Esquema de desvio de dinheiro de cartões sociais do governo inclui comerciantes e casa lotérica; prática lembra sistema escravocrata dos barracões nos seringais e beiras de rio
O casal Maria Nascimento Rodrigues Canamari e Raimundo Canamari, da Aldeia Bananeira, em Atalaia do Norte, no Amazonas, perdeu há dois meses o filho Rogério, de 1 ano e 2 meses. “Morreu de vômito, de diarreia”, relata a mãe. “Eles (agentes de saúde da aldeia) não cuidaram do meu filho”, reclama. A criança, segundo o Ministério da Saúde, morreu de desnutrição.
Maria recebe R$ 154 por mês do Bolsa Família. No entanto, o cartão do programa está nas mãos do comerciante Luciano Rodrigues por causa de uma suposta dívida que não para de aumentar. O tempo dos barracões – quando, no começo do século 20, índios e ribeirinhos viviam em sistema de escravidão, com dívidas impagáveis – está de volta ao Alto Solimões.
Com o casal, fomos procurar Luciano. Nossa aparência, não muito comum na região, deve ter feito o comerciante pensar que éramos homens do governo. Maria pede seu cartão na língua canamari. Luciano, que também é canamari, responde algo, sem tirar os olhos da gente. Sem me identificar, pergunto qual é a dívida dela. Rodrigues responde que chega a “200 e pouco”. Digo simplesmente que ele deve entregar o cartão de Maria. “Ela deixou o cartão empenhado aqui”, argumenta.
Ele se levanta de uma cadeira, sai do comércio e volta minutos depois com o cartão de Maria. Diz que também é índio canamari e trabalhou anos de regatão – comerciante que navega pelos rios e igarapés trocando produtos industrializados por peles de animais, peixes secos e frutos da floresta. Pergunto se é verdade que ele teria mais de 60 cartões. “Tenho mais ou menos oito, mano. O pessoal conversa muito.” Insisto: “Mas quantos cartões da Previdência o senhor retém?” “Eu tenho três cartões de aposentados.” “E quantos de Bolsa Família?”, pergunto. “Tenho mais ou menos oito de Bolsa Família.”
A uma pergunta se outros comerciantes retêm cartões, Rodrigues responde: “Rapaz, é tudo regatão. Muita gente dessas lojas grandes também faz”. Ainda pergunto se tem dificuldade de sacar os benefícios na casa lotérica São Sebastião. “Só com documento mesmo. Muitos não tiram, não. Só com cartão não tira, não. Só sai com a senha”, esclarece – ele tem as senhas dos cartões. Por fim, pergunto se Dênis Paiva, dono da lotérica, sabe do esquema. “Às vezes eu tiro lá. Só com a senha.”
Procuramos Paiva, mas ele tinha deixado a cidade e não tinha previsão de retorno. Tentamos fazer um contato por telefone, mas o comerciante não respondeu às ligações.
Em outro comércio, acompanhamos a índia Joana Matis para falar com Renikson Monteiro. Lá ela diz que precisa saldar a dívida da irmã, Jocelina Nascimento Matis, que mora numa aldeia distante e deixa o cartão com o comerciante. A dívida dela chega a R$ 540, segundo Renikson. Joana pede ao menos para ver o número, pois precisava vender artesanato. Precisávamos de uma prova de que Monteiro também atuava no esquema dos cartões. Ele vai até o andar superior do prédio onde funciona seu comércio e volta com o cartão de Jocelina.
Depois, descemos até o centro comercial na beira do Rio Javari com o aposentado Pekompa Marubo, da Aldeia Boa Vista. Em novembro, ele deixou seu cartão da Previdência com o comerciante João Barbosa, o João Alma de Gato, em troca de rancho (comida) e gasolina para voltar à aldeia. Agora, em abril, Pekompa retornou à cidade para tentar reaver o cartão. No comércio de Alma de Gato, a atendente diz que não está com o cartão. Para complicar, uma outra mulher diz que estávamos filmando. Diante de nossa insistência para informar o total da dívida dele, a atendente retira um caderno da gaveta com dezenas de extratos bancários de saldo e retirada de dinheiro. Um deles é da conta de Pekompa. Ele estaria devendo R$ 800. Um dia depois, Pekompa nos procura. Ele diz que Alma de Gato devolveu seu cartão.
Barracões. Varney da Silva Tavares Kanamari, presidente da Associação dos Kanamaris do Vale do Javari (Akavaja), diz que tenta há tempo convencer os “parentes” a não entregar os cartões aos comerciantes. “O Bolsa Família está trazendo muito problema. O parente deixa a aldeia e vem para a cidade. Ele compra fiado uma vez e quatro meses depois o patrão (comerciante) diz que a dívida ainda não está paga. Então, o parente fica por aqui, sem comida para a criança, que adoece”, afirma. “Eu digo: ‘Parente, fica cinco meses na aldeia. Com cinco meses você volta e faz a compra’.”
Também representante da Akavaja, Leonardo Gomes Kanamari, tesoureiro da entidade, diz que Luciano e outros comerciantes cobram até R$ 180 por um cartucho de espingarda de caça de 25 balas que custa em média R$ 70. “Eles dobram o preço dos produtos, sabem que cometem um crime.”
Nas primeiras décadas do século passado, índios e ribeirinhos ficavam nas mãos de “patrões”, comerciantes de regatões ou donos de barracões que mantinham um sistema escravocrata. O ribeirinho e o índio entregavam peles de animais, pirarucus secos e borracha para abater dívidas que nunca acabavam. Era comum também donos de seringais cobrarem pelos alimentos valores que jamais eram saldados pelo trabalho forçado nas estradas do látex.
Tereza Campello, do Desenvolvimento Social, reconhece que o Estado não pode desorganizar aldeias
A prática dos comerciantes de Atalaia do Norte de reter cartões dos beneficiários do Bolsa Família indignou a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello. Ao assistir aos vídeos feitos pelo Estado, ela prometeu acionar a Polícia Federal. “Não é que seja apenas incorreto. Isso é um crime de comerciantes e lotéricos, que retiram o direito das pessoas”, ressalta. “A polícia precisa tomar algum tipo de providência. Eu não posso tomar conhecimento dessa situação e não tomar uma atitude. Só tem um jeito de a gente solucionar esse problema: é receber informações como essas de comerciantes retendo os cartões, uma realidade que você mostraram.”
No comando de um programa de inclusão social que atende 14 milhões de famílias e coleciona sucesso País afora, Tereza Campello avalia que é preciso conhecer realidades como a dos beneficiários do Vale do Javari e outras áreas indígenas. “Uma coisa é ele (o índio) ter direito como brasileiro e a outra é a gente, ao levar o Estado, estar desorganizando essas comunidades. Há uma linha tênue aí”, afirma. “Não é o Estado chegar e impor o Bolsa Família. É preciso conversar”, completa. “Ainda temos um longo caminho pela frente. É um momento de conhecimento.”
Atualmente, 133.161 famílias de índios recebem o Bolsa Família em todo o País. Houve um aumento de 28,42% no atendimento desde 2011. Ela reconhece que a população indígena precisa de um atendimento diferenciado. “Estamos lidando com uma situação delicada. Dependendo da ação do governo, você desestrutura uma sociedade inteira. É diferente de lidar, por exemplo, com a população de rua, que no caso temos experiência.” A ministra diz que pretende chamar as associações de casas lotéricas para cobrar responsabilidade. Embora diga não ser possível retirar das lotéricas a distribuição do Bolsa Família pelo fato de o programa não ter uma rede de atendimento.
Nos últimos anos, Tereza Campello tem feito alterações no cadastro único dos beneficiados do Bolsa Família para incluir uma variedade de questionamentos e entender públicos específicos atendidos pelo programa, como indígenas, ciganos, comunidades de terreiros, quilombolas e ribeirinhos. “O cadastro único era uma coisa homogênea. O Bolsa Família conseguiu chegar ao País porque é algo simples. Mas hoje a gente sabe que precisa conhecer mais. A gente passou a ter suplementos para públicos diferenciados, a buscar informações diferenciadas”, afirma. “Isso nos ajudará a fazer política pública, que não pode ser igual para todo mundo.”
A ministra decidiu retirar a exigência no cadastro do endereço fixo para atender os ciganos e outros povos nômades. Ela reclama que prefeitos têm colocado empecilhos inclusive para cadastrar famílias indígenas. “As soluções que as pessoas trazem não têm resolvido o assunto.” Aumentar o prazo para a retirada do benefício tem um efeito colateral, avalia. “Se o índio for sacar um bolo de dinheiro por ano, ele pode ser roubado. E não se cumpre a função de um programa regular de alimentação.”
Tereza Campello relatou que técnicos do ministério já haviam identificado alguns problemas vistos pela reportagem, como a retenção de cartões por comerciantes, mas a retenção esbarra na falta de provas.
Ela observa que o fato de uma pessoa não ter renda não significa que está na linha da pobreza. Mas, no caso da população indígena, 40% das famílias estão em extrema pobreza. “São cidadãos que têm os mesmos direitos de outros brasileiros. O esforço agora é saber chegar para garantir direitos respeitando culturas”, diz. “Uma distribuição de cesta básica com produtos como açúcar, por exemplo, pode trazer prejuízos para culturas indígenas. Nenhuma solução é simples e não pode ter solução pasteurizada. As situações de um índio no Espírito Santo e outro na Amazônia são diferentes.”
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