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Mancha urbana chega ao javari

Na terra dos homens invisíveis

Um índio comanda brancos no trabalho de proteger território de isolados

O Vale do Rio Javari, no extremo oeste do Amazonas, é considerado pelas Nações Unidas uma das últimas florestas quase intocadas do planeta. Do tamanho de Santa Catarina, a reserva indígena abriga 3,5 mil índios de cinco etnias conhecidas, fora 29 aldeias sem contato com a sociedade nacional, de línguas e costumes desconhecidos. Para escrever este caderno sobre o avanço urbano na Amazônia, era preciso tirar da memória uma viagem à região.

Estive neste canto do Brasil profundo em 2002, na última expedição comandada pelo sertanista Sydney Ferreira Possuelo, hoje com 75 anos e aposentado. A viagem de 105 dias tinha por objetivo avaliar sinais de isolados e protegê-los de caçadores e madeireiros. Em boa parte do tempo, não tínhamos comunicação com o mundo exterior. Dentro de um grupo de 35 guias ribeirinhos e índios, conheci e aprendi a diferenciar as tonalidades do verde e, principalmente, culturas distintas da floresta. A experiência rendeu um livro: Homens Invisíveis.

Mineiro de Santos Dumont, Possuelo nasceu numa família de artistas de circo. Aos 17 anos, fascinado pelas reportagens sobre os irmãos sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Boas publicadas na revista O Cruzeiro, foi para São Paulo conhecê-los. Logo estava ajudando Orlando a fazer compras e organizar expedições para o Xingu. Nos anos 1970 e 1980, Possuelo comandaria suas próprias viagens pela Amazônia. Ele faria contatos com tribos isoladas que estavam no caminho dos grandes projetos do regime militar. Em 1987, criou o Departamento de Índios Isolados. A partir daí, num contexto de Constituinte e com a participação de novas lideranças no setor, a política para as tribos sem relação com a sociedade nacional mudaria. O contato com esses povos isolados seria feito apenas em situações extremas, quando existisse risco para as próprias comunidades.

Municípios de Tabatinga, Benjamin Constant e Esperança

O sertanista foi nomeado presidente da Funai no governo Fernando Collor. Nesse período, demarcou a terra ianomâmi. Como presidente do Departamento de Índios Isolados, Possuelo criou a Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari com recursos de entidades internacionais. Em 2006, foi demitido após criticar o então presidente do órgão numa entrevista que me concedeu. Mércio Pereira Gomes havia sugerido, numa declaração desastrada à agência Reuters, que índio tinha muita terra.

Em tempo de cheia, instalações da base da Frente Etno-Ambiental do Vale do Javari, Amazonas, na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí, são quase encobertas pelas águas. Dida Sampaio/AE.
O sertanista Sydney Possuelo e um índio matis, na Aldeia Paraíso, no Rio Branco. Dida Sampaio/AE.

Em novembro do ano passado, Possuelo me procurou. Uma liderança indígena queria denunciar a situação da saúde no Javari. Beto Marubo era um adolescente quando participou do trabalho de índios e indigenistas de demarcação do território no Amazonas. Num encontro em Brasília, ele afirmou que o vale que conheci há 13 anos mudou. “Esquece o que você viu lá”, avisou. “O governo não está nem aí para os índios.”

Há pouco tempo, Beto foi chamado pela Funai para chefiar a frente de proteção de comunidades isoladas. Em processo de sucateamento, o órgão não tem profissionais em número suficiente para enfrentar o desafio de comandar uma de suas áreas mais sensíveis.

“A maioria do pessoal que passou no concurso público de 2010 desistiu. Fui chamado para assumir a frente, ser responsável pelos isolados”, relatou. “A Funai precisa de ajuda. Está decadente, sem pessoal e sem orçamento.”

Beto tem uma visão crítica da história de atuação da Funai, mas avalia que a solução para atenuar os problemas da população indígena é fortalecer o órgão. O foco de Beto e do movimento indígena é exigir do governo uma Funai mais equipada e com recursos financeiros. “É preciso melhorar a Funai”, afirma.

Ele avalia o trabalho de chefia da frente. “Eu comando oito brancos concursados. Tem até engenheiro de mecatrônica e administrador. É uma briga quando tento levá-los para o mato. A floresta não é a vida deles”, ressalta. Beto diz que quem toca de fato o trabalho na base são 14 colaboradores índios, que ganham uma ajuda de R$ 800 por mês. “Quem toma conta da base de fiscalização que fica na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí, que impede a entrada de invasores, somos nós, os índios.”

Filho de uma enfermeira branca com um índio do Javari, Beto saiu da Aldeia Maronal, no Javari, aos 16 anos para aprender português em Cruzeiro do Sul, no Acre. Viveu um tempo em Curitiba. Depois, com a morte do pai, decidiu voltar. “Temos o maior número de índios isolados do mundo. Esses índios estão à míngua.”

De pai para filho. Meses depois, em outro encontro em Brasília, conheci Paulo Marubo, de 36 anos, coordenador da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. Ele é outro representante da nova geração de lideranças. Paulo é filho de Vanempapa Marubo, morto há dois anos, que foi cacique da Aldeia Maronal e um dos principais nomes do movimento indígena no Alto Solimões. “Ele não foi meu pai, foi meu amigo de luta. Ele dominava o Javari, conseguia articular todas as aldeias. Quando morreu, ficamos sem base”, avalia. “Até agora, não temos uma liderança como ele. Precisamos formar novas lideranças. Ainda não conseguimos atingir o objetivo de estar mais nas aldeias, conversar com os parentes sobre saúde, educação e sustentabilidade.”

Paulo lembra que o pai tinha a preocupação com a escola dos filhos. Vanempapa trabalhou anos com madeireiros peruanos e seringueiros e tinha convicção de que os mais novos precisavam aprender o português e se formar para ganhar uma vida melhor. “Foi em busca de estudo que eu saí da minha aldeia com 14 anos”, relata Paulo. “Era uma época em que o índio marubo via como algo muito importante falar português. Hoje, isso é o básico. Meu pai dizia que a pessoa com estudo não precisava trabalhar no sol, na chuva, no corte de madeira. O mundo dos brancos exigia que o índio frequentasse a escola.”

Acertei a volta ao Javari. A viagem de 2002 tinha sido uma experiência marcante, mas muito exaustiva. Navegar pelos rios caudalosos e percorrer varadouros da floresta exigem preparo físico e mental. Também tinha receios do que reencontraria, de confrontar imagens que estavam retidas na memória com a situação atual dos índios. Afinal, as notícias sobre o sucateamento da Funai eram alarmantes. Era uma pauta de resultado de apuração previsível. Em abril, embarcamos para Tabatinga. De lá, iríamos de lancha voadeira para o Javari, umas cinco horas de subida de rio. A viagem duraria 18 dias.

Dida Sampaio/AE.

Atalaia do Norte despenca no ranking da qualidade de vida

De Tabatinga a Atalaia do Norte, última mancha urbana antes da entrada no Vale do Javari, são duas horas e meia de voadeira. Quando estive aqui em 2002, a cidade a 1.336 quilômetros de Manaus tinha dez mil pessoas em sua sede. Hoje são 18 mil. Esse aumento da população no centro do município pode ser explicado pela redução do número de marubos e matises que vivem dentro do território indígena. O município passou da 47.ª para a 62.ª posição, a última, no ranking estadual da qualidade de vida. A ligeira melhora de 0.348 para 0.450 no IDH foi inferior à de todos os demais municípios do Amazonas.

É na cidade que encontro Ivan Uaçá e Tapumpa Marubo, guias que serviram na expedição. Tapumpa, hoje com 35 anos, lembra que a volta da viagem de 105 dias foi comemorada na aldeia dos marubos. Ele conta que casou com Machê, uma jovem da Aldeia Rio Novo, e tem três filhos – Pui, Cai e Mamba. Vive do plantio de mandioca e banana. Sentado no meio-fio de uma rua de Atalaia do Norte, Tapumpa, que pouco fala português, demonstra preocupação com uma onda de mortes de crianças nas aldeias. “Não tem remédio lá. Diarreia, não tem remédio.” Kana Shako Marubo, filho de sua irmã Cleide, morreu em março do ano passado. “Era pequeno assim”, fala, erguendo a mão a uns 80 centímetros do chão.

Ivan Uaçá, por sua vez, conta que os matises vivem dias de angústia. Em dezembro, Ivan Xicuruta Mati, de 43 anos, e Damã Matis, de 37, dois índios da Aldeia Torowak, foram mortos a bordunadas por seis índios corubos isolados da região do Rio Branco dentro do território indígena. Damã era seu primo. Uaçá conta que os matises também enfrentam o drama da morte de crianças. “O outro Damã Matis, aquele que foi com a gente na expedição, perdeu um filho. Ele mora na Aldeia Paraíso”, relata.

Reencontraria Damã dias depois na Paraíso, num barranco à margem de um lago próximo do Rio Branco, a 15 horas de subida na voadeira. Ele me conta que o filho Binin Tsiken Matis, de 1 ano, morreu em março. “Foi diarreia”, diz.

Damã Matis perdeu o filho de 1 ano em março. Dida Sampaio/AE.

É difícil reencontrar um colega depois de anos e ouvir dele que um filho morreu de um problema comum, uma simples diarreia. Não era um número que estava à minha frente, mas um drama envolvendo um conhecido. Nem mesmo os relatos de Damã e de outros guias matises durante a expedição sobre a morte da maioria dos adultos de sua etnia, no tempo do contato com os brancos, nos anos 1970, tinham causado uma sensação tão ruim.

O invasor vem pelo céu

O pastor catarinense Wilson Kanemberg, de 65 anos, da Assembleia de Deus, invadiu em outubro, de hidroavião, o Vale do Javari. A Polícia Federal foi acionada. Em depoimento, ele disse que tinha recebido convite dos marubos da Aldeia Boa Vista para entrar na área. Encontramos Kanemberg em Benjamim Constant, cidade que se chamava Esperança quando o escritor Mário de Andrade percorreu a região.

Kanemberg nos recebe na varanda de sua casa. Numa entrevista, o pastor diz que desenvolve há 35 anos um trabalho não apenas religioso, mas social. O principal projeto, segundo ele, é a instalação de pequenos poços artesianos nas aldeias. “Faço para os índios o que faço para os meus filhos”, afirma. “O trabalho só religioso foge à realidade do homem em si. E o social também tem de tratar um homem integral.”

Ele diz que não faz ataques à cultura dos índios. “A cultura não é coisa estática. É coisa dinâmica. Quando você isola um povo, você está fadando esse mesmo povo a acabar”, afirma. “Só se fizer um jardim zoológico você isola o homem”, completa. “Para mim, é uma inveja. Não é verdade que fiz voos rasantes nas aldeias. É mais uma questão de poder do que de realidade.”

O pastor catarinense Wilson Kanemberg, na varanda de sua casa. Dida Sampaio/AE.

O pastor reclama do trabalho da Funai e da legislação de demarcação de terras. “Não gosto do termo área indígena. Gostaria que fosse reserva natural”, diz. Ele se queixa especialmente da impossibilidade de se aproximar dos corubos. “O caceteiro é um povo sujo, que está fadado a acabar. Não podem tampar o sol com a peneira”, completa. Não é bem assim. Em 2002, estive na aldeia dos corubos no Ituí e encontrei lá uma tribo em boas condições sanitárias, sem sujeira nas malocas. Isso não ocorreria agora, quando os índios estão em contato mais próximo com o mundo dos brancos, de Adão e Eva.

Ele não esconde o incômodo de ser acusado de ser mais um evangélico fanático a impor um deus nas aldeias. “Você vai encontrar padre bom e padre ruim, pastor bom e pastor ruim, não é bem assim. Não gosto quando o pessoal coloca tudo no mesmo saco”, afirma. “Fico revoltado com esse endeusamento da cultura das regiões. Vejam, deixam os índios com febre amarela, sozinhos. É uma falsa moralidade. Nós temos que tomar conta, fazer as coisas. Não gosto dessa separação de povos, de pretos, de brancos, de gays, de lésbicas, de índios. Toda pessoa tem o direito diante de Deus.”

Ele reclama das proibições de entrada nas aldeias. “Gosto de fazer poços artesianos, mas sou barrado. A desculpa é que estou estudando o solo. Como estudo o solo se só abro 18 metros para fazer os poços?” O pastor não vai desistir de pregar no Javari. Ele propõe um trabalho conjunto com a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). “Não nos deixe de fora. Vamos trabalhar juntos. Não queremos nome. Queremos atuar juntos naquilo que podemos somar. Talvez eu esteja errado naquilo que estou fazendo, mas gosto de ver as pessoas como elas são, o índio como pessoa, um ser com potencial.”

Quando você deixa a casa do pastor e lembra que essa região inspirou o livro de poemas Remate de Males, de Mário de Andrade, um clássico do modernismo, passa a ter a sensação de viver num Brasil que ficou mais intolerante, religioso, careta, sem o bom humor e com um ódio indisfarçável de suas expressões culturais e de sua gente.

Um cemitério de barcos entre os rios Ituí e Itaquaí

Embarcações da última grande expedição indigenista, de 2002, apodrecem no rio

Depois de passar um dia em Atalaia, nossa equipe segue para a base de fiscalização da Funai na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí, bem na entrada do Vale do Javari, mais uma hora e meia de lancha voadeira. De longe, avista-se o barracão de madeira que abriga a base. A cheia dos rios encobre a praia que encontrei no verão de 2002. A vegetação insubstituível, a densidade dos rios, os incômodos provocados pelos mosquitos e o som da mata dão a sensação de distância das cidades.

Os barcos usados na expedição de 2002 estão “afogados” na frente da base. Das quatro embarcações daquela viagem, apenas o Kukahã, de madeira, ainda corta os rios do Alto Solimões. O Waiká, um barco de dois camarotes no segundo piso, afundou. O Sobralzinho, um menor, também de madeira, que leva o nome de um sertanista morto a borduna pelos corubos, está quase coberto pela água. O Etno, de aço, teve o motor e os equipamentos de navegação retirados.

Barco Sobralzinho, usado no passado em expedições indigenistas, está abandonado na confluência dos Rios Ituí e Itaquaí. Dida Sampaio/AE.

Na conversa que tivemos em Brasília, o diretor da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Javari, Beto Marubo, tinha nos alertado sobre a decadência da base na principal entrada da reserva indígena. O casarão de madeira, sede do posto, está de pé, mas é fácil perceber a deterioração da varanda, da casa de força, dos equipamentos de navegação. Se não é possível dizer que o governo tem intenção de despovoar as fronteiras, é fato, no entanto, que a política atual do Planalto é esvaziar o principal órgão de proteção aos índios.

O sertanista Sydney Possuelo fica revoltado ao ver a base em estado precário. A Funai não era uma maravilha no tempo do governo de Fernando Henrique Cardoso. O tucano também adotava a política de sucateamento do órgão indigenista.

Marubo explica que a base só funcionou naquele período tucano por um esforço pessoal de Possuelo, que conseguia mobilizar entidades do exterior para conseguir recursos. Era tempo de maior facilidade na obtenção de recursos, especialmente da Europa. “Agora é só Funai”, observa. Não falta dinheiro federal para os índios. A Funai, no entanto, está cada vez mais afastada do bolo. Outros setores do governo, como a Sesai, gerenciam a distribuição dos recursos.

Dos 28 técnicos indigenistas que o governo contratou por meio de concurso, em 2010, para trabalhar no Javari, restam apenas 11. O trabalho de isolamento e de condições precárias e o baixo salário levaram o pessoal a desistir. Não há cartuchos de bala no paiol de armas. Marubo defende concursos regionalizados. “Agora o governo abriu vagas para contratar funcionários de nível superior. Eles vão trabalhar em áreas de interesse do Planalto, como Belo Monte, no Xingu.”

Cerco.A corrupção dos brancos chegou antes daquilo que se chamava “civilização”, um termo que evocava a supremacia de culturas, agora em desuso qualquer que seja o sentido.

A mancha urbana, com seus pastores evangélicos, madeireiros, máfias políticas, biopiratas e empresas petrolíferas cerca as aldeias indígenas do Vale do Javari. É uma legião de corruptos e malfeitores ansiosos em avançar pelos rios em busca de recursos naturais e almas de matises, maiorunas, marubos, canamaris e corubos.

É na margem esquerda do Javari, a apenas alguns quilômetros da entrada da reserva, que um grupo de homens com motosserras e machados devasta um trecho de floresta. Eles limpam a área e constroem um barracão. O chefe do grupo, Agnaldo Paiva, diz que o terreno de sete mil hectares foi comprado por um biólogo de nome Marcos Lima, que seria um biólogo de origem judia interessado em “reflorestar” a região. O discurso causa estranheza num pedaço do Brasil ainda preservado, onde não há problemas de terras devastadas.

Paiva diz que o nome do projeto é Fazenda Sustentável Monte Sinai. A meta é ocupar a margem do Javari até o Igarapé Extrema, do outro lado. “Aqui, vamos criar orquídeas e trabalhar com espécies de peixes nativos”, diz Paiva. “Trabalho para o senhor Marcos porque tenho experiência em projetos sustentáveis”, completa. Ele afirma ter atuado em experiências do tipo em Coari e Belém. Por mais bem intencionado o projeto, Marcos Lima até aquele momento não tinha comunicado suas intenções aos órgãos públicos e ambientais de Atalaia. Na lógica dele, primeiro se desenvolve o que quer e depois se conta para as autoridades públicas.

‘Gente de fora não ensina no mato’

O professor indígena Binin Scott Matis, de 25 anos, concluiu o terceiro ano do ensino médio em 2013 numa escola em Tabatinga. Depois de um curso voltado para jovens índios na Universidade Estadual do Amazonas, começou a lecionar na Aldeia Tawaya. Passa meses sem ir à cidade conferir se contribuições prometidas pela prefeitura caem na sua conta. O sonho dele é entrar na faculdade. “Meu sonho é fazer o ensino superior e voltar para ajudar as crianças da aldeia que estão perdendo a cultura”, afirma.

Ele vive um drama familiar. Binin é filho de Ivan Matis e sobrinho de Damã Matis, mortos pelos corubos isolados do Ituí, em outubro. Também é sobrinho de Tumim Tuku Matis, que sobreviveu ao ataque. Quando soube da tragédia, Binin tentou uma carona num helicóptero da Funai. Não conseguiu. Ao chegar à aldeia, no fim da manhã do dia seguinte, os enterros já tinham ocorrido. “Meu tio e meu pai eram bons caçadores e guerreiros”, diz. “Não sou bom de caça. Não sei caçar de zarabatana e flecha. Mas foi meu pai que me orientou a estudar como branco. Foi o que mais fiz.”

Binin dá apoio para a mãe e duas irmãs que moram na aldeia. “Saí de Tawaya para estudar em Tabatinga com 12 anos. Meu pai dizia: ‘Você tem de estudar. Hoje não é fácil ter trabalho lá fora. Hoje em dia a gente precisa de dinheiro. Você precisa de emprego na cidade’.”

Professores e estudantes da escola indígena da Aldeia Tawaya, no Vale do Javari, Amazonas. Dida Sampaio/AE.

Ele conta que aprendeu com os brancos ensinamentos importantes. Mas não realizou o desejo de passar no vestibular. “Depois que mataram meu pai e meu tio, comecei a pensar: Como vou estudar? Eu preciso trabalhar para ajudar minha mãe e minhas duas irmãs, que não têm mais meu pai. Então, não pude sair mais da aldeia e tentar novos cursos para me aperfeiçoar e conseguir passar no vestibular”, afirma. “Eu preciso de bolsa para continuar meus estudos.”

A escola de Tawaya foi uma parceria entre a aldeia e a prefeitura de Atalaia do Norte, que mandou pedreiros e marceneiros para construir as paredes. O teto de zinco foi comprado com dinheiro dos próprios índios, que tinham guardado R$ 5 mil. Binin confessa que não se sente bem na escola da aldeia. “É difícil trabalhar aqui. Como estudei em escola de branco, me acostumei com uma secretaria, uma gestora de ensino, um número maior de professores, planejamento escolar”, ressalta. Também sente falta da internet. Na cidade, gostava de interagir no Facebook (matisindio@gmail.com). Desde fevereiro não entra mais na conta que abriu no site de relacionamentos.

A migração de índios para Atalaia do Norte preocupa o professor. “Os meninos estão saindo muito das aldeias para estudar. Isso para mim não é bom. Eu acho, minha opinião. Nas cidades, muitos meninos tomam cerveja. Depois, vão usar drogas”, diz. “Sei que muitas crianças e pais de crianças da aldeia dizem por aí que os professores indígenas não são bons como os da cidade. É verdade. Mas gente de fora não vem ensinar na língua materna ou no português na escola do mato. Não temos mesmo capacidade de ensinar. Falta bolsa de estudo.”

Festa no barro

No final de abril, os matises de Paraíso quebraram o luto pela morte dos dois matises num ataque de corubos e realizaram festejos tradicionais da etnia. Pela manhã, crianças, jovens e adultos foram surrados com varas finas de taboca, deixando marcas nas costas. Houve muito choro de pequenos e demonstração de força dos mais velhos. É um ritual para tirar “panema” – o cansaço, a preguiça, o espírito ruim do corpo.

Em dias de festa, índios matises fazem o ritual de acabar com a “panema” (preguiça) e espantar os maus espíritos. Eles dão varadas nas costas, nos braços e nas pernas de crianças e adultos. Esta foto foi tirada na Aldeia Paraíso. Dida Sampaio/AE.

Adolescentes que vivem entre a aldeia e a cidade, que adquiriram o costume de usar bermudas e camisetas coladas ao corpo, entraram na fila para receber varadas. Um deles suportou apenas uma lapada nas costas. Nesse momento, um adulto foi até o índio que batia e mandou dar em suas próprias costas a varada que faltou no mais novo. Choros dos pequenos e demonstrações de força dos mais velhos ocorriam em meio ao som de forró de um aparelho movido a motor ligado por um jovem.

À tarde, adultos e crianças passaram urucum no corpo e vestiram uma espécie de saia de folhas na primeira parte da festa da capivara. Com suas fantasias e um canto arrastado, percorreram o terreiro da aldeia e a maloca principal em coreografias.

O momento de maior descontração ocorreu numa poça de barro. Os índios se jogaram na lama para ficar parecidos às capivaras da beira do rio. Mulheres só acompanharam. Quando um dos fantasiados caiu, machucando o rosto, algumas delas foram ajudá-lo a se limpar e tentar estancar o sangue.

À noite, foi a vez de os maruíns – homens com o corpo coberto de palha e máscara de barro fazendo movimentos de bichos – assombrarem os menores e darem lambadas de vara. Na maloca do cacique, a comunidade se reuniu para um banquete de carne de macaco e anta e macaxeira. As mulheres prepararam caiçuma, uma bebida fermentada, numa grande panela de barro, e açaí, servido em vasilhas menores. Os brasileiros ainda brincam e se divertem na lama.

Índio matis se veste de "maruim", o espiríto da floresta. Dida Sampaio/AE.
"Maruim", o espiríto da floresta, assombra crianças no Vale do Javari. Dida Sampaio/AE.

Mais uma vez, homens ‘felinos’ enfrentam o êxodo e a morte

Na disputa interna por território, matises são atacados por índios isolados

A viagem da base da Funai na confluência dos Rios Itaquaí e Ituí até as aldeias dos matises no Branco vai durar 15 horas ininterruptas de lancha voadeira, que navega a cerca de 30 quilômetros por hora. Saímos de madrugada, com o céu limpo. Sem cobertura na embarcação, o sol intenso castiga. Quando, no estirão, o tempo fecha, precisamos tirar a lona para enfrentar chuvas e trovoadas. As praias dos rios e igarapés, que conheci em 2002, estão submersas. A cheia encobre trechos longos da mata, formando uma floresta de árvores com as copas quase nas águas.

Os homens “felinos” do Vale do Javari, como os matises são conhecidos, foram contatados em 1976 pelo sertanista Pedro Coelho, nas margens do Rio Ituí. Era tempo de pesquisas de exploração de petróleo, bombas lançadas de avião e ataques por terra de madeireiros e caçadores. O contato foi sucedido por uma epidemia de febre. Quase todos os adultos morreram. A aldeia se tornou uma comunidade de crianças e jovens que não tinham completado ensinamentos milenares. Pajés e caciques estavam mortos.

Com a morte da maioria dos adultos no pós-contato, a jovem população matis não tinha muitos mestres para lhe repassar sabedorias e costumes da tribo. Na década de 1980, antropólogos e indigenistas mostraram aos jovens índios fotos de roqueiros das cidades, com seus piercings e tatuagens. Era uma forma de incentivar o uso de adornos de caracóis e espinhos, fincados na carne do rosto, do nariz e das orelhas, um costume da tribo. A tradição visual dos “homens felinos” estava mantida.

O boom do rock ficou para trás. Hoje, a luta dos jovens que sobreviveram às epidemias dos anos 1970 e 1980, agora nas funções de caciques e pajés, é evitar o despovoamento do território milenar, demarcado após um longo período de óbitos por doenças das cidades e assassinatos cometidos por madeireiros, caçadores e pescadores que entravam na área indígena sem permissão. O território está garantido por lei, mas as duas comunidades matises, de Tawaya e Paraíso, não conseguem deter o avanço da migração dos mais novos para Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga.

Em 2002, os matises ainda viviam às margens do Ituí. Estranhei que agora estivessem no Rio Branco, uma área de índios isolados. Soube que os matises deixaram suas aldeias porque a caça e a pesca rarearam e as doenças tornaram-se comuns. Há cerca de três anos, eles estabeleceram as Aldeias Paraíso e Tawaya, nas margens do Branco. Tepi, pajé das comunidades, jovem que conheci como guia na expedição de 13 anos atrás, avaliou depois de uma visão que era momento de os matises migrarem para outra terra dentro da reserva indígena do Javari.

Foi uma espécie de volta ao umbigo. Há 50 anos, seus antepassados moravam no Branco. As terras banhadas por esse rio têm caça em abundância. A cerca de 40 quilômetros dali, no entanto, estão aldeias de corubos isolados. Os matises, que falam uma língua do tronco pano, o mesmo dos corubos, minimizaram eventuais hostilidades dos novos vizinhos. Afinal, lembravam os mais velhos, os corubos e os matises tinham, no passado, relações cordiais, antes da migração para o Ituí.

O professor Makê Matis, da Aldeia Tawaya, na margem do Rio Branco, no Vale do Javari, Amazonas, exibe o crânio de um macaco. Makê cobra do governo capacitação de professores e melhoria das escolas indígenas. Dida Sampaio/AE.

Mortes. Os matises abriram clareiras em elevações próximas ao Branco e lá fizeram as Aldeias Paraíso, Tawaya e Torowak. A mudança garantiria a alimentação dos matises, mas traria também mortes e insegurança. Em 5 de outubro, um grupo de seis corubos matou Ivan e Damã Matis, da Torowak, numa roça a alguns quilômetros de Tawaya, e ainda feriram Tumin Tuku. Os matises plantavam mandioca na roça quando foram surpreendidos pelos isolados. Numa rápida conversa, os isolados disseram que aquela era terra deles. Em seguida, tomaram a espingarda que Tumin usava e esfacelaram os crânios de Ivan e Damã a golpes de borduna.

Um grupo de guerreiros matises chegou a preparar as armas para uma vingança. Eles teriam desistido. Avisaram à Funai, porém, que não vão permitir que corubos entrem em suas aldeias. Os matises pressionam o órgão indigenista a fazer contato com os isolados para evitar novas mortes. Um contato seria algo complexo, pois há dezenas de corubos em aldeias a cerca de 40 quilômetros de Paraíso e Tawaya.

Nossa equipe passa dois dias na Aldeia Tawaya. Nos alojamos na maloca de Kuinin Matis, que participou da expedição de 2002. Chama a atenção um fogão comprado no comércio e um botijão de gás num canto da casa, tampado pela poeira, sem uso. Pode parecer mais prático usar esse tipo de fogão, mas é inviável economicamente transportar o botijão da cidade até aqui.

Kuinin Matis encena usar zarabatana, instrumento de sopro tradicional na caçada de macacos e pássaros. Dida Sampaio/AE.

Estadia. O banho é num igarapé atrás de uma pequena roça de bananas. Um banheiro com uma fossa foi construído a menos de dez metros das águas que crianças e adultos usam para se lavar. A instalação do banheiro logo ali foi feita por agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão responsável pela saúde dos índios e prevenção de doenças.

A Aldeia Tawaya vive dias de alerta e aflição. Na noite de 21 de abril, a base da Funai foi informada de que os matises encontraram vestígios de corubos perto das roças. Na manhã do dia seguinte, Bernardo, um indigenista, passou por rádio, da Aldeia Paraíso, também dos matises, que novos sinais de isolados haviam sido achados. “O pessoal está aflito. Encontraram tapagem próxima à roça do Binan”, disse. A tapagem – galho deixado no meio de uma trilha ou varadouro – é uma mensagem de território proibido.

Memória de um sobrevivente da tragédia do Ituí

É com dificuldade que o único sobrevivente do ataque dos corubos dá um depoimento. Tumim Tuku Matis, que hoje mora na Aldeia Tawaya, estava com o irmão Damã e o cunhado Ivan, casado com sua irmã Tupã, quando os isolados apareceram na roça de milho e macaxeira que cultivavam perto dos Rios Ituí e Coari.

“Eu tava com meu irmão e meu cunhado. Nós trabalha, planta milho. De manhã, conversa com meu irmão. Vamos trabalhar. Espera um pouco. Toma café. Eu foi para a roça. Parente corubo pegou paneiro que a gente usava para guardar o milho. Meu irmão falou: ‘Ei, Tumim, você pegou paneiro?’ ‘Eu não, Damã.’ ‘Então cadê paneiro?’ ‘Tá no tapirizinho’, disse pra ele. Quando eu cheguei lá, não tinha paneiro. ‘Parente corubo pegou paneiro’, meu cunhado falou. Nós trabalha. Apareceu parente corubo, cercou nós. Seis. Eu queria conversar, mostrar que é assim que nós trabalha, planta macaxeira e milho. Minha mão tem espingarda. Tá segurando. Corubo falou um pouco: ‘Quem fez roça?’ Expliquei um pouco: ‘Nós planta nosso milho, nossa macaxeira, nossa comida’. Eu falei: ‘Fica lá na sua aldeia, não volta’. Aí, no meu lado, parente corubo puxou minha espingarda. E corubo me empurrou. Ele pegou espingarda e fincou no barro. Mais longe, os outros matis. Eu disse: ‘Vamos correr’. E começou. Atacaram nós. Assim, eu corri. Damã também correu. Ele por trás, pegou caceta. Eu não vi, não. Só grita eu escutei. Vi Damã cair. Ivan não vi correr. Parente da caceta grita. Tinha pintado urucum no corpo, pintado cabelo. Eu corri primeiro, muito. Quando atravessei água do Rio Coari, aí cheguei lá na aldeia. Damã e Ivan. Matou parente! Falei com mulher deles. Não vêm mais. Aí voltei de novo com meu primo. Eu chamei. Não grita mais. Acho que mataram. Aí meu irmão não volta. Eu fui lá e vi espingarda fincada no chão, junto com meu irmão. Ficou a arma dele com ele. Não levaram, não. Só eu e Damã tinha arma. Assim que aconteceu com meu irmão, assim que aconteceu com meu cunhado.”

‘Amansa que fica bom’, diz ex-cacique

Na Aldeia Paraíso, no Rio Branco, o sertanista Sydney Possuelo conversa com índios que trabalharam na demarcação do território do Vale do Javari nos anos 1990. O diálogo ocorre na maloca do cacique Binan Matis. “Me disseram que tem matis ajudando pescador a entrar aqui. Isso não é bom. Os mais velhos têm que conversar com o pessoal novo. Cabeça tem que pensar direito. Vocês ajudaram a gente a segurar isso aqui, muita luta e morte. Agora, matis não pode ajudar quem vem roubar as coisas”, afirma o sertanista. “Branco nunca gostou de índio.”

Logo depois, diante da queixa dos matises sobre a ausência da Funai na área, ele pede um esforço da comunidade para compensar a falta de atenção do governo. Binin, Mantê e Chapu, três jovens da comunidade, traduzem do português para o matis e do matis para o português as intervenções durante o diálogo, que vai durar 2 horas e 44 minutos.

Lideranças matises da Aldeia Paraíso, no Vale do Javari, Amazonas. Dida Sampaio/AE.

Possuelo reconhece que a tribo precisa encontrar formas de conter o êxodo. “Há 40 anos, o matis aprendeu muita coisa. Aprendeu a ler, aprendeu coisas boas. O mais difícil agora é o caminho econômico. Só vocês podem decidir. Mas saibam que, a cada coisa de branco que entra aqui, matis se torna mais branco. Vocês vão decidir se seguem os brancos, se pegam apenas um pouquinho das coisas dos brancos, se casam com as brancas das cidades.”

O sertanista parece dar um soco no próprio estômago ao reforçar a ideia de que o branco, de forma geral, não gosta de índio. “Todo mundo sabe disso, não é novidade. Não falo isso para vocês brigarem com brancos, mas para pensarem em defender seus próprios interesses.” Ele volta a falar do avanço da urbanização. “É um problema que vem chegando devagar. Eu sei que os mais novos querem viver na cidade, dançar. Mas não pode esquecer isso aqui. É o útero onde o mundo botou vocês.”

O ex-cacique Ivan Matis pergunta se Possuelo concorda que é preciso “amansar" os corubos que mataram os dois matises em setembro. “A gente vai ter mais problema se não amansar. Maya está mansa, não dá mais problema. Maya fica lá. Nós contente. Ela contente. Nada acontece. Xixu foi amansado e agora ficou bom”, observa, referindo-se ao grupo de corubos que foi contatado pela Funai na margem do Rio Ituí em 1996. “Amansa que fica bom.”

Pela tradução, o índio Pixi Ixma, liderança do conselho da tribo, reclama das condições precárias da Funai no Javari. “A base está caindo. O barco afundou. Oficina afundou. Arma que índio usava sumiu. A gente dirigia motor. Branco da Funai agora não deixa mais. Depois que Sydney foi embora, só teve concurso. Piorou. Essa gente não gosta de índio. Diz assim: ‘Não mexe no nosso motor’. Cadê as armas do tempo do Sydney? Funai sumiu com tudo.”

Possuelo relembra o episódio de sua demissão para ressaltar que não queria deixar o trabalho de assistência aos índios. Ele pinta um quadro desolador. “Penso que mais um pouco e acaba a Funai. O governo tirou o dinheiro da Funai, um dinheiro que não é dele. Todo homem branco pega um pouquinho do seu dinheiro no mês e dá para o governo, que deveria dar saúde e educação para branco e para índio. Um dia vocês vão entender isso. Por mim, eu ficaria aqui para sempre. Não entendo por que vocês não podem pilotar barco a motor. Na minha cabeça, a base era uma escola para os índios. Tem que arrumar arma para o índio, porque branco vem armado para cá.”

Ao longo da conversa, Possuelo parece ter momentos em que mergulha na sua própria história e dialoga com ele mesmo. Relembra o período do governo Fernando Collor, quando mais se demarcou terra indígena no País. “Branco não gosta dele. Mas para índio ele foi um pouquinho bom”, avalia, numa imersão que o afasta de certa forma dos índios em sua volta, que querem ouvir soluções para questões mais urgentes e atuais.

Possuelo reclama dos tradutores. Acha que os jovens estão encurtando demais o que os velhos dizem. O índio Pixi Ixma reclama dos funcionários da Funai no Javari. Possuelo diz que a culpa é de Brasília. “Eles não podem fazer muita coisa. O governo dos brancos é feito para os brancos. Funai não é dos índios. Funai é do governo”, afirma. “Vou levar as reclamações de vocês para o presidente da Funai. Mas ele não pode fazer muita coisa. Quem pode ajudar é o Congresso Nacional. A Dilma pode ajudar muito. Mas a cabeça deles não está nisso, não. Eles estão com outros problemas, problemas deles.”

As palavras de Possuelo causam certo clima de tensão. Uma antropóloga que passa um período de estudos na aldeia vai até o índio Ivan Matis e conversa algo ao pé do ouvido dele. Depois, Ivan pede a palavra para rebater a afirmação de Possuelo de que o governo não era de índios. “Nós votamos também. O presidente, o senador, o governador. Nós votamos. Agora, índio está sofrendo. Tô triste com o que você disse”, afirmou Ivan.

Possuelo tinha dito palavras duras. Por mais que sugerissem divergência, as palavras dele e do ex-cacique, no entanto, expressavam o mesmo entendimento sobre a atuação do poder público na vida das aldeias. Eles usaram palavras diferentes para ressaltar que o governo estava ausente. Aqui, na maior maloca de Paraíso, contradições e impasses brasileiros estão em evidência. Jovens profissionais enxergam paternalismo na visão do sertanista e avaliam que é preciso entender o índio como dono da sua história. Por sua vez, o sertanista considera que as teses acadêmicas não resolvem problemas dramáticos e imediatos nas aldeias e os mais novos deveriam enfrentar politicamente o Planalto.

O ex-cacique volta a falar. “Estou muito triste. Você disse que a coisa vai piorar mais. Estou muito triste. Ninguém fiscaliza terra de índio. Madeireiro entra aqui, mas base não tá boa para proibir branco”, disse. Possuelo responde com mais críticas que raspam, agora, na autocrítica: “Também estou triste. Volto para o lugar onde trabalhei e vejo que tudo piorou. Entra SPI (Serviço de Proteção aos Índios), sai SPI, a situação piora. Entra Funai, sai Funai, a situação piora. Entra Possuelo, sai Possuelo, piora também. Quem olha a história de vocês sabe qual é a situação. Agora preciso subir o rio. Já são 17 horas. Vai escurecer. Não trouxemos lanternas.”

Há uma notícia boa. Em pleno 2015, os índios brasileiros estão aí, cobrando seus direitos.

Dida Sampaio/AE.

Cidade que mudou a cultura brasileira está pior que Haiti

Foi após uma viagem pelo Alto Solimões, em 1927, que o poeta modernista Mário de Andrade, morto há 70 anos, encontrou a diversidade cultural, os tipos humanos e os estilos de vida que levariam o movimento modernista, lançado cinco anos antes em São Paulo, a uma nova fase, mais voltado ao “fundo do mato virgem”. O fascínio pelo céu estrelado de uma pequena vila de pescadores, Caiçara, hoje Alvarães, garantiu o desfecho de seu mais importante livro, Macunaíma, o herói que sai da aldeia atraído pelo urbano.

Na expedição pelo rio e pelos povoados amazônicos, o escritor deixaria de se preocupar em retratar o Brasil para se concentrar no esforço de uma escrita e um pensar brasileiros, observou o biógrafo Eduardo Jardim.

Ao desembarcar em Atalaia do Norte, na época chamada Remate de Males, Mário de Andrade anotou em sua caderneta que fazia um calor de “rematar”, a malária atacava os moradores e não tinha “coisa nenhuma” no comércio para comprar. Essas observações foram mais tarde publicadas no livro Turista Aprendiz.

Ele era o poeta do bom humor e da simplicidade. Remate de Males seria o título de um livro de poesias que mostraria o esforço do escritor em compreender um país contraditório e plural, como ele mesmo, poeta, etnógrafo, folclorista, pesquisador de música, romancista. “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, escrevia o poeta na abertura da obra inspirada na pequena vila na margem do Javari. A figura do regatão, os mitos indígenas, os pilantras, o sujeito sem caráter e o homem brasileiro numa interminável febre de “maleita” entrariam definitivamente em seus livros, com suas características boas e ruins.

Nessa viagem e na leitura da obra do etnógrafo alemão Koch-Grünberg sobre o mito de macunaíma de Roraima, Mário de Andrade falaria do brasileiro sem a moral e a tradição de outros povos, uma sugestão para se enxergar uma identidade nacional própria. Era algo na linha da tese de uma “terra sem história”, formulada anos antes por Euclides da Cunha, que apresentava assim o desafio de um Brasil ainda a ser escrito.

A diversidade de culturas que balançou em dois momentos a cultura brasileira é alvo hoje de seitas evangélicas e grupos políticos que tentam impor um modo de vida único para maiorunas, marubos, matises, canamaris e culinas, índios que moram nas aldeias do município. Ações das três esferas de governo têm sido um incentivo de atração de índios para o caldeirão de Atalaia do Norte. Todos os investimentos em saúde, educação e assistência social são concentrados na sede do município, o que tem provocado o êxodo rural.

Manoel Chorimpa Marubo, único índio que conseguiu se eleger vereador em Atalaia do Norte, observa que 700 estudantes índios que viviam em aldeias estão em escolas no centro da cidade. Em uma delas, são 46 alunos. “Há uma deficiência do Estado em dar assistência ao povo indígena nas aldeias”, afirma. Na última eleição, Chorimpa foi eleito pelo PRP com 145 votos.

A seita evangélica Novas Tribos construiu casas no centro de Atalaia do Norte com nomes das etnias, recriando uma espécie de aldeia em plena cidade. Ali, os índios são instalados quando chegam para tratar a saúde ou resolver outros problemas. É o momento em que entram em contato com a religião imposta pela seita. A meta do grupo evangélico é traduzir para a língua pano toda a Bíblia.

É um modelo parecido com os aldeamentos ao longo dos grandes rios do Brasil Central nos períodos da Colônia e do Império. O poder central reunia diversas etnias num só lugar para facilitar o trabalho de homens do governo, do Exército e da Igreja Católica. Esse modelo apresenta resultados dramáticos. Atalaia do Norte tem o terceiro pior IDH do País. Com média de 0.450 na escala das Nações Unidas, o município fica atrás dos índices de Uganda, Benin, Sudão, Togo, Haiti, Afeganistão e Djibuti, países da lista dos 25 piores em qualidade de vida.

Retrato do escritor Mário de Andrade. Reprodução.
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