O tarja preta que você usa pode não curar a depressão

Dos pacientes diagnosticados com a doença na Região Metropolitana de São Paulo, 4% se tratam apenas com hipnóticos e sedativos, e ignoram antidepressivos

27º Curso Estado de Jornalismo

Elisa Clavery e Rafael Gonzaga

Um dado inédito de uma pesquisa sobre o uso de psicotrópicos na Região Metropolitana de São Paulo revelou que médicos estão receitando remédios como o Rivotril como único medicamento para pacientes com depressão. O problema é que o sedativo é apenas auxiliar no tratamento da doença e deve ser usado em poucos casos. Segundo o levantamento, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as drogas da classe dos hipnóticos e sedativos são consumidas como se fossem antidepressivos por 4% dos entrevistados com transtorno de humor. O resultado é reforçado por outro estudo, do Ministério da Saúde, que aponta o princípio ativo do Rivotril como o segundo mais usado por pessoas com depressão no Brasil.

Rafael Gonzaga

“De repente, virou uma moda receitar Rivotril, mas ele não trata, é o antidepressivo que trata”, diz Laura Helena Andrade, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que coletou dados para a pesquisa, chamada São Paulo Megacity. Realizado com 5.037 pessoas, o levantamento é parte da iniciativa internacional World Mental Health Survey, feito em 28 centros de pesquisa no mundo para mapear os transtornos psiquiátricos e seus tratamentos.

O clonazepam, princípio ativo do Rivotril, é um anticonvulsivante que deve ser usado principalmente para tratar epilepsia, ressalta a pesquisadora. No entanto, essa substância é a segunda droga mais usada por pessoas com depressão no Brasil, consumida por 18,2% dos diagnosticados, segundo pesquisa inédita do Ministério da Saúde. Só perde para o antidepressivo fluoxetina (19,2%). O consumo se traduziu num salto de 11% nas vendas nos últimos cinco anos. Segundo a consultoria QuintilesIMS, apenas nos últimos 12 meses quase 25 milhões de caixas de clonazepam foram comercializadas na rede privada. O Rivotril é, hoje, o tarja preta mais vendido no Brasil.

Com a receita de um clínico geral, Luiza F., de 23 anos, começou a tomar apenas o Rivotril para tratar a depressão e a insônia. Só passou a tomar antidepressivo dois anos depois, quando o quadro se agravou e o tratamento para a doença começou a ser feito com um psiquiatra. "Demorou até minha família perceber a gravidade da coisa", diz ela, que prefere não se identificar por medo de sofrer preconceito por usar o medicamento.

Hoje, ela toma dois antidepressivos, mas não largou o clonazepam. “O Rivotril afasta alguns pensamentos ruins e me deixa dormir, mas o psiquiatra quer que eu pare aos poucos.” Além disso, a combinação funcionou. “Eu acho que minha depressão melhorou 90%. Às vezes, ainda tenho recaídas, mas nada muito grave", afirma.

A bula do remédio diz que a associação com antidepressivos é indicada apenas em casos de ansiedade e no início do tratamento. Entre as possíveis reações ao uso do Rivotril, aponta sonolência, cansaço, vertigem, coordenação anormal, irritabilidade, perda de equilíbrio e concentração prejudicada. Segundo o psiquiatra Thiago Marques Fidalgo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudos já mostram que o uso crônico aumenta a chance de demência, principalmente em pessoas com vulnerabilidade. “Esses medicamentos são depressores do sistema nervoso central, fazem o cérebro funcionar de forma mais lenta, reduzem a pressão arterial”, diz. A Roche, fabricante do remédio, diz que somente o médico pode prescrevê-lo, seguindo as necessidades do paciente e através de receita controlada pela Anvisa. O laboratório afirma que segue a legislação e regulamenta a promoção e a venda da droga.

Para Fidalgo, os maiores problemas do uso desse remédio são a dependência e o risco de abuso. "O organismo vai precisando de doses cada vez maiores para ter o mesmo efeito", explica. O relações públicas Lucas El'Osta, de 25 anos, consome Rivotril há um ano e meio associado com antidepressivos para combater a doença. Perto do fim do tratamento, é o único medicamento do qual não quer abrir mão. “Se eu viajo num fim de semana e esqueço, preciso voltar em casa ou dar um jeito de comprar, senão tenho dificuldade para dormir.”

El’Osta sabe que a substância causa dependência e admite os efeitos colaterais indesejados. "No começo, foi ótimo. Era colocar o comprimido sublingual e em dez minutos sentia o corpo relaxado. Quase não lembrava dos problemas", conta. Com o tempo, começou a identificar outras reações, como problemas de memória e nas funções cognitivas. “Eu me sinto dopado se tomar durante o dia. É como estar anestesiado, você acha que no começo é bom, mas depois não é bem assim. Fica complicado focar nas coisas do dia a dia”, diz.

Receita médica

Psiquiatras acreditam que a tendência de prescrever somente o Rivotril é reforçada por profissionais de outras especialidades médicas. “Talvez em função do treinamento do psiquiatra, que faz com que se prescreva menos esses remédios, ou pelas outras técnicas que usamos, como psicoterapias”, diz o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva.

Quem receitou a droga à pensionista Zulmira Fernandes Cotulio, de 70 anos, foi seu cardiologista. Diagnosticada com depressão, ela toma o medicamento há 15 anos e já ouviu de outros médicos que devia parar. “Nunca vou parar de tomar, sem ele eu não durmo”, diz Zulmira. Para Angela Campanha, uma das autoras da pesquisa feita na Região Metropolitana de São Paulo e professora do Departamento de Farmácia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Zulmira está no grupo dos maiores consumidores de clonazepam, que são as mulheres idosas. “Como o remédio tira um pouco da coordenação, pode ser ainda mais perigoso para os idosos, que já têm naturalmente um risco de sofrer quedas”, explica a especialista.

Ainda que não trate a depressão, Fidalgo diz que o clonazepam até pode ser usado de forma associada com o antidepressivo em casos de ansiedade ou insônia, por exemplo. Mas não por muito tempo. "A indicação é só para o começo do tratamento, por um período curto. Normalmente, de semanas a meses, não de anos", alerta.