Geografia da droga: um desafio sem dimensão

Passados 23 anos da primeira apreensão de crack em São Paulo, não há um levantamento detalhado e confiável que dimensione o universo de usuários da droga no interior paulista – os governos estadual e federal estimam entre 350 e 400 mil pessoas no Estado, a unidade da federação mais rica, populosa e desenvolvida, com 43,6 milhões de habitantes. Enquanto isso, a "raspa da canela do capeta" avança por todas as regiões e faz do enfrentamento ao problema um dos principais desafios para cidades médias e pequenas.

O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, admite que a situação é bastante grave. "O uso do crack surgiu mais acentuadamente nas grandes cidades e, especialmente, nas metrópoles. Mas temos notado e percebido que o crack também é droga presente em pequenos e médios municípios", afirma.

Ibitinga é o melhor exemplo entre os rincões do sossego de como o consumo desse derivado da cocaína pode evoluir de maneira similar a uma epidemia e fazer do assunto prioridade de governo. Uma das 29 estâncias turísticas paulistas, a cidade com 53 mil habitantes, encravada na região central do Estado, recebe até 200 mil visitantes em suas feiras de confecção – principal fonte de renda dos moradores e base da economia local.

A capital nacional do bordado está no grupo de 194 cidades paulistas que declararam ter alto problema decorrente do consumo de crack para o mapa feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).

"A sensação é loca (sic). Fica encanado, a gente paga para ter medo. Não dá futuro para ninguém, né cara", diz Felipe (nome fictício), de 19 anos, dependente desde os 15. Após seis meses internado, ele saiu poucos dias antes da entrevista e foi direto para a "biqueira" (ponto de venda de droga). "Comprei 20 gramas de crack. Estou aqui faz cinco dias virado (sem dormir)", conta, em uma área de Ibitinga conhecida como cracolândia – referência ao local de venda e consumo da droga a céu aberto mais conhecido do País, na Luz, em São Paulo.





Capital do bordado. Felipe, de 19 anos, há cinco dias sem dormir na cracolândia de Ibitinga

A reportagem esteve na cracolândia da capital do bordado duas vezes. Em ambas, encontrou cerca de 20 usuários extremamente magros, de olhos estalados e muito desconfiados, em um vaivém frenético. "O que vocês querem?", questiona um rapaz bem vestido, na casa dos 20 anos, sentado em uma charrete puxada por um cavalo, ao observar a chegada dos jornalistas no meio da tarde.

Em sua configuração caipira, a "cracolândia" de Ibitinga funciona em um matagal atrás do cemitério, onde um dia foi um lixão. O terreno fica ao lado de dois bairros pobres, populares pontos de venda de drogas. Após saber o motivo da presença da reportagem, o rapaz da charrete, aparentemente o "dono da boca" (nome usado para o traficante com ponto fixo de venda), autoriza o trabalho. "Pode filmar", diz, em tom impositivo, apontando um usuário. "Não vai filmar minha cara", adverte Lobão (nome fictício), de 37 anos, aparência de 50, enquanto se prepara para fumar. Ele usa boné, carrega em uma das mãos isqueiro e lata que serve como cachimbo e na outra uma pedra. "Fui gerente de grande empresa, andei em carrão e hoje não tenho nada. Vendi tudo."

Lobão e Felipe fazem parte de uma população aparentemente invisível aos milhares de turistas que vão a Ibitinga e outras estâncias turísticas do Estado, mas escancarada para quem quiser ver. "É quase uma cracolândia. As pessoas identificam o bairro como sendo delas. Todo mundo meio que respeita", conta Talita Valle, coordenadora do Núcleo de Saúde Mental da prefeitura, porta de entrada na rede pública para dependentes em busca de tratamento.

"Está em todo lugar: na classe baixa, na classe média, na classe alta. Conheço médico, advogado, pessoas grandes que usam crack", conta Daniel, de 47 anos, interno que virou monitor da única comunidade terapêutica (uma das modalidades para tratamento de dependentes) local. "Fui o terceiro ou quarto traficante a vender crack em Ibitinga", conta. Antes, consumia a maconha e a cocaína que vendia sem que o uso interferisse nos "negócios criminosos". Com o crack, virou abusador – quem faz uso compulsivo da droga – e em quatro anos perdeu a família e todos os bens. "O crack tem essa característica de causar dependência muito mais rápido e deixar a pessoa muito vulnerável do ponto de vista social", explica Talita.

A comunidade terapêutica onde Daniel trabalha foi aberta no ano passado pela Igreja Batista para atender à demanda regional, mas rapidamente ficou lotada de usuários da cidade – 90% dos internos estão ali por causa de crack. "Vamos abrir uma nova ainda neste ano", explica o pastor Jorge Torres.

O prefeito de Ibitinga, Florisvaldo Fiorentino (PSDB), diz priorizar o tema. "Com relação ao crack, é óbvio que é preocupante em Ibitinga, como é no Estado e em todo o País. Ibitinga não é uma cidade diferenciada. Também existe o problema aqui e ele é crescente, como no Estado todo."

Em um terço das cidades, o problema já é alto

No total, 556 municípios do Estado declararam ter o crack como droga presente, em levantamento realizado em 2012 para o Observatório do Crack. O mapa foi criado há três anos para servir de termômetro para gestores no País. Nele, as administrações apontam se a droga traz alto, médio ou baixo problema para a cidade, ou se ela não está presente.

"Mais de 70% das cidades de São Paulo informaram ter problemas sérios com crack que impactam na gestão municipal. Falta proteção nas fronteiras, por onde entra a pasta da cocaína, que é a base para produção da droga, e as prefeituras não estão preparadas para lidar com essa situação complicada", afirma o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski.

Considerado quando surgiu uma droga de regiões pobres e pouco desenvolvidas, o crack hoje aparece como problema em municípios ricos e pobres, desenvolvidos ou não. Entre as cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) da lista estão Barra do Turvo, Boa Esperança do Sul, Borebi, Eldorado, Guaraci e Itapura. No lado oposto desse ranking constam Bauru, Ilha Solteira, Ribeirão Preto, São Carlos e Taubaté, todas com IDH-M muito alto.

Estatísticas sobre dependentes causam discussão

Embora dados sobre o universo do crack sejam considerados essenciais para um planejamento eficaz de enfrentamento ao problema, as estimativas sobre os números de viciados no Estado são de pesquisas feitas em grandes cidades, o que torna desconhecida a realidade vivida nos pequenos municípios e nas áreas rurais, onde o drama toma proporções maiores por causa da falta de estrutura e de políticas públicas voltadas a esse tipo de dependência. O último estudo que trouxe dados específicos sobre o Estado é o 2.º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), de 2012, feito pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad) – órgão ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No levantamento nacional, uma subamostragem específica para São Paulo revelou que 165 mil pessoas haviam usado crack um ano antes da consulta e 486 mil, usado a droga ao menos uma vez na vida.

Foram sorteadas na pesquisa 40 cidades paulistas – quatro delas visitadas pela reportagem: Campinas, Campos do Jordão, Martinópolis e Ribeirão Preto – como amostra para obter um resultado representativo do Estado.

Para o governo federal, os dados mais confiáveis que norteiam a política nacional de combate à droga são da Estimativa do Número de Usuários de Crack e/ou Similares nas Capitais do País, divulgada em setembro. Eles apontam a existência de 350 mil usuários frequentes da droga em São Paulo, aplicando-se o porcentual verificado nas capitais.

Considerado o mais recente e completo levantamento feito sobre o tema no País, a pesquisa abordou também a população invisível para estudos do tipo: aquela que está nos locais de consumo e acaba não aparecendo em amostragens domiciliares. Foram entrevistadas 25 mil pessoas nas capitais e grandes cidades do País.

"Temos uma pesquisa recente que indicou uma prevalência de 0,8% da população brasileira (1,6 milhão). Estamos falando de quem faz uso regular do crack. Embora essa pesquisa reflita a prevalência das capitais, a nosso ver ela mostra um retrato do País. Em São Paulo, a média de uso estaria dentro da média nacional", afirma o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano. O estudo foi feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com pesquisadores da universidade de Princeton, nos Estados Unidos, para a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad).

Dependendo de como é feito o levantamento, no entanto, até os números oficiais podem divergir. Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, articulador da política antidrogas paulista, a quantidade de usuários de crack é maior. "Existe 1 milhão no Brasil – 40% no Estado de São Paulo", afirma.