Norte e sobe o rio para chegar à escola.

Nas estantes de livros, o exemplar mais gasto é uma cartilha que leva o nome de Saberes e Fazeres do Campo. Mas também há espaço para Os trabalhadores do Mar, romance de Victor Hugo, para os gêmeos Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e ainda para A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne.

“Sou professor há 14 anos. Nesse tempo, aprendi que a gente precisa ensinar de tudo para esses meninos, para serem pessoas melhores”, diz Nascimento. “As condições aqui são precárias mesmo, as crianças têm pouco acesso ao que acontece lá fora e acabam só se baseando no que veem ao redor delas. Os livros ajudam a educar e a abrir o mundo para elas.”

A vida dos ribeirinhos conta no entorno da terra indígena os desafios do trabalho, da educação e da saúde

É o que espera José Vieira Barros, de 85 anos, que tem bisnetos na escola. Soldado da borracha, Barros nasceu no meio das seringueiras. Desde os 12 anos, conta, ajudava o pai a retirar o látex da casca das árvores para alimentar a indústria da borracha. “Trabalhei na seringa até os 60 anos”, conta, enquanto busca a faca da seringa guardada no armário de casa. “Criei minha família na seringa, mas estou brigando até hoje pra comprovar que fui soldado da borracha, pra receber o que tenho direito.”

Índios da etnia marubo saem de barco no Brasil e seguem até a margem peruana do Rio Javari, para jogar bola em campinhos improvisados
Mãos de José Vieira Barros, de 85 anos, seringueiro desde os 12, morador nas margens do Rio Javari, na fronteira entre o Brasil e o Peru
José Vieira Barros, de 85 anos, tenta provar que passou a vida trabalhando como 'soldado da borracha', para receber indenização do governo
O agricultor peruano Carlos Nunes e a família, em sua casa, no Rio Javari. Peruano relata dificuldades para educar os filhos e buscar apoio a serviços de saúde do lado brasileiro

O Ministério da Previdência Social prevê o pagamento de uma indenização no valor de R$ 25 mil para os soldados da borracha, como são conhecidos os seringueiros que atuaram na extração de látex durante a 2.ª Guerra Mundial. Os dependentes dos seringueiros que já morreram também têm direito à indenização. Barros ainda não entrou para as estatísticas dos 11.900 beneficiários calculados pelo governo.

Pelas salas de aula que lutam para educar o Javari é possível encontrar ainda escolas trilíngues. Na Escola Estadual Indígena Professor Gildo Sampaio Megatanücü, na Comunidade Filadélfia, em Benjamin Constant, as aulas são dadas em português, espanhol e ticuna, para educação de índios que já vivem nas cidades. “Temos 1,2 mil alunos. A maioria é indígena”, conta a professora de Geografia, Cássia Mesquita. “Mas há também peruanos e brasileiros.”