Um índio comanda brancos no trabalho de proteger território de isolados
O Vale do Rio Javari, no extremo oeste do Amazonas, é considerado pelas Nações Unidas uma das últimas florestas quase intocadas do planeta. Do tamanho de Santa Catarina, a reserva indígena abriga 3,5 mil índios de cinco etnias conhecidas, fora 29 aldeias sem contato com a sociedade nacional, de línguas e costumes desconhecidos. Para escrever este caderno sobre o avanço urbano na Amazônia, era preciso tirar da memória uma viagem à região.
Estive neste canto do Brasil profundo em 2002, na última expedição comandada pelo sertanista Sydney Ferreira Possuelo, hoje com 75 anos e aposentado. A viagem de 105 dias tinha por objetivo avaliar sinais de isolados e protegê-los de caçadores e madeireiros. Em boa parte do tempo, não tínhamos comunicação com o mundo exterior. Dentro de um grupo de 35 guias ribeirinhos e índios, conheci e aprendi a diferenciar as tonalidades do verde e, principalmente, culturas distintas da floresta. A experiência rendeu um livro: Homens Invisíveis.
Mineiro de Santos Dumont, Possuelo nasceu numa família de artistas de circo. Aos 17 anos, fascinado pelas reportagens sobre os irmãos sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Boas publicadas na revista O Cruzeiro, foi para São Paulo conhecê-los. Logo estava ajudando Orlando a fazer compras e organizar expedições para o Xingu. Nos anos 1970 e 1980, Possuelo comandaria suas próprias viagens pela Amazônia. Ele faria contatos com tribos isoladas que estavam no caminho dos grandes projetos do regime militar. Em 1987, criou o Departamento de Índios Isolados. A partir daí, num contexto de Constituinte e com a participação de novas lideranças no setor, a política para as tribos sem relação com a sociedade nacional mudaria. O contato com esses povos isolados seria feito apenas em situações extremas, quando existisse risco para as próprias comunidades.
O sertanista foi nomeado presidente da Funai no governo Fernando Collor. Nesse período, demarcou a terra ianomâmi. Como presidente do Departamento de Índios Isolados, Possuelo criou a Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari com recursos de entidades internacionais. Em 2006, foi demitido após criticar o então presidente do órgão numa entrevista que me concedeu. Mércio Pereira Gomes havia sugerido, numa declaração desastrada à agência Reuters, que índio tinha muita terra.
Em novembro do ano passado, Possuelo me procurou. Uma liderança indígena queria denunciar a situação da saúde no Javari. Beto Marubo era um adolescente quando participou do trabalho de índios e indigenistas de demarcação do território no Amazonas. Num encontro em Brasília, ele afirmou que o vale que conheci há 13 anos mudou. “Esquece o que você viu lá”, avisou. “O governo não está nem aí para os índios.”
Há pouco tempo, Beto foi chamado pela Funai para chefiar a frente de proteção de comunidades isoladas. Em processo de sucateamento, o órgão não tem profissionais em número suficiente para enfrentar o desafio de comandar uma de suas áreas mais sensíveis.
“A maioria do pessoal que passou no concurso público de 2010 desistiu. Fui chamado para assumir a frente, ser responsável pelos isolados”, relatou. “A Funai precisa de ajuda. Está decadente, sem pessoal e sem orçamento.”
Beto tem uma visão crítica da história de atuação da Funai, mas avalia que a solução para atenuar os problemas da população indígena é fortalecer o órgão. O foco de Beto e do movimento indígena é exigir do governo uma Funai mais equipada e com recursos financeiros. “É preciso melhorar a Funai”, afirma.
Ele avalia o trabalho de chefia da frente. “Eu comando oito brancos concursados. Tem até engenheiro de mecatrônica e administrador. É uma briga quando tento levá-los para o mato. A floresta não é a vida deles”, ressalta. Beto diz que quem toca de fato o trabalho na base são 14 colaboradores índios, que ganham uma ajuda de R$ 800 por mês. “Quem toma conta da base de fiscalização que fica na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí, que impede a entrada de invasores, somos nós, os índios.”
Filho de uma enfermeira branca com um índio do Javari, Beto saiu da Aldeia Maronal, no Javari, aos 16 anos para aprender português em Cruzeiro do Sul, no Acre. Viveu um tempo em Curitiba. Depois, com a morte do pai, decidiu voltar. “Temos o maior número de índios isolados do mundo. Esses índios estão à míngua.”
De pai para filho. Meses depois, em outro encontro em Brasília, conheci Paulo Marubo, de 36 anos, coordenador da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Ele é outro representante da nova geração de lideranças. Paulo é filho de Vanempapa Marubo, morto há dois anos, que foi cacique da Aldeia Maronal e um dos principais nomes do movimento indígena no Alto Solimões. “Ele não foi meu pai, foi meu amigo de luta. Ele dominava o Javari, conseguia articular todas as aldeias. Quando morreu, ficamos sem base”, avalia. “Até agora, não temos uma liderança como ele. Precisamos formar novas lideranças. Ainda não conseguimos atingir o objetivo de estar mais nas aldeias, conversar com os parentes sobre saúde, educação e sustentabilidade.”
Paulo lembra que o pai tinha a preocupação com a escola dos filhos. Vanempapa trabalhou anos com madeireiros peruanos e seringueiros e tinha convicção de que os mais novos precisavam aprender o português e se formar para ganhar uma vida melhor. “Foi em busca de estudo que eu saí da minha aldeia com 14 anos”, relata Paulo. “Era uma época em que o índio marubo via como algo muito importante falar português. Hoje, isso é o básico. Meu pai dizia que a pessoa com estudo não precisava trabalhar no sol, na chuva, no corte de madeira. O mundo dos brancos exigia que o índio frequentasse a escola.”
Acertei a volta ao Javari. A viagem de 2002 tinha sido uma experiência marcante, mas muito exaustiva. Navegar pelos rios caudalosos e percorrer varadouros da floresta exigem preparo físico e mental. Também tinha receios do que reencontraria, de confrontar imagens que estavam retidas na memória com a situação atual dos índios. Afinal, as notícias sobre o sucateamento da Funai eram alarmantes. Era uma pauta de resultado de apuração previsível. Em abril, embarcamos para Tabatinga. De lá, iríamos de lancha voadeira para o Javari, umas cinco horas de subida de rio. A viagem duraria 18 dias.
De Tabatinga a Atalaia do Norte, última mancha urbana antes da entrada no Vale do Javari, são duas horas e meia de voadeira. Quando estive aqui em 2002, a cidade a 1.336 quilômetros de Manaus tinha dez mil pessoas em sua sede. Hoje são 18 mil. Esse aumento da população no centro do município pode ser explicado pela redução do número de marubos e matises que vivem dentro do território indígena. O município passou da 47.ª para a 62.ª posição, a última, no ranking estadual da qualidade de vida. A ligeira melhora de 0.348 para 0.450 no IDH foi inferior à de todos os demais municípios do Amazonas.
É na cidade que encontro Ivan Uaçá e Tapumpa Marubo, guias que serviram na expedição. Tapumpa, hoje com 35 anos, lembra que a volta da viagem de 105 dias foi comemorada na aldeia dos marubos. Ele conta que casou com Machê, uma jovem da Aldeia Rio Novo, e tem três filhos – Pui, Cai e Mamba. Vive do plantio de mandioca e banana. Sentado no meio-fio de uma rua de Atalaia do Norte, Tapumpa, que pouco fala português, demonstra preocupação com uma onda de mortes de crianças nas aldeias. “Não tem remédio lá. Diarreia, não tem remédio.” Kana Shako Marubo, filho de sua irmã Cleide, morreu em março do ano passado. “Era pequeno assim”, fala, erguendo a mão a uns 80 centímetros do chão.
Ivan Uaçá, por sua vez, conta que os matises vivem dias de angústia. Em dezembro, Ivan Xicuruta Mati, de 43 anos, e Damã Matis, de 37, dois índios da Aldeia Torowak, foram mortos a bordunadas por seis índios corubos isolados da região do Rio Branco dentro do território indígena. Damã era seu primo. Uaçá conta que os matises também enfrentam o drama da morte de crianças. “O outro Damã Matis, aquele que foi com a gente na expedição, perdeu um filho. Ele mora na Aldeia Paraíso”, relata.
Reencontraria Damã dias depois na Paraíso, num barranco à margem de um lago próximo do Rio Branco, a 15 horas de subida na voadeira. Ele me conta que o filho Binin Tsiken Matis, de 1 ano, morreu em março. “Foi diarreia”, diz.
É difícil reencontrar um colega depois de anos e ouvir dele que um filho morreu de um problema comum, uma simples diarreia. Não era um número que estava à minha frente, mas um drama envolvendo um conhecido. Nem mesmo os relatos de Damã e de outros guias matises durante a expedição sobre a morte da maioria dos adultos de sua etnia, no tempo do contato com os brancos, nos anos 1970, tinham causado uma sensação tão ruim.
O pastor catarinense Wilson Kanemberg, de 65 anos, da Assembleia de Deus, invadiu em outubro, de hidroavião, o Vale do Javari. A Polícia Federal foi acionada. Em depoimento, ele disse que tinha recebido convite dos marubos da Aldeia Boa Vista para entrar na área. Encontramos Kanemberg em Benjamim Constant, cidade que se chamava Esperança quando o escritor Mário de Andrade percorreu a região.
Kanemberg nos recebe na varanda de sua casa. Numa entrevista, o pastor diz que desenvolve há 35 anos um trabalho não apenas religioso, mas social. O principal projeto, segundo ele, é a instalação de pequenos poços artesianos nas aldeias. “Faço para os índios o que faço para os meus filhos”, afirma. “O trabalho só religioso foge à realidade do homem em si. E o social também tem de tratar um homem integral.”
Ele diz que não faz ataques à cultura dos índios. “A cultura não é coisa estática. É coisa dinâmica. Quando você isola um povo, você está fadando esse mesmo povo a acabar”, afirma. “Só se fizer um jardim zoológico você isola o homem”, completa. “Para mim, é uma inveja. Não é verdade que fiz voos rasantes nas aldeias. É mais uma questão de poder do que de realidade.”
O pastor reclama do trabalho da Funai e da legislação de demarcação de terras. “Não gosto do termo área indígena. Gostaria que fosse reserva natural”, diz. Ele se queixa especialmente da impossibilidade de se aproximar dos corubos. “O caceteiro é um povo sujo, que está fadado a acabar. Não podem tampar o sol com a peneira”, completa. Não é bem assim. Em 2002, estive na aldeia dos corubos no Ituí e encontrei lá uma tribo em boas condições sanitárias, sem sujeira nas malocas. Isso não ocorreria agora, quando os índios estão em contato mais próximo com o mundo dos brancos, de Adão e Eva.
Ele não esconde o incômodo de ser acusado de ser mais um evangélico fanático a impor um deus nas aldeias. “Você vai encontrar padre bom e padre ruim, pastor bom e pastor ruim, não é bem assim. Não gosto quando o pessoal coloca tudo no mesmo saco”, afirma. “Fico revoltado com esse endeusamento da cultura das regiões. Vejam, deixam os índios com febre amarela, sozinhos. É uma falsa moralidade. Nós temos que tomar conta, fazer as coisas. Não gosto dessa separação de povos, de pretos, de brancos, de gays, de lésbicas, de índios. Toda pessoa tem o direito diante de Deus.”
Ele reclama das proibições de entrada nas aldeias. “Gosto de fazer poços artesianos, mas sou barrado. A desculpa é que estou estudando o solo. Como estudo o solo se só abro 18 metros para fazer os poços?” O pastor não vai desistir de pregar no Javari. Ele propõe um trabalho conjunto com a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). “Não nos deixe de fora. Vamos trabalhar juntos. Não queremos nome. Queremos atuar juntos naquilo que podemos somar. Talvez eu esteja errado naquilo que estou fazendo, mas gosto de ver as pessoas como elas são, o índio como pessoa, um ser com potencial.”
Quando você deixa a casa do pastor e lembra que essa região inspirou o livro de poemas Remate de Males, de Mário de Andrade, um clássico do modernismo, passa a ter a sensação de viver num Brasil que ficou mais intolerante, religioso, careta, sem o bom humor e com um ódio indisfarçável de suas expressões culturais e de sua gente.
Embarcações da última grande expedição indigenista, de 2002, apodrecem no rio
Depois de passar um dia em Atalaia, nossa equipe segue para a base de fiscalização da Funai na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí, bem na entrada do Vale do Javari, mais uma hora e meia de lancha voadeira. De longe, avista-se o barracão de madeira que abriga a base. A cheia dos rios encobre a praia que encontrei no verão de 2002. A vegetação insubstituível, a densidade dos rios, os incômodos provocados pelos mosquitos e o som da mata dão a sensação de distância das cidades.
Os barcos usados na expedição de 2002 estão “afogados” na frente da base. Das quatro embarcações daquela viagem, apenas o Kukahã, de madeira, ainda corta os rios do Alto Solimões. O Waiká, um barco de dois camarotes no segundo piso, afundou. O Sobralzinho, um menor, também de madeira, que leva o nome de um sertanista morto a borduna pelos corubos, está quase coberto pela água. O Etno, de aço, teve o motor e os equipamentos de navegação retirados.
Na conversa que tivemos em Brasília, o diretor da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Javari, Beto Marubo, tinha nos alertado sobre a decadência da base na principal entrada da reserva indígena. O casarão de madeira, sede do posto, está de pé, mas é fácil perceber a deterioração da varanda, da casa de força, dos equipamentos de navegação. Se não é possível dizer que o governo tem intenção de despovoar as fronteiras, é fato, no entanto, que a política atual do Planalto é esvaziar o principal órgão de proteção aos índios.
O sertanista Sydney Possuelo fica revoltado ao ver a base em estado precário. A Funai não era uma maravilha no tempo do governo de Fernando Henrique Cardoso. O tucano também adotava a política de sucateamento do órgão indigenista.
Marubo explica que a base só funcionou naquele período tucano por um esforço pessoal de Possuelo, que conseguia mobilizar entidades do exterior para conseguir recursos. Era tempo de maior facilidade na obtenção de recursos, especialmente da Europa. “Agora é só Funai”, observa. Não falta dinheiro federal para os índios. A Funai, no entanto, está cada vez mais afastada do bolo. Outros setores do governo, como a Sesai, gerenciam a distribuição dos recursos.
Dos 28 técnicos indigenistas que o governo contratou por meio de concurso, em 2010, para trabalhar no Javari, restam apenas 11. O trabalho de isolamento e de condições precárias e o baixo salário levaram o pessoal a desistir. Não há cartuchos de bala no paiol de armas. Marubo defende concursos regionalizados. “Agora o governo abriu vagas para contratar funcionários de nível superior. Eles vão trabalhar em áreas de interesse do Planalto, como Belo Monte, no Xingu.”
Cerco.A corrupção dos brancos chegou antes daquilo que se chamava “civilização”, um termo que evocava a supremacia de culturas, agora em desuso qualquer que seja o sentido.
A mancha urbana, com seus pastores evangélicos, madeireiros, máfias políticas, biopiratas e empresas petrolíferas cerca as aldeias indígenas do Vale do Javari. É uma legião de corruptos e malfeitores ansiosos em avançar pelos rios em busca de recursos naturais e almas de matises, maiorunas, marubos, canamaris e corubos.
É na margem esquerda do Javari, a apenas alguns quilômetros da entrada da reserva, que um grupo de homens com motosserras e machados devasta um trecho de floresta. Eles limpam a área e constroem um barracão. O chefe do grupo, Agnaldo Paiva, diz que o terreno de sete mil hectares foi comprado por um biólogo de nome Marcos Lima, que seria um biólogo de origem judia interessado em “reflorestar” a região. O discurso causa estranheza num pedaço do Brasil ainda preservado, onde não há problemas de terras devastadas.
Paiva diz que o nome do projeto é Fazenda Sustentável Monte Sinai. A meta é ocupar a margem do Javari até o Igarapé Extrema, do outro lado. “Aqui, vamos criar orquídeas e trabalhar com espécies de peixes nativos”, diz Paiva. “Trabalho para o senhor Marcos porque tenho experiência em projetos sustentáveis”, completa. Ele afirma ter atuado em experiências do tipo em Coari e Belém. Por mais bem intencionado o projeto, Marcos Lima até aquele momento não tinha comunicado suas intenções aos órgãos públicos e ambientais de Atalaia. Na lógica dele, primeiro se desenvolve o que quer e depois se conta para as autoridades públicas.
O professor indígena Binin Scott Matis, de 25 anos, concluiu o terceiro ano do ensino médio em 2013 numa escola em Tabatinga. Depois de um curso voltado para jovens índios na Universidade Estadual do Amazonas, começou a lecionar na Aldeia Tawaya. Passa meses sem ir à cidade conferir se contribuições prometidas pela prefeitura caem na sua conta. O sonho dele é entrar na faculdade. “Meu sonho é fazer o ensino superior e voltar para ajudar as crianças da aldeia que estão perdendo a cultura”, afirma.
Ele vive um drama familiar. Binin é filho de Ivan Matis e sobrinho de Damã Matis, mortos pelos corubos isolados do Ituí, em outubro. Também é sobrinho de Tumim Tuku Matis, que sobreviveu ao ataque. Quando soube da tragédia, Binin tentou uma carona num helicóptero da Funai. Não conseguiu. Ao chegar à aldeia, no fim da manhã do dia seguinte, os enterros já tinham ocorrido. “Meu tio e meu pai eram bons caçadores e guerreiros”, diz. “Não sou bom de caça. Não sei caçar de zarabatana e flecha. Mas foi meu pai que me orientou a estudar como branco. Foi o que mais fiz.”
Binin dá apoio para a mãe e duas irmãs que moram na aldeia. “Saí de Tawaya para estudar em Tabatinga com 12 anos. Meu pai dizia: ‘Você tem de estudar. Hoje não é fácil ter trabalho lá fora. Hoje em dia a gente precisa de dinheiro. Você precisa de emprego na cidade’.”
Ele conta que aprendeu com os brancos ensinamentos importantes. Mas não realizou o desejo de passar no vestibular. “Depois que mataram meu pai e meu tio, comecei a pensar: Como vou estudar? Eu preciso trabalhar para ajudar minha mãe e minhas duas irmãs, que não têm mais meu pai. Então, não pude sair mais da aldeia e tentar novos cursos para me aperfeiçoar e conseguir passar no vestibular”, afirma. “Eu preciso de bolsa para continuar meus estudos.”
A escola de Tawaya foi uma parceria entre a aldeia e a prefeitura de Atalaia do Norte, que mandou pedreiros e marceneiros para construir as paredes. O teto de zinco foi comprado com dinheiro dos próprios índios, que tinham guardado R$ 5 mil. Binin confessa que não se sente bem na escola da aldeia. “É difícil trabalhar aqui. Como estudei em escola de branco, me acostumei com uma secretaria, uma gestora de ensino, um número maior de professores, planejamento escolar”, ressalta. Também sente falta da internet. Na cidade, gostava de interagir no Facebook (matisindio@gmail.com). Desde fevereiro não entra mais na conta que abriu no site de relacionamentos.
A migração de índios para Atalaia do Norte preocupa o professor. “Os meninos estão saindo muito das aldeias para estudar. Isso para mim não é bom. Eu acho, minha opinião. Nas cidades, muitos meninos tomam cerveja. Depois, vão usar drogas”, diz. “Sei que muitas crianças e pais de crianças da aldeia dizem por aí que os professores indígenas não são bons como os da cidade. É verdade. Mas gente de fora não vem ensinar na língua materna ou no português na escola do mato. Não temos mesmo capacidade de ensinar. Falta bolsa de estudo.”
No final de abril, os matises de Paraíso quebraram o luto pela morte dos dois matises num ataque de corubos e realizaram festejos tradicionais da etnia. Pela manhã, crianças, jovens e adultos foram surrados com varas finas de taboca, deixando marcas nas costas. Houve muito choro de pequenos e demonstração de força dos mais velhos. É um ritual para tirar “panema” – o cansaço, a preguiça, o espírito ruim do corpo.
Adolescentes que vivem entre a aldeia e a cidade, que adquiriram o costume de usar bermudas e camisetas coladas ao corpo, entraram na fila para receber varadas. Um deles suportou apenas uma lapada nas costas. Nesse momento, um adulto foi até o índio que batia e mandou dar em suas próprias costas a varada que faltou no mais novo. Choros dos pequenos e demonstrações de força dos mais velhos ocorriam em meio ao som de forró de um aparelho movido a motor ligado por um jovem.
À tarde, adultos e crianças passaram urucum no corpo e vestiram uma espécie de saia de folhas na primeira parte da festa da capivara. Com suas fantasias e um canto arrastado, percorreram o terreiro da aldeia e a maloca principal em coreografias.
O momento de maior descontração ocorreu numa poça de barro. Os índios se jogaram na lama para ficar parecidos às capivaras da beira do rio. Mulheres só acompanharam. Quando um dos fantasiados caiu, machucando o rosto, algumas delas foram ajudá-lo a se limpar e tentar estancar o sangue.
À noite, foi a vez de os maruíns – homens com o corpo coberto de palha e máscara de barro fazendo movimentos de bichos – assombrarem os menores e darem lambadas de vara. Na maloca do cacique, a comunidade se reuniu para um banquete de carne de macaco e anta e macaxeira. As mulheres prepararam caiçuma, uma bebida fermentada, numa grande panela de barro, e açaí, servido em vasilhas menores. Os brasileiros ainda brincam e se divertem na lama.
Foi após uma viagem pelo Alto Solimões, em 1927, que o poeta modernista Mário de Andrade, morto há 70 anos, encontrou a diversidade cultural, os tipos humanos e os estilos de vida que levariam o movimento modernista, lançado cinco anos antes em São Paulo, a uma nova fase, mais voltado ao “fundo do mato virgem”. O fascínio pelo céu estrelado de uma pequena vila de pescadores, Caiçara, hoje Alvarães, garantiu o desfecho de seu mais importante livro, Macunaíma, o herói que sai da aldeia atraído pelo urbano.
Na expedição pelo rio e pelos povoados amazônicos, o escritor deixaria de se preocupar em retratar o Brasil para se concentrar no esforço de uma escrita e um pensar brasileiros, observou o biógrafo Eduardo Jardim.
Ao desembarcar em Atalaia do Norte, na época chamada Remate de Males, Mário de Andrade anotou em sua caderneta que fazia um calor de “rematar”, a malária atacava os moradores e não tinha “coisa nenhuma” no comércio para comprar. Essas observações foram mais tarde publicadas no livro Turista Aprendiz.
Ele era o poeta do bom humor e da simplicidade. Remate de Males seria o título de um livro de poesias que mostraria o esforço do escritor em compreender um país contraditório e plural, como ele mesmo, poeta, etnógrafo, folclorista, pesquisador de música, romancista. “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, escrevia o poeta na abertura da obra inspirada na pequena vila na margem do Javari. A figura do regatão, os mitos indígenas, os pilantras, o sujeito sem caráter e o homem brasileiro numa interminável febre de “maleita” entrariam definitivamente em seus livros, com suas características boas e ruins.
Nessa viagem e na leitura da obra do etnógrafo alemão Koch-Grünberg sobre o mito de macunaíma de Roraima, Mário de Andrade falaria do brasileiro sem a moral e a tradição de outros povos, uma sugestão para se enxergar uma identidade nacional própria. Era algo na linha da tese de uma “terra sem história”, formulada anos antes por Euclides da Cunha, que apresentava assim o desafio de um Brasil ainda a ser escrito.
A diversidade de culturas que balançou em dois momentos a cultura brasileira é alvo hoje de seitas evangélicas e grupos políticos que tentam impor um modo de vida único para maiorunas, marubos, matises, canamaris e culinas, índios que moram nas aldeias do município. Ações das três esferas de governo têm sido um incentivo de atração de índios para o caldeirão de Atalaia do Norte. Todos os investimentos em saúde, educação e assistência social são concentrados na sede do município, o que tem provocado o êxodo rural.
Manoel Chorimpa Marubo, único índio que conseguiu se eleger vereador em Atalaia do Norte, observa que 700 estudantes índios que viviam em aldeias estão em escolas no centro da cidade. Em uma delas, são 46 alunos. “Há uma deficiência do Estado em dar assistência ao povo indígena nas aldeias”, afirma. Na última eleição, Chorimpa foi eleito pelo PRP com 145 votos.
A seita evangélica Novas Tribos construiu casas no centro de Atalaia do Norte com nomes das etnias, recriando uma espécie de aldeia em plena cidade. Ali, os índios são instalados quando chegam para tratar a saúde ou resolver outros problemas. É o momento em que entram em contato com a religião imposta pela seita. A meta do grupo evangélico é traduzir para a língua pano toda a Bíblia.
É um modelo parecido com os aldeamentos ao longo dos grandes rios do Brasil Central nos períodos da Colônia e do Império. O poder central reunia diversas etnias num só lugar para facilitar o trabalho de homens do governo, do Exército e da Igreja Católica. Esse modelo apresenta resultados dramáticos. Atalaia do Norte tem o terceiro pior IDH do País. Com média de 0.450 na escala das Nações Unidas, o município fica atrás dos índices de Uganda, Benin, Sudão, Togo, Haiti, Afeganistão e Djibuti, países da lista dos 25 piores em qualidade de vida.