Uma jovem segura o cartão de CPF em frente ao rosto.
A partir do ano que vem, todas as crianças vão precisar ter CPF: cuidado cada vez mais cedo | Foto: Carla Bridi/Estadão

O drama dos que ficaram com nome sujo por causa da família

Emprestar CPF pode comprometer a vida financeira de jovens e adolescentes, alertam advogados; é possível acompanhar situação do documento online

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Quando completou 18 anos, o mineiro Maurício* assinou documentos para abrir uma empresa, a pedido da família – negativado, o pai não poderia montar um negócio com o próprio CPF. Um ano depois, o jovem se viu diante de um tribunal condenado a pagar uma dívida de R$ 55 mil pela qual diz não ser responsável. Hoje, aos 27, com o nome sujo e ainda morando com os pais, não consegue sequer parcelar um computador, seu principal instrumento de trabalho.

O problema ocorreu porque o pai não formalizou em contrato a venda do negócio que abriu no nome de Maurício. E isso abriu uma brecha para que a compradora da empresa fizesse dívidas e, sem conseguir realizar os pagamentos, acionasse a Justiça, alegando que o débito não era dela. Como, pela lei, vale o que consta nos documentos, Maurício era o proprietário e acabou entrando na lista de devedores.

É muito comum os pais abrirem empresa no nome dos filhos porque estão com o CPF negativado”, diz o professor de Direito Luciano Anderson de Souza, da USP

“É muito comum os pais abrirem empresa no nome dos filhos porque estão com o CPF negativado”, diz o professor de Direito Penal Luciano Anderson de Souza, da Universidade de São Paulo (USP). “E aí a única possibilidade para tocar o negócio da família é colocar no nome dos filhos. Ao longo da minha carreira, tive contato com casos assim.” A transação é considerada legal quando se trata de um maior de idade ciente da propriedade da empresa, como era o caso de Maurício. Mesmo que isso apresente riscos para a futura saúde financeira do adolescente.

Quando o jovem não tem conhecimento do uso de seu CPF, seja para abrir empresas e contas bancárias ou mesmo fazer compras, o caso passa a ser considerado fraude, de acordo com Souza. Foi o que aconteceu com o paulistano Fernando*, de 22. O pai, que mora em uma cidade no interior do Estado, usou os documentos do jovem e uma cópia de sua assinatura para comprar um carro usado.

Fernando só soube da fraude quando tentou adquirir um aparelho de videogame da Nintendo e disseram que o nome dele estava negativado, pois havia deixado de pagar uma parcela de IPVA, o imposto devido por quem tem veículos. O jovem, que não tinha carro, foi investigar e descobriu que o IPVA em questão havia sido registrado na cidade onde o pai vive. A artimanha foi descoberta, mas o problema estava longe de se resolver.

Mesmo após a dívida ter sido paga, Fernando não consegue fazer um empréstimo no banco. “Isso acabou deixando meu score negativo, por mais que eu tenha acertado todas as contas”, lamenta. O score de crédito [entenda o termo no Glossário do Por Minha Conta] é um cálculo que determina o quão “confiável” é um devedor, ou seja, qual a probabilidade de que a dívida seja paga por ele. A recomendação geral é: por mais que possa parecer difícil negar algo a um parente, o jovem não deve assinar papéis em branco ou documentos sem saber o teor.

Se a fraude for cometida contra um menor de idade, seja pelos pais ou por terceiros, a vítima não responde pela dívida e nem pode ter o CPF negativado. “Se ele (menor) não for emancipado, a negativação deve ser feita em nome dos responsáveis, como os pais, por conta do disposto no Código Civil”, explica o professor Souza.  E, caso ocorra a fraude, a pessoa deve procurar um advogado ou ir diretamente ao Ministério Público.

De acordo com a assessoria de comunicação do Ministério Público de São Paulo, não há estatísticas sobre esse crime contra jovens e adolescentes no Estado. Dados sobre fraudes são divulgados por órgãos como o Serasa e o SPC, mas não refletem a realidade específica do problema no âmbito familiar. Confira, abaixo, detalhes sobre o CPF e como se proteger.

Quem precisa de CPF?

A partir do ano que vem, a Receita Federal vai exigir que todas as pessoas tenham um CPF cadastrado, independentemente da idade – até este ano, a medida valia apenas para dependentes com mais de 8 anos.

Como posso fazer meu documento?

Se você tem menos de 16 anos, são seus responsáveis que precisam pedir a primeira via do seu CPF, nos Correios, no Banco do Brasil, na Caixa ou ainda no Ministério do Trabalho. Eles têm de levar sua identidade original ou cópia autenticada. Quem está com mais de 16 anos pode fazer o processo acessando o site da Receita Federal.

Dá para saber se estou com nome sujo?

É possível realizar uma consulta no site da Receita Federal ou ainda em órgãos como Serasa Experian, SPC Boa Vista e SPC Brasil. Para isso você vai precisar de dados como o número do CPF e sua data de nascimento. A consulta é gratuita em todas as plataformas.

Onde mora o perigo?

De acordo com Renata, do Procon, o público jovem é muito suscetível a cair em fraudes disfarçadas de promoções “Debaixo de uma oferta muito vantajosa, pode haver uma operação fraudulenta. É preciso muita atenção (na hora de fornecer dados)”, diz. “Tenha um bom antivírus e conheça as regras de segurança (da empresa contratada). Esta é uma segurança mínima. Enquanto conversamos, os fraudadores estão tentando abrir estas portas. É muito rápido, muito dinâmico.”

Como consigo evitar as fraudes?

A coordenadora do Procon-SP Renata Reis recomenda que o consumidor, jovem ou não, crie o hábito de guardar documentos contratuais e até mesmo material publicitário pelo qual tenha sido atraído.

O que é o cadastro positivo?

É como um banco de dados com o cadastro do CPF dos bons pagadores. A ideia é que ele sirva para eliminar os gastos com burocracia nas análises para concessão de crédito e, assim, reduzir a taxa de juros. Atualmente, para ser incluído nesta base, é necessário que você faça uma autorização. Mas isso pode mudar em breve. Está em votação na Câmara o Projeto de Lei Parlamentar 441/2017, que pode tornar o cadastro obrigatório e automático. Ou seja, caso o novo texto seja aprovado, todo cidadão economicamente ativo será constantemente avaliado pelos bancos e financeiras responsáveis pelo sistema.

E pode, Arnaldo?

Existem questionamentos sobre a legalidade do cadastro positivo. Uma vez que o sistema teria permissão para analisar e divulgar automaticamente detalhes sobre qualquer CPF, entraria em conflito com a Lei de Proteção de Dados Pessoais (PLC 53/2018), que restringe o acesso e a distribuição de informações pessoais.

Esse cadastro é bom para mim?

O projeto não é visto com bons olhos pelos órgãos de proteção ao consumidor. Isto porque o cadastro positivo cria uma série de problemas e não apresenta os benefícios prometidos. “O consumidor não tem acesso aos seus dados, não sabe como o score é construído. E quando o consumidor procura os birôs de crédito, não recebe informações claras.”

*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados