VII

Disputa pela terra

MST perde espaço no campo. Conflitos crescem

Madrugada de 17 de fevereiro de 2015. Cinco homens armados de revólveres e facões mandam o casal de posseiros Leidiane Soares de Souza e Washington Miranda Muniz, seus filhos – Julio Cesar, de 15 anos, Sâmila, de 13, Wesley, de 9 – e o sobrinho Mateus, de 15, sair do barraco montado no assentamento. A pé, sob as armas, a família caminha no rumo do Rio Estiva. Depois de alguns quilômetros, o grupo chega às margens do curso d’água. Ali, adultos e crianças são retalhados a facão. Os corpos foram jogados no rio caudaloso.

A família morava havia três semanas num lote da Colônia Estiva, uma antiga fazenda de Conceição do Araguaia. O pedaço de terra fora dado pelo comando da associação dos assentados, que controla a área. Mas um antigo ocupante do terreno, Oziel Ribeiro Moura, que não aparecia na colônia, quis retomar o lote. Diante da resistência de Washington, Oziel fez ameaças. Ele foi apontado como o autor da chacina.

Nem os nomes mudam na história de violência de terra no Pará. Em 1996, um outro Oziel era assassinado. Oziel Alves Pereira foi um dos 19 sem-terra mortos pela Polícia Militar na Curva do S, um trecho da antiga PA-150, atualmente BR-155, em Eldorado do Carajás, na tarde de 17 de abril de 1996. Ele foi executado à queima-roupa, com um tiro na testa.

A barbárie da disputa pela terra do sudeste paraense é a mesma dos anos 1970, 1980 e 1990. Em terra de homens brutos, mulheres e crianças não são poupadas de massacres cruéis, onde o corpo é atacado mesmo sem vida. O que tem se mostrado uma novidade nos conflitos sangrentos da região é a dinâmica das invasões. A Colônia Estiva não tem ligações com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) ou a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri). Grupos independentes disputam fazendas.

O desmatamento e os projetos de pecuária mudaram o cenário do Acre. Na estrada entre Rio Branco e Porto Acre, a AC-010, ainda é possível ver as últimas castanheiras centenárias que caracterizavam esse trecho da floresta amazônica. Dida Sampaio/AE.

A nova realidade dessa região que é o epicentro dos conflitos sociais do Brasil rural desmonta o mito distorcido de que os movimentos sociais organizados são a causa das invasões. As ocupações por parte de migrantes que saem do Nordeste, especialmente do Maranhão e do Piauí, em busca de oferta de trabalho crescem em meio a anúncios de novos investimentos de grandes obras. Agora, porém, sem os grandes grupos que fazem interlocução com os governos, movimentos de 50 a cem pessoas invadem terras e entram em disputas sangrentas.

Marcado pela burocracia e pelo sucateamento, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do governo federal, deixa a associações que nascem de um dia para o outro responsabilidades como a do cadastro, organização e distribuição de lotes de assentados. A história de Leidiane e Washington, bárbara como de tantas outras que se tornaram lendárias no final da ditadura e começo da redemocratização, como a de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, ou a dos irmãos Canuto, não sensibilizou o País. Não havia um movimento nacional para reclamar nos grandes centros mais uma tragédia do campo.

José Batista Afonso, advogado que acompanha as disputas por terra no Pará há três décadas, observa que o agravamento da questão urbana continua tendo como origem o êxodo rural crescente. A cada dez anos, o Censo mostra uma mudança drástica do meio rural para o urbano. As ocupações de fazendas continuam. Ele avalia que os movimentos sociais de abrangência nacional não têm mais condições de atender a toda a demanda de famílias de acampados.

Atualmente, existem 140 fazendas ocupadas por movimentos diversos de sem-terra. Cerca de 14 mil a 15 mil famílias moram em barracas de lona e palha à beira das estradas que cortam a região.

Um dos problemas é a “inoperância” do Incra e a “lentidão” da Justiça. Batista ressalta que as mortes da Colônia Estiva e os assassinatos em 2013 de duas pessoas na Fazenda Gaúcha ocorreram devido à morosidade dos órgãos. “Não eram conflitos novos”, afirma. A ocupação na Estiva ocorreu há dez anos e a da Gaúcha, há oito. “Os principais crimes ocorrem pela morosidade da Justiça Federal em julgamentos de terras públicas federais”, avalia. “Como a reforma agrária tem sido tirada de pauta pelos governos Lula e Dilma, surgiram movimentos independentes, sem vínculos com o MST, a Contag ou a Fetagri, que reúnem 50, cem pessoas, e ocupam as terras. Esses movimentos surgiram diante da crise dos movimentos nacionais.”

O migrante não tem como voltar à sua terra. “Quem chega com alguma qualificação consegue emprego pelo menos durante os estudos e a implantação dos projetos. Quem não tem não consegue trabalho e acaba numa ocupação rural ou urbana”, diz Batista. “A exemplo das décadas passadas, quando os militares impulsionaram a migração, a questão da terra continua um caso de conflito. Há um caos.”

A política de desenvolvimento da Amazônia foi acelerada pela ditadura por uma questão geopolítica e de segurança nacional: descongestionar a questão dos conflitos no Nordeste. “Esse modelo não foi alterado pelos governos posteriores”, avalia o advogado. Entre os governos militares e os civis só mudou, na política de Amazônia, a relação do Estado com a sociedade. Os agentes do Estado que no regime militar eram responsáveis diretos pela repressão passaram para a iniciativa privada uma espécie de concessão do sistema repressivo. “O Estado não toma medidas para coibir essas práticas de violência. É omisso em relação às empresas de segurança contratadas por fazendeiros nas áreas rurais.”

Letreiro num morro de Parauapebas, no Pará, lembra o lendário símbolo do Mount Lee, em Los Angeles, nos Estados Unidos. A urbanização chegou ao sudeste paraense no rastro dos grandes projetos de mineração. Dida Sampaio/AE.

Invasão da Lucinha, um capítulo desconhecido de Eldorado

No sudeste paraense, número de conflitos de sem-teto supera o de disputas agrárias

Manoel Moura de Oliveira foi um dos sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás, em 1996. Tempos depois, tornou-se líder de dezenas de famílias que ocuparam um terreno na Cidade Nova, região central de Marabá. O ex-sem-terra não sobreviveria como líder sem-teto. Em 2009, uma milícia privada de antigos ocupantes da área o assassinou.

Ele foi o quarto líder da Invasão da Lucinha executado. O nome da invasão era uma referência à filha do fazendeiro Manoel de Barros, ocupante do local. Nem ela nem seus irmãos tiveram qualquer problema na Justiça, embora eles tenham sido acusados pelos sem-teto de matar as lideranças.

A invasão começou em 2007, liderada pelo casal Sônia Peroba de Oliveira e Josiel Barros Pereira, o Cabeça. Ainda naquele ano, seguranças de Lucinha teriam matado Edivan Siqueira de Oliveira, que também comandava o movimento. Cabeça seria executado dias depois. Em 2008, pistoleiros mataram João Batista Goes, o Joãozinho do Jet, outra liderança. Sônia se mudou de Marabá, com destino desconhecido pelos moradores.

‘Não é coragem’. Com a morte de Manoel Moura de Oliveira, a invasão passou a se chamar Bairro da Paz, pelo menos nas contas de energia e iluminação pública que começaram a chegar. O lugar, no entanto, era mais conhecido como Bairro da Bala. A associação da comunidade ficou sem liderança. Foi quando Ilka Barros Lima, hoje com 33 anos, assumiu a entidade. Começaram os telefonemas de ameaça de morte.

Ela e o marido, Josavias Sandes, de 38 anos, um professor da rede pública municipal, estavam entre os primeiros invasores de 2007. Depois, Ilka tornou-se secretária de Manoel de Moura Oliveira. O casal tinha deixado Tucumã, uma cidade do sudeste paraense, em busca de emprego em Marabá. Ela não conheceu o pai e, muito mal, a mãe. Foi criada pela avó materna. “A ocupação surgiu às 5 horas da manhã. Às 7, eu estava aqui”, relata.

Mãe de duas meninas – Vitória, de 16 anos, e Alexandra, de 5 –, Ilka relata que perdeu guerras travadas na direção da entidade. Recentemente, tentou evitar que famílias invadissem um terreno de pântano, alagado no inverno, reservado para a instalação de um parque, única área verde do bairro. Próximo ao Rio Itacaiúnas, o lugar ganhou construções de alvenaria feitas às pressas. Ela tentou ainda costurar um acordo entre os moradores para não derrubarem as castanheiras que resistiram à ocupação. Na Rua Espírito Santo, quase na esquina com a Villa Lobos, duas delas haviam sido queimadas na noite anterior. Moradores usam fossas e poços artesianos. A prefeitura estima que cinco mil famílias residam no bairro.

A luta contra o tráfico não tem fim. Ilka assumiu a associação aos 26 anos, grávida de quatro meses. “Só assumi porque ninguém queria ter o mesmo fim do seu Manoel, que pegou sete tiros na outra esquina”, relata. “Foi crime que todo mundo viu, mas ninguém quer falar. Aqui, predomina o silêncio”, completa. “A gente não queria que o bairro virasse um favelão e quem queria assumir a associação mexia com coisa errada.”

Líder sem-teto Ilka Lima, da Associação dos Moradores do Bairro da Paz, antiga Invasão da Lucinha, em Marabá. Dida Sampaio/AE.

Ela anda com a equipe de reportagem pelas ruas enlamaçadas de terra da antiga invasão. Não há posto de polícia ou de saúde. A prefeitura alugou duas construções precárias para instalar uma creche e uma escola de ensino básico.

Lucinha, filha de Manoel de Oliveira, ainda manteve a sede e o curral da antiga fazenda da família. Mandou construir muros altos. O auge da guerra entre a família dela e os moradores da invasão ocorreu após a morte de Cabeça. “Todos queriam tocar fogo na sede da Lucinha, mas a Sônia, a viúva, não permitiu”, conta Ilka. A associação vive da mensalidade de R$ 5 paga por parte dos 600 associados.

A morte recente de uma outra líder sem-teto de Marabá desanimou Ilka. Em outubro de 2014, Edinalva Araújo, a Dinalva do Araguaia, foi executada com tiros na cabeça por dois homens que estavam numa moto no centro de Marabá. Ela disputava o controle da associação de moradores do Bairro Araguaia, outra invasão da cidade. O crime estaria ligado à venda irregular de lotes. Ela teria atuado na venda de terrenos sem ter repassado os lotes. Há exatos 40 anos, o Exército fuzilava uma homônima dela, a guerrilheira Dinalva Teixeira, do PCdoB, na mata da região.

Ilka diz que precisa continuar no Bairro da Paz. “Moço, não é coragem, é sobrevivência”, afirma. Ela ressalta que ainda vive na comunidade por falta de opção. Espera terminar de pagar o empréstimo de R$ 10 mil da pequena casa onde mora com o marido e as filhas para pensar em mudança.

A Transamazônica por ela mesma

Filha de migrantes atraídos pela política de desenvolvimento da Amazônia, a mineira Paula Sampaio optou por fotografar ela mesma as margens das estradas que cortavam a floresta. Nos anos 1970, acompanhou os pais na viagem de Belo Horizonte para Araguaína em busca de um pedaço de terra perto da Belém-Brasília. A política desenvolvimentista do governo militar incentivava a aventura e o êxodo. A adolescente entrava em contato com um universo de encanto e tragédia, fonte perene de seus trabalhos. “Tenho a impressão de que tudo está pior”, diz a fotógrafa, deixando claro que não perdeu a sensibilidade na terra de vidas brutas. “É o que eu sinto quando volto aos lugares mais distantes. Revisitar Marabá, Altamira, Rio Branco, que conheço há tanto tempo, é sempre difícil.”

Em 1982, Paula se mudou para Belém, onde começou a atuar como fotógrafa. Com experiência nas redações de jornais, ela logo começaria a fazer trabalhos longos sobre os brasileiros que colonizavam a floresta ou chegavam aos garimpos e canteiros de obras. Paula passou a percorrer a Transamazônica, as vicinais, a entrar nos povoados que se formavam da noite para o dia em torno de projetos de infraestrutura, a mergulhar em rituais. Em Tucuruí, fez fotografias em que troncos de árvores mortas ganham feições humanas. Lago do Esquecimento foi uma experiência de anos com comunidades atingidas pela inundação do lago da hidrelétrica. Também viveu próxima de quilombolas, sem-terra e vilarejos das fronteiras. Pelas lentes da artista, homens se apresentavam em condições de animais, em quadros de violações de direitos.

Em seus últimos livros e projetos, a Amazônia aparece em preto e branco. Paula Sampaio ganhou destaque nas mostras fotográficas e no meio artístico ao unir memória e imagem, escapando das amarras do documentário. Ela leva às últimas consequências a visão de fotógrafos do pós-guerra, como o americano Eugene Smith, com a denúncia da desigualdade social que não compromete, no entanto, o olhar subjetivo. A fotógrafa busca um retrato íntimo da floresta e das estradas da infância e da vida adulta.

A fotógrafa mineira Paula Sampaio, radicada em Belém, no Pará. Dida Sampaio/AE.
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