'Remédios têm sido tratados como bens de consumo', diz doutor em toxicologia da USP

27º Curso Estado de Jornalismo

Sarah Teófilo

Professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, com pós-doutorado em Medicina Interna e Terapia Médica pela Università degli Studi di Pavia, na Itália, ele analisa a cultura da medicalização e suas consequências, e aponta as responsabilidades de cada um nesse problema: da indústria farmacêutica ao médico e o próprio paciente.

Arquivo Pessoal - Reprodução
Doutor em Toxicologia, o professor do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) Leonardo Régis afirma que os remédios têm sido tratados como bens de consumo

Nos últimos cinco anos, houve um aumento de 42,6% na venda de remédios no Brasil. É um número preocupante?

Com certeza. Vai contra as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS), de foco no acesso e no uso racional dos medicamentos. Se existe consumo desenfreado, não está tendo uso racional. Infelizmente, os remédios têm sido tratados como bens de consumo e seu uso inadequado ou indiscriminado pode causar problemas. Até os isentos de prescrição podem trazer sérias consequências quando utilizados de maneira inapropriada, sem o acompanhamento de um profissional de saúde. No entanto, gostaria de destacar que metade dos pacientes não consegue obter todos os medicamentos que são prescritos, de acordo com estudos conduzidos pelo meu grupo de pesquisa. E quase 90% não recebem informações suficientes sobre como devem utilizar os medicamentos.

Por que a maioria das pessoas está se automedicando?

É uma questão multifatorial. Pelo que se tem discutido na literatura, talvez a medicalização da sociedade esteja mais ligada aos tempos modernos, a uma pressão maior para cumprir metas, ao estresse. Há também outra variável: os especialistas da psiquiatria defendem que as pessoas hoje não conseguem conviver com a dor e acabam buscando refúgio - um deles é o medicamento.

O senhor acredita que médicos estão prescrevendo remédio além da conta?

O que posso falar, com base no que ouço dos profissionais, é que as pessoas entram nos consultórios esperando sair com uma receita na mão. Se o médico não prescreve e diz só para controlar a alimentação e fazer exercício, o paciente sai falando que ele é ruim. Então, volto à questão da medicalização. Não sei se o médico prescreve para o paciente sentir que foi assistido. O que dá para dizer é que a sociedade tem ânsia por medicamento.

O medicamento mais consumido no Brasil desde 2011 é o Neosoro, que não é essencial. Isso reforça que estamos nos medicando sem necessidade?

As doenças mais prevalentes são as crônicas não transmissíveis, entre elas a hipertensão, o diabetes e a síndrome metabólica (junção de hipertensão, diabetes e obesidade), além da depressão. Se você não tem entre os medicamentos mais consumidos os que servem para tratar esses problemas, há alguma coisa errada. Outro problema é a automedicação. Nas farmácias, você tem os medicamentos de venda livre, isentos de prescrição, e pode comprar sem pedir para ninguém. Isso, de certa forma, ajuda a passar uma certa imagem para sociedade de que o medicamento não faz mal. Mas não é assim. E tem ainda a questão da propaganda, que reforça essa ideia.

Existe falta de controle pelo governo?

Não, não é culpa do governo. É uma análise multifatorial. Há os profissionais de saúde, que teriam de zelar pela informação - ainda mais no Brasil, onde uma grande parcela da população tem formação educacional deficitária. O paciente precisa ser ensinado, orientado. Ele não sabe que o Dorflex tem efeito benéfico, mas que pode causar reação adversa. O profissional precisa ser sensibilizado desde a formação na graduação. Tem de deixar claro que é fundamental estimular o uso racional, fornecer todas as informações. Um profissional bem treinado não vai prescrever pressionado por ninguém, o farmacêutico no balcão não vai fazer o que chamamos de “empurroterapia”, que é ficar oferecendo vários medicamentos, ou deixar o paciente comprar medicamento sem precisar só para bater meta.

O fato de os medicamentos sem prescrição serem vendidos em cartelas, no balcão, facilita o consumo. Isso é falta de regulação?

Essa é uma prática comum no mundo inteiro. Claro que, se o medicamento estivesse mais “protegido”, seria melhor. Se ele estivesse no balcão de dentro da farmácia, haveria menos automedicação. Mas não adianta só isso. Tem de trabalhar com a propaganda, informar que, se você usar todo dia determinado remédio, pode causar uma lesão renal e terá de ir para a fila de hemodiálise. Há várias medidas para transformar o uso do remédio em algo mais racional. Porém, isso também dificulta o acesso do paciente ao medicamento. Imagine quem está com dor nas costas e não consegue marcar consulta porque o sistema de saúde é complicado... Então, muitas vezes, se automedicar é uma forma de a pessoa desassistida tentar resolver o problema. Tudo tem os dois lados. Tem de saber dosar.

O senhor falou de propagandas. Elas deveriam ser diferentes?

Se uma propaganda só mostra as coisas boas, é como convencer alguém a pular de paraquedas falando dos pontos bons, mas omitir a possibilidade de ele não abrir. No final, de forma rápida, até aparece que o médico deve ser consultado. Mas, na verdade, alguém tem de informar que o medicamento vai fazer bem, mas também fará mal. Talvez seja um pouco utópico achar que a propaganda vai corrigir isso. O que se tem de fazer é usar o sistema de saúde, e isso inclui as farmácias, que não podem ter caráter somente comercial. Elas precisam ser encaradas como um posto de saúde e se comportar como um ambiente de saúde. É diferente de entrar em um supermercado, e as pessoas têm de ter essa visão.

O aumento de medicamento também tem a ver com a busca de sintomas na internet?

É difícil comprar remédio sem prescrição? Não. Além do fácil acesso, existe a internet, que simplifica ainda mais. O Brasil tem uma legislação, e ela deve ser cumprida. Remédio com prescrição não pode ser vendido sem receita. Os órgãos de regulação precisam fazer com que se cumpra a lei. O que acontece é que, principalmente com os medicamentos de tarja vermelha, há um certo relaxamento, porque não precisa reter a receita e a pessoa pode pedir várias vezes o remédio. É aqui que devemos falar dos órgãos de fiscalização. Só que, com esse tanto de farmácia no Brasil, como vou conseguir fazer dar certo? Então, é preciso mexer na questão ética do profissional. Se eu trabalho em uma farmácia e me nego a vender um remédio de tarja vermelha, porque não vi a receita, você vai atravessar a rua e comprar do meu concorrente. A lógica comercial atrapalha o uso racional de medicamento.

A forma como a indústria funciona colabora com esse uso desenfreado?

É claro que tem pressão da indústria, tem lobby de todos os lados. Mas todo mundo tem sua parcela de culpa: a indústria, o mercado farmacêutico de varejo, o profissional de saúde, o sistema de saúde. A indústria influencia muito mais no prescritor do que no consumidor, tanto é que existem os representantes que visitam consultórios médicos. Mas não vou falar que, se tirar a indústria está resolvido, porque não está. A própria população tem sua parcela de culpa ao buscar o medicamento antes de se consultar, olhando na internet, comprando tarja vermelha sem receita.