Rede pública sem leito para tanto dependente

As histórias de quem usa crack compulsivamente são sempre muito parecidas às cantadas pelos rappers do grupo Zona Proibida: "Treta, cilada, parada errada. A droga mata". Seja rico ou pobre, jovem ou velho, homem ou mulher, preto ou branco, no começo era diversão de fim de semana, fumava apenas depois do trabalho, conseguia ficar dias sem usar e ainda levava dinheiro para a família. Depois, começou a se desinteressar pelas coisas, perdeu emprego, passava dias na rua, começou a vender bens até virar uma das piores estatísticas do vício feitas até agora no Brasil – a de que a prevalência de mortes entre essa população é muito maior do que a média geral.

Tardiamente atacado como problema prioritário de governo, seja por União, Estado ou municípios, o alastramento do crack faz com que, cada vez mais, os "noias" – tão estigmatizados pela sociedade e considerados muitas vezes casos perdidos – batam às portas de serviços públicos. E, por sobrecarga da rede ou falta de preparo dos profissionais, muitos as encontram fechadas.

"O Estado inteiro precisa se estruturar. Se hoje você precisa de uma internação para um drogadicto pelo SUS (Sistema Único de Saúde), não consegue, tem uma dificuldade enorme. É um problema geral no Brasil. Temos uma quantidade de usuários muito grande. Não é só jovem, idoso, não é só abandonado", observa Lúcia Colucci, secretária de Saúde de Ilhabela. "Quem tem mais condições acaba pagando (clínica), mas os que têm poucas condições ficam com mais dificuldade."

Sem um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), Ilhabela tenta convencer o governo federal de que, apesar de não ter o número de habitantes necessário para receber a unidade especializada (70 mil), já necessita de uma. "Nós estamos pleiteando um Caps AD. Porque a gente entende que a necessidade agora é essa por conta do número de drogadictos que a gente tem", explica Lúcia.





No coração da ilha. Uma das vilas onde há tráfico e uso de crack: mapeamento identificou 206 dependentes

Por serem a porta de entrada para tratamento, os Caps (não especializados) e os Caps AD são o melhor termômetro de como a rede é deficitária em relação à demanda crescente de viciados no interior. Em Ibitinga, que também está na luta para conseguir transformar o serviço de saúde mental em unidade especializada, 90% dos atendimentos se referem a crack, segundo a terapeuta Talita Valle. Mesmo sem ter equipe completa e estrutura para isso, a unidade faz o que pode para absorver a demanda crescente. No dia em que o Estadão visitou o centro, pelo menos três dependentes haviam ido buscar ajuda.

Garça, com 43 mil habitantes, só conseguiu abrir uma unidade regional ao voltar o atendimento também às seis cidades do entorno, que fizeram completar o número mínimo populacional para abertura do serviço. A maior delas é Gália, com 7,3 mil moradores. A unidade está sobrecarregada e já tem fila de espera para internações. "Quando a gente começou, acreditava que teria, no máximo, de dez a 15 pacientes intensivos e de seis a oito ambulatoriais por dia. Mas, em pouco tempo, a gente tem uma média de 35 pacientes intensivos, que são atendidos todos os dias, 30 semi-intensivos e em torno de 200 ambulatoriais por mês", explica José Roberto Ottoboni, coordenador do Caps de Garça e dono de uma comunidade terapêutica em Vera Cruz. "Tivemos de organizar uma fila de internação, que fica com a assistência social e divide pacientes por critérios de maior e menor urgência."

O estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com usuários de crack nos locais de consumo apontou que o Caps AD foi o serviço ambulatorial mais buscado nos 30 dias anteriores ao levantamento e a procura por internação fora das capitais é menor que nos grandes centros. Para os pesquisadores, esse dado reforça "a premente necessidade de ampliação e fortalecimento desses equipamentos no âmbito da rede de saúde, assim como as pontes (serviços intermediários, agentes de saúde, redes de pares, consultórios de rua) entre as cenas de uso e os serviços já instalados".

Políticas tardias não barram avanço da droga

Recentes, as políticas de enfrentamento do crack no Estado e no País são alvo de crítica por não conseguirem atuar conjuntamente no combate ao aumento da circulação da droga e no atendimento aos usuários. E refletem uma queda de braço entre duas posições conflitantes: a do governo federal, defensor de tratamento ambulatorial e redução de danos como principal foco de tratamento, e a do governo estadual, que vê com bons olhos internações promovidas por via judicial nos casos mais graves e repressão a locais de consumo.

No âmbito da União, o programa atualmente em curso é Crack, É Possível Vencer, lançado pela presidente Dilma Rousseff em 2011, mais de 20 anos depois de a droga chegar ao País.

O programa prevê o repasse de dinheiro para atendimento a dependentes, desenvolvimento de políticas de prevenção à dependência e enfrentamento do tráfico. "Dos R$ 4,5 bilhões previstos no programa, foram gastos efetivamente cerca de R$ 2,2 bilhões. Mensalmente, no caso dos Caps, o governo financia para custeio R$ 105 milhões", diz o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximinano.

O presidente de Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, porém, desafia o governo a mostrar onde estão esses investimentos. "Nos mostre, é tudo o que queremos saber. Onde estão os resultados?", questiona. Segundo ele, dos R$ 4,5 bilhões previstos pelo programa Crack, é Possível Vencer para investimento até este ano, teriam sido usados apenas R$ 389 milhões.

O presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, também denuncia a falta de aplicação dos recursos e diz que só foi utilizado R$ 1,9 bilhão do total. "Apesar de os recursos serem essenciais para que os municípios possam desenvolver políticas públicas contra o problema do crack, que hoje está em todo o País, temos constatado que há um baixo investimento em relação ao que foi programado."

O que regulamenta hoje no Brasil a política de atenção ao crack é a Portaria 3.088 do Ministério da Saúde, de 2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso do crack, álcool e outras drogas no Sistema Único de Saúde. Dois anos antes, em 2009, ainda no governo Luiz Inácio Lula da Silva, um documento da Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Drogas do ministério chamou a atenção para relatos de gestores a respeito do aumento do uso de crack nas cidades que "não apresentavam consumo significativo" fora dos grandes centros urbanos e ressaltava a necessidade de "estudos e pesquisas" sobre o tema. No texto, o ministério usou dados de uma pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Unifesp, que mostravam que o índice de pessoas que declaravam ter consumido crack saltara de 0,4% da população em 2001 para 0,7%, em 2005. O levantamento considerava apenas cidades com mais de 200 mil habitantes.

O presidente da ABP afirma que a entidade alertou o governo e se colocou à disposição para colaborar. "Em 2006, nós criamos as diretrizes de tratamento para as políticas públicas de saúde mental no Brasil e já alertávamos para a necessidade de uma política específica para dependência química. Isso foi entregue ao Ministério da Saúde, para o governo, e sempre nos colocamos à disposição para prestar assessoria gratuita. Mas nunca fomos ouvidos, nunca fomos chamados para opinar sobre o programa Crack, é Possível Vencer, nunca nos chamaram para opinar sobre as diretrizes, dar treinamento a essas pessoas. E nós temos os maiores especialistas do Brasil nessa área", afirma Silva. Para ele, os municípios não estão preparados, porque não há diretrizes claras para o tratamento e falta gente qualificada. "Não tem número de Caps AD nem treinamento. Não se testa a eficácia e eficiência do serviço."

O articulador da política sobre drogas no Estado, Ronaldo Laranjeira, admite que um dos grandes problemas na rede hoje é o despreparo. "O maior gargalo são os recursos humanos. Estamos fazendo um curso de especialização em São Paulo para as pessoas que estão na rede. Vai começar com 120 profissionais. A ideia é espalhar massa crítica pelos municípios para poder lidar melhor com a crise."

Preconceito. Cury diz que governo e sociedade têm obrigação de enfrentar problema do crack

O prefeito de Botucatu, João Cury (PSDB), que viu a demanda de dependentes aumentar após abertura na cidade, em novembro, da primeira clínica modelo de internação criada pelo Estado, acredita que o avanço do crack foi subdimensionado pelo governo. "O problema carrega um pouco de preconceito. E, quando você faz uma discussão dessa com preconceito, a impressão que dá é a de que ninguém quer tratar do tema, porque corre o risco de ser mal interpretado, politicamente ser desgastante. Então você fica negligenciando o assunto, a relevância dele."

Internar para recuperar

Na maior parte dos casos, o tratamento não requer internação e, quando ela é feita sem necessidade, pode levar até mesmo a um aumento do consumo nas recaídas, afirmam especialistas. Contrário à política de internações, o psiquiatra Dartiu Xavier Silveira, diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), diz que o melhor modelo é o ambulatorial, com ênfase na redução de danos. "O problema dos Caps AD é que são em número insuficiente e as equipes não são suficientemente bem treinadas. Conheço alguns que são modelo de intervenção. Mas, se todos os Caps AD fossem como esses, o Brasil estaria muito melhor e não precisaria discutir coisas abjetas, do tipo internação compulsória e Justiça terapêutica."

No governo do Estado, as internações têm sido defendidas como necessidade crescente não só na capital como também no interior. A Secretaria de Estado da Saúde afirma que mais que dobrou o número de leitos especializados para tratamento desses dependentes entre 2011 e 2012.

Um dos centros considerados modelo para o enfrentamento ao crack no Estado foi o inaugurado em novembro em Botucatu. Primeiro hospital público do País destinado a tratamento e reabilitação de dependentes, o espaço oferecerá 76 leitos quando entrar em pleno funcionamento – hoje são 50.

O Estadão visitou a clínica, que pretende ser uma alternativa aos hospitais psiquiátricos. A unidade faz internações de curto prazo. Depois, encaminha os pacientes a serviços ambulatoriais, dos Caps ou de comunidades terapêuticas. "As pessoas acham que a internação é a solução. Ela não é, ela é parte de um processo. Tem um monte de casos que não precisariam da internação. O propósito é fazer parte de um processo de tratamento. Uma vez dependente químico, você vai tratar disso o resto da vida", diz a diretora do hospital, Janice Megid.

Um dos problemas da internação de curto período é o risco de recaída. Usuários ouvidos pela reportagem, em fase inicial de internação, seja na clínica de Botucatu ou em comunidades terapêuticas particulares e mantidas por entidades, afirmaram não estar preparados para retomar a vida.

"Eu não tô pronto para ir para a rua. São muitos anos de uso. Aqui são 15 ou 20 dias, mas eu vou tentar ver se fico um mês pelo menos, senão vou tentar outra clínica. Aqui a gente não tem contato com droga, não entra álcool, não entra nada. É da porta para fora que você vai ver o mundo real. Se eu saio na rua e um amigo meu chega com a droga ali, com 20 dias eu vou usar", conta Aderval, que é de São Manuel, cidade com 38 mil habitantes que também figura entre as que declararam alto problema no Observatório do Crack.

Uma modalidade vista como saída pelos governos federal e estadual para dar conta da demanda crescente de dependentes é a internação em comunidades terapêuticas. Nelas, o usuário vive com outros viciados por períodos que vão de seis meses a um ano e o uso do crack tem de ser completamente interrompido. O fundamento de tratamento nesses ambientes, segundo a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), é a terapia – em grupo e individual – com ênfase na espiritualidade, uso da filosofia dos 12 passos criada para o tratamento do alcoolismo e depois adaptada aos Narcóticos Anônimos, tempo para se reorganizar sem a droga e busca por reestabelecer vínculos com a família e a sociedade.

Apesar de muitas comunidades serem mantidas por igrejas, entidades filantrópicas e fundações, há um mercado crescente de unidades particulares – muitas abertas por ex-usuários de droga, que viram no crack um bom negócio. Parte dessas comunidades virou apenas casas de acolhimento, com alto índice de recaída e insucesso de tratamentos. "Nós sabemos que há pessoas seriíssimas que estão envergonhadas do alastramento de comunidades terapêuticas. Criou-se um mercado vantajoso", denuncia o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva.

"Temos intensificado bastante a fiscalização", responde Vitore Maximiano, secretário nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). "Não é só com voluntarismo que conseguiremos vagas qualificadas. É importante que as comunidades tenham um espaço digno. É muito sério o acolhimento de pessoas que estão às voltas com a dependência química." Entre 2006 e 2007, foi feito o último grande levantamento de entidades que atendem dependentes no Brasil. Foram encontrados 9.503 serviços governamentais e não governamentais.

O governo paulista também aposta nas comunidades como um de seus principais focos para tratamento de usuários. O Programa Recomeço, carro-chefe da política estadual, prevê o repasse de dinheiro a essas entidades. "Temos 1,2 mil leitos de desintoxicação e estamos chegando a mais de 2 mil leitos de comunidades terapêuticas. Esses são os dois eixos do Programa Recomeço: o sistema médico de tratamento e o sistema terapêutico de recuperação", explica Ronaldo Laranjeira, coordenador do Recomeço. "A gente espera que vá atingir o Estado como um todo."

Uma crítica comum sobre o tratamento nas comunidades terapêuticas é o preço. Algumas chegam a cobrar mais de R$ 20 mil por mês, mas, em média, com R$ 3 mil é possível achar vaga em uma unidade séria no interior. Só agora Estado e governo federal passaram a pagar leitos nessas unidades, via repasse de verbas às comunidades. A União mantém dez unidades de acolhimento em São Paulo e pretende chegar a 70 até 2015, com um investimento de R$ 4,8 milhões. Também prevê mais R$ 1,8 milhão em 382 leitos de enfermaria especializada. "No âmbito do Crack é Possível Vencer, para atividades mais simples, que não demandam a instalação de equipamento, como o financiamento de comunidades terapêuticas, conseguimos avançar. Até meados de 2013, não tínhamos nenhuma vaga financiada. Hoje, temos 6.500 em todo o País e a meta de contratar 10 mil até o fim de 2014", revela Maximiano.

Na pesquisa da Fiocruz sobre o perfil dos dependentes, um dado chama a atenção: a gratuidade do serviço é o principal fator considerado por quem busca atendimento na rede pública . "Qual política precisa no Brasil? A do tratamento gratuito", defende o coordenador de Políticas sobre Drogas de Campinas, Nelson Hossri. A cidade mais populosa do interior paulista foi a primeira a ter os cartões Recomeço no Estado – já recebeu 200 cartões e espera chegar aos 500.

Pioneiro. Primeira comunidade terapêutica aberta no Brasil em 1978: referência no tratamento

Na Fazenda do Senhor Jesus, em Campinas, primeira comunidade aberta no Brasil, em 1978, falta vaga para tanta procura. O Estadão passou um dia em suas duas unidades. Afastada da cidade, a fazenda é cenário do primeiro momento da internação, que dura seis meses. Nela, o objetivo é fazer o dependente interromper o uso do crack e estabilizar o organismo para que reaprenda a viver sem a droga. O paciente pratica atividades laborais, como cuidar da roça, limpar ambientes e cozinhar a própria refeição. Visitas só são permitidas nos fins de semana e há horários e regras fixas, além de terapia, atividades físicas e muito contato com gente com problemas semelhantes. "Falo para eles que o melhor terapeuta aqui é um falando com o outro, não eu", diz o padre Haroldo Rham, responsável pela comunidade. Adorado pelos internos, ele é saudado sempre com o cumprimento "Alegria, padre!".

Na outra unidade, na área urbana de Campinas, ocorre o segundo momento do tratamento, no qual o dependente fica três ou quatro meses. Nessa etapa, os focos são a reinserção social, a reaproximação com a família e o retorno ao emprego. "Em resumo, se pode curar um craqueiro com motivação, amor, 12 passos, tempo, tempo, tempo conosco e bom exemplo", ensina Rham.