Quem trata precisa atrair usuário como traficante

Especialistas, autoridades e usuários de droga ouvidos pelo Estadão garantem que há cura para os dependentes. E a maioria quer sair do vício, ao contrário do que se pensa. Mas é preciso que seja dada a eles oportunidade de acesso ao tratamento completo em suas três etapas: desintoxicação, na qual a pessoa cessa ou reduz o uso da droga; estabilização, na qual aprende a lidar com a fissura, a evitar recaídas e a voltar a ter prazer sem a droga; e reinserção social, na qual retoma vínculos com família e sociedade. Uma realidade possível geralmente apenas para quem pode pagar.

"Você tem de entender que não está trabalhando com pessoas comuns ou ordinárias, está trabalhando com pessoas que amam drogas, crack, muito mais do que as crianças, muito mais do que dinheiro, muito mais do que a família. A única coisa que eles têm no cérebro é crack, crack, crack. Mulheres vendem sexo a cada meia hora para pegar mais e mais crack na rua. Homens roubam qualquer coisa para ter crack", adverte o padre Haroldo Rham, com a experiência de quem trabalha há décadas com dependentes.

Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que oito em cada dez craqueiros desejam tratamento. Entre os que procuraram ajuda, os principais motivos para acessar a rede de saúde foram a oferta no local de serviços associados à assistência social, como alimentação, banho e apoio para conseguir emprego e escola.

Esses serviços, no entanto, são insuficientes segundo os pesquisadores da Fiocruz. "Talvez devido ao fato de não reunirem essas características de maneira integrada, no período de realização da pesquisa observou-se um baixo acesso aos equipamentos disponíveis", informam.

A dificuldade em fazer com que dependentes de crack busquem unidades da rede pública e completem o tratamento é um relato comum entre gestores e profissionais de saúde e assistência social. "A gente tem de aliciar essas pessoas igual traficante. Nosso discurso não tem de ser só da medicação, de grupo. A gente tem de dar coisa bacana. Tem de dar algo para o jovem, nem que seja grafitagem. Se a gente não tiver uma linguagem superbacana para atrair, como o traficante faz, a gente perde essas pessoas", ensina Janice Megid, diretora do primeiro hospital público aberto no interior para desintoxicação e internação breve de dependentes.

No Brasil, os tratamentos disponíveis via Sistema Único de Saúde (SUS) para usuários de crack são os mesmos ofertados às demais dependências químicas (como álcool, maconha e cocaína) e podem ser divididos em três tipos principais: o clínico, feito em hospitais psiquiátricos ou clínicas especializadas (só existe uma do Estado no interior, em Botucatu); o psicoterápico, feito nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e em ambulatórios especializados, consultórios de rua e comunidades terapêuticas (com internação); e o de mútua ajuda, feito em grupos como Narcóticos Anônimos.

Em Campinas, cidade com minicracolândias onde a droga já circula desde o início dos anos 1990, o responsável pela Coordenadoria de Prevenção ao Uso de Drogas, Nelson Hossri, é um advogado que se especializou no tratamento de viciados. Desde 2009 no cargo, ele atribui as dificuldades aos efeitos do crack no cérebro. "O maior desafio para nós, especialistas em dependência química, é encontrar o tratamento certo. É muito difícil, é uma droga devastadora."

"A maior dificuldade de parar de usar o crack é quando você tem de aceitar que é um dependente e precisa de ajuda. Sozinho você não consegue, é muito difícil. Sozinho você tenta uma, duas, três, quatro, cinco vezes... Quantas vezes você tentar não vai conseguir sozinho", conta Ediel, de 28 anos, viciado em crack há 10, internado em Botucatu.

Ajuda. Ediel, de Botucatu, há oito dias internado, diz que sem acompanhamento viciado tem pouca chance

O Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos – Nida, na sigla em inglês – criou uma cartilha com os 13 princípios para o tratamento efetivo da dependência química. O item 1 estabelece que "não há um único modelo de sucesso para todos os indivíduos". Outro ponto importante é o que estabelece que a desintoxicação é só a primeira fase da recuperação.

A cartilha, seguida pela Senad em sua política de enfrentamento ao crack e parte da base de dados do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid), do Ministério da Justiça, exemplifica ponto a ponto as bases para um tratamento de sucesso, estabelecendo como premissa a necessidade de um trabalho interdisciplinar entre saúde, assistência social, educação, emprego e renda, justiça e segurança pública.

Com estrutura de serviços públicos deficitária e equipes despreparadas, prefeituras do interior paulista têm enfrentado dificuldades para oferecer esse ciclo de tratamento completo. Um dos pontos mais frágeis é a aceitação social do dependente, que acaba estigmatizado como "noia". "É preciso mobilizar a sociedade para que o aceite. Ele pode ter a maior boa vontade, mas, quando chega lá fora, se não encontra escola para estudar, se as relações são muito endurecidas, se não consegue trabalho, vai viver uma condição de isolamento. Temos de trabalhar para que a sociedade tenha de novo continência com essa pessoa", explica Janice, da clínica de Botucatu que servirá de exemplo a outras sete que serão construídas pelo Estado no interior.





Longe de casa. Mesmo tendo família e onde morar, dependentes têm dificuldade de interromper o vício

A unidade funciona em um prédio erguido especificamente para cumprir seu papel interdisciplinar, em uma área da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp). No local, além de quadra e piscina, há churrasqueira e mesa de bilhar. "Precisamos dar a ele (dependente) uma simulação da vida real, de ambientes que podem lembrar o vício, e mostrar que é possível se divertir sem usar droga", explica Janice. Essa simulação serve de teste para as possíveis "tentações" que encontrará depois da alta, os chamados gatilhos.

Botucatu é referência para outras pequenas cidades do entorno, também com alto problema com crack e quase nenhuma estrutura especializada. A inauguração da clínica do Estado, em novembro, pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), atraiu mais dependentes à região. À espera de vaga ou após a alta, alguns de fora acabaram ficando, dando maior visibilidade ao problema, conta o prefeito de Botucatu, Jorge Cury (PSDB). "É um problema de sociedade. Porque é um problema inclusive de aceitação desse indivíduo no seu retorno. O Estado tem uma responsabilidade, mas a sociedade também tem."

"Curar (a dependência) não é impossível, mas é muito difícil. Porque o crack dá muito prazer e passa rápido. O craqueiro entra numa depressão terrível e quer mais imediatamente. Aí ele pega e vai destruindo milhares de neurônios e a vontade dele é muito pobre. Nós usamos motivação", explica o padre Haroldo Rham. Em 1978, quando ele abriu em Campinas a primeira clínica para tratamento de dependentes químicos do Brasil, a Fazenda do Senhor Jesus, o crack ainda nem existia e os maiores problemas eram álcool e cocaína.

Rham e o frade alemão Hans Stapel, o frei Hans, que em 1983 inaugurou a Fazenda Esperança, em Guaratinguetá, visitada pelo papa Bento XVI em 2007, são as maiores referências do País em recuperação de usuários de drogas. Suas comunidades terapêuticas são procuradas por gente de todo o País e por muitas famílias do interior paulista. "O que ajuda é o tempo, só o tempo. Porque (na fazenda) a pessoa não pode usar crack e os neurônios começam a se reestruturar. Outra coisa muito importante é o amor: a auto-estima deles é muita baixa."

Portas abertas e vontade própria

Diferentemente da internação em comunidades terapêuticas ou hospitais nos quais o dependente precisa ficar longe de seu ambiente de convívio para interromper o uso do crack e se reorganizar física e psicologicamente, o serviço ambulatorial preconiza que o paciente seja tratado voluntariamente, morando em casa e fazendo visitas à unidade especializada para consultas, terapias, atividades e medicação (quando necessária).

Esse sistema é adotado como principal política de atenção aos dependentes pelo governo federal e defendido por especialistas que rejeitam a internação contra a vontade. Na rede pública de saúde, são os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) que fazem esse serviço. Eles foram as unidades mais procuradas, segundo pesquisa da Fiocruz. Em cidades fora dos grandes centros, essa prevalência é maior. O mesmo levantamento mostra que, entre os serviços de internação, as comunidades terapêuticas foram os serviços especializados mais acessados pelos dependentes, sendo mais buscadas nas capitais que no interior.

Na prática, o que difere os dois tipos de serviço não é o grau de eficiência da abordagem, mas as especificidades de cada caso. O tratamento ambulatorial dos Caps AD serve para quem ainda consegue ficar curtos períodos em abstinência. Já as comunidades terapêuticas (e demais unidades de internação) são mais indicadas a quem faz uso abusivo e precisa de suporte médico e terapêutico para parar.

O vício tem cura, mas não há medicamento para isso. A agência americana Food and Drug Administration, por exemplo, nunca aprovou nenhum remédio para tratamento específico de dependência de crack. Drogas como anticonvulsivos, antidepressivos, estabilizadores de humor e antipsicóticos são usadas para amenizar quadros de desconforto durante a interrupção do uso, mas sem evidências científicas de eficácia. "A psiquiatria da dependência química avançou bastante, mas o grande problema é as pessoas terem acesso a esse tratamento. Tecnicamente, há novos medicamentos, novas técnicas psicológicas. Se a pessoa receber o tratamento adequado, aí pode se beneficiar dele", afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira.

O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, alerta, no entanto, para os riscos de uma política sem diretrizes claras. "Enquanto não se tiver a compreensão de que é de alta complexidade e se investir como sendo de baixíssima complexidade, não vamos ter resultado. Vamos adotar um paliativo, fazer higienização. Tirar as pessoas das grandes cidades, prender, isso é uma ação higienista, mas não dá resultado para a questão da saúde. A pessoa que pede para se tratar hoje e é atendida de imediato dá uma resposta. Se leva uma semana, 80% vão embora, desistem."

Vício que faz filho tentar matar a mãe

O ex-professor de Física e bancário aposentado Ituhico Fugisawa, de 69 anos, passou dois terços da vida tratando de dependência química, mesmo sem nunca ter colocado droga alguma no corpo. O filho se envolveu com cocaína, depois com crack e nunca mais se livrou do problema. Roubou, foi preso, tentou matar a mãe com dois golpes de foice durante um ataque de loucura provocado pela droga e há 20 anos deixou sua casa, em Registro, a capital do Vale do Ribeira. "Aos 7 ou 8 anos, ele começou a apresentar certos comportamentos. Eu achava que era típico da idade. Mais tarde, com 16, roubou meu carro e foi praticar assalto em Cananeia. Voltou dois dias depois, com o carro danificado. Para justificar, confessou que estava envolvido com drogas."
Codependente. Ituhico passou mais de 30 anos da vida tratando o vício do filho, que já tentou matar a mãe

Uma das regiões mais carentes do Estado, Registro tem alto problema com crack e nenhum Centro de Apoio Psicossocial (Caps) especializado – só Caps simples. Toda sexta-feira, seu Ituhico participa de terapia de grupo com outros parentes e amigos de usuários que no dia a dia vivem o inferno de ter alguém tão próximo refém das drogas. E adoecem junto. São os codependentes. O Estadão foi a uma dessas reuniões e encontrou 12 deles em busca de tratamento.

"Foram 18 internações, muitas recaídas, muitas reinternações, muitos crimes, assaltos, tráfico. Quando disse que ele não ia mais voltar para casa, ele foi para Curitiba e ficou 11 anos longe. Desses, em oito esteve na prisão", conta seu Ituhico, o precursor do grupo de mútua ajuda Amor Exigente, criado em Registro em 1996.





Pobreza. Capital do Vale do Ribeira, região mais pobre do Estado, luta por unidade para drogados

"Para meu filho, eu já não tenho mais esperança. Fiz tudo o que pude. Hoje minha preocupação é com meu neto, filho desse meu filho, que nós criamos e agora estuda fora e conheceu a droga. Meu medo é que essa experiência evolua para o vício."

A estimativa é de que, para cada dependente de crack, existam quatro codependentes. "São pessoas da família, do trabalho, empregados e amigos", explica padre Haroldo Rham.

No mesmo grupo de seu Ituhico, a dona de casa Mércia Calasans, de 44 anos, não consegue segurar o choro de desespero. "Minha semana não está sendo boa. Peço a Deus dias melhores... A noite foi péssima, ele chegou em casa tarde da noite, esteve aqui (Caps) ontem e depois nem foi para casa, ficou por aí. Gritando comigo, ameaçando, colocando isqueiro para botar fogo na casa... Não estou aguentando mais", diz, desabando em lágrimas. "Falei para ele: 'Pega suas coisas e suma da minha casa. Tô cansada, com o peito cansado e você chega a essa hora tirando o sossego'. A irmã chamando ele de 'noia', de psico... Eram 3 horas da manhã, liguei para minha mãe e falei que ia sair de casa", continua, revelando que não chamou a polícia por dó e por medo de que o filho de 26 anos volte para a cadeia. "Faz 12 anos que eu vivo nessa vida."