IX

O drama da saúde

Mortes de crianças e dinheiro para saúde aumentam no Javari

‘Não sou computador para gravar esses números’, diz diretor de Saúde Indígena

De janeiro a junho deste ano, 16 crianças de 0 a 2 anos morreram por motivos de saúde no Vale do Javari. Os dados foram repassados por técnicos que atuam na região. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informou que 12 meninos e meninas morreram na área nesse período. Tanto o número oficial quanto o levantado nesta reportagem superam o de óbitos ocorridos nos seis primeiros meses do ano passado, quando foram registradas 11 mortes. Os relatórios oficiais do Ministério da Saúde em Brasília citam causas vagas de morte, como parada cardíaca, baixo peso, desidratação, vômito e diarreia.

Há diferenças entre os relatórios de Brasília e os dos profissionais da Saúde que estão em campo. Uma análise dos dados registrados pelos próprios técnicos de nível médio que trabalham nas aldeias e depoimentos desses agentes indicam erros de procedimentos e falhas de gestão da Sesai. Técnicos afirmam que os registros de mortes tornam-se mais brandos ainda na coordenação da secretaria em Atalaia do Norte, que não estaria repassando a Brasília todas as informações extraídas dos relatórios de campo. As causas das mortes costumam ser maquiadas ou fatos que levam ao óbito são omitidos dos relatórios consolidados. O que ocorre na região é um caso grave de violação de direitos humanos e manipulação de registros de saúde.

Em 17 de janeiro, a menina Anete Cruz Marubo, da Aldeia Pentiaquinho, nasceu com problemas de saúde. Ela ingeriu líquido da placenta da mãe. Uma equipe da Sesai em Atalaia do Norte foi acionada pelo rádio. Em poucas horas, o helicóptero da empresa que presta serviço para o órgão pousou na aldeia, deixando uma equipe. A criança precisava ser removida. Mas o piloto saiu antes e só retornaria três dias depois. Anete morreu no voo para Atalaia. No relatório parcial dos óbitos, de 1.º de janeiro a 27 de abril de 2015, consta apenas que a criança morreu em virtude de hipoglicemia e baixo peso. É a versão apresentada ao Estado pelo secretário especial de Saúde Indígena, Antônio Alves. Ele diz que o caso de Anete “provavelmente” é de um recém-nascido de baixo peso. “Esse óbito ocorreu no hospital. Era uma criança de baixo peso, possivelmente por causa da desnutrição da mãe ou uma gravidez precoce”, afirma.

Em abril, o menino Denilson Bay Mayuruna, de 1 ano, chegava ao posto de saúde da Aldeia Fruta Pão, no Médio Curuçá. Tinha diarreia. O técnico do posto foi orientado por rádio pela enfermeira do polo-base que funciona em outra aldeia da região, a São Luís, a fazer um escalpe, uma entrada de soro na veia da criança. O técnico disse que não podia pois não tinha agulha no número 27, espessura mais fina. A criança foi levada num barco motor 15 para a Aldeia São Luís. O transporte levou três horas. Lá, a enfermeira aplicou uma agulha de numeração 19 (quanto menor o número, maior a espessura) na veia da criança, que não resistiu ao procedimento. Denilson morreu no dia 3 de abril. O relatório consolidado informa que ele faleceu na Fruta Pão, omitindo o translado para São Luís, e se limita a informar que o óbito ocorreu em virtude de gastroinfecção, desidratação severa e choque hipovolêmico.

Em abril, encontramos um helicóptero da Moreto Táxi Aéreo, que presta sƒerviço para a Sesai, na Aldeia Paraíso. O piloto Alexandre Felix de Souza explicou que o Esquilo havia tido problemas mecânicos. Um técnico tentava consertá-lo. Semanas depois, em 29 de maio, Alexandre morreu na queda do helicóptero. O acidente ainda matou outras quatro pessoas, incluindo duas marubos grávidas.

Helicóptero modelo Esquilo, prefixo PR-ADA, da empresa Moreto Táxi Aéreo, com problemas mecânicos na Aldeia Paraíso, dos índios matises, no Rio Branco. O piloto Alexandre Felix Souza aparece sem camisa no canto direito da fotografia. Em 29 de maio, ele e outras quatro pessoas morreram na queda da aeronave. O acidente está sendo investigado por autoridades. Dida Sampaio/AE.

O Distrito Sanitário Especial Indígena do Vale do Javari é um dos 34 que formam a estrutura da Sesai. Desde a criação em 2010 para garantir a saúde indígena, a secretaria tem tido uma atuação marcada por suspeitas de má aplicação e desvios de recursos, números exagerados de mortes de crianças nas aldeias e interesses para garantir emprego a militantes e aliados políticos defenestrados em órgãos de maior influência no governo. O órgão substituiu a antiga Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que era criticada pela inoperância e corrupção.

Vista grossa. O diretor do distrito do Vale do Javari, Heródoto Jean de Sales, o Tota, ilustra o perfil de boa parte dos que ocupam cargos de chefia na Sesai. Antes de assumir o posto, ele trabalhou na Funai. Tota deixou o órgão em meio a acusações de fazer vistas grossas a mortes de índios por hepatite, promover assistencialismo e provocar intrigas entre grupos indígenas. Saiu por cima. Por meio de contatos políticos, chegou ao comando da Sesai no município, que dispõe de recursos que a Funai não tem.

O trabalho de cooptar caciques não foi suficiente para Tota chegar ao comando da prefeitura de Atalaia do Norte. Derrotado na eleição para prefeito em 2008, ele se esforça agora para vencer a próxima disputa. Desta vez, tem a seu favor uma máquina de 320 funcionários. A figura do “Pai Tota”, assistencialista e provocadora de embates entre os índios, choca-se com as novas diretrizes brasileiras para a área de Saúde. Os eventos de prevenção de doenças são verdadeiros atos partidários na cidade e nas comunidades ao longo do Javari e dos igarapés.

Não é por falta de gente nem de dinheiro federal que crianças morrem antes de completar 2 anos na região. No momento em que o Estado estava em Atalaia do Norte, nenhum dos sete médicos da Sesai atuava nos oito polos-base do Javari.

Desde que chegou ao comando da Sesai na região, logo após perder a disputa eleitoral, Tota já contratou 40 novos funcionários, a maioria para serviços gerais, cumprindo acordos eleitorais e se posicionando para o próximo pleito.

Tota ilustra a mudança de perfil dos que formam a base do PT no Brasil. Não é um militante formado nas reuniões do setor “progressista” da Igreja Católica, nos encontros de sindicatos, nos eventos estudantis. Nunca teve vínculos com grupos de esquerda nem atuou na defesa de minorias e comunidades pobres do Alto Solimões. Pertence à família Sales, tradicional na política do município. Para ele, a sigla PT não está ligada a uma história de atuação social, mas à de um partido que está no poder e tem o controle de cargos públicos em Atalaia do Norte, cidade sem oferta de emprego e renda.

A convite de Paulo Marubo, coordenador do Univaja, entidade que reúne lideranças de várias etnias, entramos na Casa do Índio, um lugar de apoio aos que vêm da aldeia para se tratar em Atalaia do Norte. As condições no local são precárias. Falta comida, sobra lixo. Crianças e adultos lotam corredores e quartos insalubres e mofados. Ao saber da nossa presença no local, Tota se revolta e por celular manda seguranças nos retirar. Paulo Marubo, porém, lembra aos seguranças que a casa pertence aos índios. Tota chega em seguida, tenso. Ele quer saber se a reportagem falará “mal” dele. Respondo que a intenção é apenas pedir esclarecimentos sobre as mortes das crianças.

Tota ilustra também um Brasil que aos poucos perde seu bom humor e sua cordialidade, mergulhado nos interesses partidários e pessoais. Tira o celular do bolso para nos fotografar, como se estivesse colhendo provas de um crime.

Crianças próximas a um canal de esgoto em Atalaia do Norte, no extremo oeste do Amazonas. Dida Sampaio/AE.

Mais calmo, o diretor aceita dar uma entrevista. Ele diz que considera “normal” o número de óbitos de crianças registrado na região. Alega que elas não morrem nas aldeias, mas nos postos de saúde e nos hospitais da cidade que não são de responsabilidade da Sesai. “Essas crianças foram a óbito nas cidades. Você deve saber que o atendimento de saúde na cidade é responsabilidade do município, não é da Sesai”, afirma. Comento que as crianças morrem por falta de atendimento e assistência nas aldeias.

A um pedido de números de crianças mortas, ele responde: “Não sou computador para gravar esses números”. Insisto na pergunta sobre o número de óbitos nos últimos dias. “Ontem (dia 18 de abril de 2015) morreu uma criança canamari”, responde. Comento que duas crianças canamaris morreram no dia anterior e esses óbitos ocorreram em aldeias. “Eu tinha informação de que morreu uma”, retrucou. Ele recorre ao auxílio de uma assessora que confirma as mortes das duas crianças no território indígena, área de responsabilidade da Sesai. “OK, foram duas.”

Tota põe a culpa nos pajés, que não estariam permitindo o trabalho do pessoal da Sesai nas aldeias. As lideranças indígenas rebatem, dizem que os pajés são os primeiros a cobrar tratamento para as crianças. De forma irônica, pergunto por que ele ainda não entrou com processo contra os guias espirituais. Dois dias depois da entrevista, Tota foi à Justiça para responsabilizar os pajés pelos óbitos.

Dados divulgados em maio pelo jornalista Rubens Valente, da Folha de S. Paulo, mostraram que 1.156 crianças indígenas de até 1 ano morreram por gripe e desnutrição entre 2000 e 2012 no País. No caso do Javari, técnicos de saúde ouvidos pelo Estado reclamam das condições de trabalho. Eles são contratados por uma ONG evangélica, a Caiuá, de Mato Grosso. Recebem cerca de R$ 2 mil por mês e ajuda de R$ 21 por dia. O problema é que ficam 30 dias no trabalho de campo. Mas esse período dificilmente é respeitado. Há situações em que os técnicos chegam a permanecer 80 dias na região, sem contato com a família. “É uma espécie de cárcere”, diz um dos profissionais. Ele conta que a orientação é para ser sucinto e não registrar problemas de trabalho. Em 2014, segundo a Sesai, a Caiuá recebeu cerca de R$ 15 milhões, para contratação de agentes indígenas de saúde, médicos e outros profissionais. Neste ano, o convênio prevê R$ 12 milhões para a ONG.

Vacina não chega às aldeias

No ano passado, 28,3% das crianças de até 1 ano do Vale do Javari não foram vacinadas. Os números estão num relatório da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) ao qual o Estado teve acesso. Uma análise isolada de relatórios feitos por técnicos de saúde que atuam em campo mostra situações agravantes. No polo-base do Médio Javari, o porcentual de crianças de até 1 ano vacinadas só atinge 55%. Situação parecida com a do Médio Ituí, onde o índice é de 60%.

Yanamary Kanamari, de 1 ano, da Aldeia Remansinho, e Luís Tinihan Kanamari, de 1 mês, da Aldeia São Luís, foram algumas das crianças que morreram de “pneumonia” no ano passado na região onde as metas foram “alcançadas” e “o número relativamente pequeno de óbitos mensais nos possibilita uma melhor investigação”, segundo destaca o documento da Sesai encaminhado para Brasília.

A Sesai de Atalaia do Norte ressalta ainda que o índice de vacinação completa atinge 114% quando se estende à faixa etária até os 7 anos, porcentual superior aos 77,5% da meta. É um número que pode estar maquiado. Os dados registrados nos relatórios dos técnicos que estão em campo mostram que o índice de vacinados até 6 anos é de 71,4%. O aumento poderia estar numa campanha de vacinação bem-sucedida na faixa etária de 6 a 7 anos.

Dados dos profissionais ainda revelam situação alarmante nas aldeias do Médio Javari, do Itacoaí e do Médio Ituí. Nessas regiões, o índice de vacinados na faixa etária de até 4 anos é de apenas 44%. No Alto Ituí, o porcentual de vacinados é ainda menor. Lá, apenas 35,4% das crianças de até 4 anos receberam vacinação. Das 96 crianças das aldeias, 62 não foram imunizadas.

Dida Sampaio/AE.

‘Ele nunca foi candidato a prefeito’

A Sesai investiu no ano passado R$ 10,7 milhões em ações de saúde no Javari. Desse montante, R$ 4 milhões foram para o pagamento de aluguel de helicópteros. Também gastou R$ 15 milhões na contratação de funcionários arregimentados pela ONG evangélica Caiuá. São valores bem acima dos R$ 2,2 milhões gastos pelo governo federal em 2008 na região, quando apenas 20 profissionais faziam o atendimento de saúde nas aldeias.

O secretário especial de Saúde Indígena, Antonio Alves, defende o diretor da Sesai Heródoto Jean de Sales e chancela a versão de que as mortes de crianças ocorrem devido à “complexidade” regional e aos pajés. Ele contabiliza 12 óbitos desde janeiro. No momento dessa conversa, na noite de 15 de junho último, técnicos de saúde na área tinham informado ao Estado que já eram 16 crianças mortas por questões de saúde neste ano.

Na entrevista, pergunto se ele confia no diretor do distrito sanitário e se não havia uma situação complicada pelo fato de Heródoto Jean de Sales ter sido candidato a prefeito de Atalaia do Norte e estar em campanha para 2016. “Você tem que perguntar se eu confio nessa notícia. Ele nunca foi candidato a prefeito. Ele nunca se envolveu em política”, rebate o secretário.

Ratifico que Heródoto foi candidato em 2008. “Mas aí foi antes de ele entrar na Sesai. Todo brasileiro acima de 18 anos tem direito de disputar eleição. O que a gente não aceita é usar a saúde indígena para se candidatar”, afirma Alves. Ele diz que Heródoto está sendo alvo de “interesses contrariados” numa “cidade pequena”. O secretário acusa os pajés de estarem impedindo a vacinação de crianças. Na viagem ao Javari, só ouvi os pajés reclamarem da ausência dos profissionais da Sesai nas tribos. A visão do mundo isolado e desconectado da nossa realidade, nesse aspecto, não faz sentido.

A um pedido para avaliar a relação entre Sesai e Funai no Javari, ele diz: “A Funai tem o papel dela, que não é no campo da saúde. Ela não interfere nem para mal nem para bem. Às vezes ela até prejudica a gente”, comenta. Não é assim. A Funai tem por função acompanhar a situação dos índios.

Em nota, a Sesai ressalta que o distrito recebeu do programa Mais Médicos cinco profissionais cubanos. Também destaca que, neste ano, a cobertura vacinal de crianças menores de 1 ano está em 95%, superior aos 75% registrados em 2012. A Sesai argumenta que a contratação de horas-voo trouxe “grandes avanços”, “uma vez que não é possível pousar de avião em nenhuma das 54 aldeias atendidas”. “O tempo de viagem de barco entre aldeias e a sede do distrito pode durar até 15 dias”, ressalta. “Em épocas de secas, nem barcos conseguem chegar. O transporte aéreo, por meio de helicóptero, está ajudando não somente a remover pacientes graves em tempo hábil, como também a colocar equipes de saúde em área com maior agilidade.”

Suicídios no paraíso perdido

Damã Leonardo, de 21 anos, quer deixar a aldeia matis Tawaya, no Vale do Javari, em busca de direitos dos jovens da cidade de Atalaia do Norte. Da mesma tribo, Binin, de 48, que mantém a tradição de perfurar o rosto, lembra que a terra deles custou sangue de “parentes”.

Damã Leonardo, de 21 anos, de camiseta vermelha, à direita na foto, quer trocar a aldeia matis Tawaya, no Vale do Javari, Amazonas, pela cidade de Atalaia do Norte. Da mesma tribo, Binin, de 48, sem camisa, que mantém a tradição de perfurar o rosto, lembra que a terra deles custou sangue de “parentes”. Dida Sampaio/AE.

Os mais novos reclamam da monotonia na aldeia, termo novo por aqui. À tarde, jovens praticam vôlei e futebol e crianças brincam no terreiro do centro da aldeia circular. Com o pôr do sol, os índios descem para o rio ou se recolhem em suas malocas. Uma bruma sai da floresta, encostando no céu já estrelado. A temperatura da terra começa a cair com o início da noite. As malocas são iluminadas pelo fogo e pelos geradores que funcionam até as 22 horas. A maior delas, a xubu amã, onde vive a família do cacique, destoa pela grandiosidade.

Quando amanhece, a vida volta a se repetir. Os mais velhos reclamam que os jovens vivem sem sossego, reclamando pelos cantos. É assim também em Paraíso, a outra aldeia matis. Esses índios estão diante do segundo desafio em sua história recente. Depois de sobreviverem às epidemias do pós-contato nos anos 1970, enfrentam agora o êxodo e a vontade dos mais novos em buscar uma vida diferente.

É uma geração que teve algum contato com a cidade e tem dificuldade de enfrentar o tempo na floresta, sem os atrativos que conheceu em Atalaia do Norte ou Tabatinga. Muitos com quem conversei falam da ânsia de ter um trabalho que lhes traga renda. Herdeiros de uma das terras mais ricas do Brasil, eles não têm dinheiro para comprar um short ou uma blusa, vestuário que foi incorporado ao seu cotidiano. Sem boas escolas, eles têm pouca familiaridade com o português, a língua falada na cidade. É difícil se manter em Atalaia do Norte, onde se paga para comer e é necessário ter qualificação específica para conseguir emprego.

O desespero de jovens do Vale do Javari é visível nos números de suicídios. Num lugar onde a caça e a pesca são abundantes e a vida deveria correr tranquila, cinco pessoas se mataram no ano passado. É uma taxa de 142 suicídios por 100 mil habitantes, algo que não existe em parte alguma do Brasil, um índice superior ao da média nacional, de cinco mortes. A maioria dos que se mataram no Javari era jovem. Orlando Dionísio Marubo, de 16 anos, usou uma arma de fogo para se matar. Marreira Macoana Kanamari, da mesma idade, se enforcou, assim como Bete Ura Mayuruna, de 22, Carlos Abdão Kanamari, de 29, e Manoel Kanamari, de 37. Diferentemente dos guaranis de Mato Grosso do Sul, outro ponto de alto índice de suicídios, os índios do Javari têm terra demarcada e homologada.

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