Luciana Garbin
Henry Ford já era um dos homens mais ricos e famosos do mundo quando, em junho de 1937, fez uma proposta a Leônidas Borges de Oliveira, um paulista de Descalvado, tenente do Exército brasileiro. O pioneiro da indústria automobilística queria guardar em seu museu em Detroit os dois carros fabricados pela Ford que haviam transportado até os Estados Unidos não só Oliveira como seus dois companheiros brasileiros – o observador Francisco Lopes da Cruz e o mecânico Mário Fava. E pagaria por eles o valor que fosse.
Apesar da oferta tentadora, o diplomático Oliveira se mostrou irredutível. O negócio não seria possível. Era seu dever, como comandante da Expedição Automobilística Brasileira pela Estrada Pan-Americana, levar de volta a seu país os dois automóveis modelo T que haviam desbravado 27.631 quilômetros de estradas, picadas, matas, rios e riachos de 15 países nas três Américas, incluindo partes da Cordilheira dos Andes e da Floresta Amazônica.
A aventura começara mais de nove anos antes, em 16 de abril de 1928, quando o trio partiu do Rio de Janeiro rumo aos Estados Unidos. Oliveira era o chefe da expedição, Lopes da Cruz, o responsável pelos equipamentos de navegação e Fava, o responsável pelo funcionamento dos dois Fords de quatro portas, batizados com os nomes de Brasil e São Paulo.
Imbuídos do ideal do Panamericanismo, em voga na época, e estimulados pela política do então presidente Washington Luís, cujo lema era “Governar é abrir estradas”, os três conquistadores tinham como missão descobrir, projetar e abrir a rota onde futuramente seria construída uma rodovia para interligar as Américas.
“Nenhum dos três tinha noção da distância e das dificuldades que enfrentariam nesse período, mas acabaram fazendo o maior projeto de engenharia do século 20”, resume, entusiasmado, José Roberto Faraco Braga, o Beto Braga, empresário brasileiro que descobriu a saga dos expedicionários por acaso em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, e lançou em 2011 o livro O Brasil Através das Três Américas (Canal 6 Projetos Editorais). O nome do livro foi o mesmo dado por Oliveira a seu diário.
A partida é descrita pelo comandante da seguinte maneira: “As rodas do automóvel rodaram pela terra e nós, sobre o frágil aparato, nos revestimos com a seriedade de três conquistadores, pois assim chegaram à América nossos avós a bordo de caravelas, vencendo o mar adverso e superando as calamidades do coração”.
Boa parte do caminho foi aberta a pás, picaretas e bananas de dinamite. Oliveira saiu do Brasil com cartas de recomendação do embaixador dos Estados Unidos, Edwin Morgan, e do ministro das Relações Exteriores do Brasil, Octávio Mangabeira. Ao chegar a um novo país, o trio costumava ir até o quartel local recrutar mão de obra. Militares, policiais e civis ajudavam a abrir caminhos – alguns por vontade própria, outros recrutados pelos exércitos locais.
“Todos os cidadãos tinham de contribuir com três dias por ano para a conservação dos caminhos. Os soldados não só colaboravam, como também recrutavam civis para trabalhar. Em alguns locais foram formados verdadeiros batalhões, com dezenas de homens”, conta Braga. Trilhas incas e rotas desbravadas no passado por colonizadores espanhóis eram anexadas ao traçado.
Pelos 15 países por onde passaram, os expedicionários foram tratados como visitas ilustres. Como jornais costumavam avisar de sua chegada com dias de antecedência e apregoavam com entusiasmo o progresso que a rodovia poderia trazer, uma multidão costumava recepcioná-los. Assim, o trio que entre uma cidade e outra enfrentava todo tipo de percalço – de frio a acidentes, de mosquitos a ataques de índios e animais, de doenças a falta de combustível, pneus e peças – adotava por alguns dias roupa social, charutos e pose de celebridade em coquetéis e jantares oferecidos pelos presidentes locais e por várias outras autoridades. Neles, muitas vezes também recebiam ofertas de dinheiro e de apoio logístico, sobretudo manutenção para o carro e serviços de correio, telégrafo e confecção de mapas.
“Num momento atacados por mosquitos, malária, paludismo, eles tinham certeza de que não sobreviveriam; no outro, eram aclamados. Todos queriam que a rodovia chegasse à sua cidade, tinham ideia do progresso que o automóvel traria”, explica Braga. E como eles conseguiam os ternos para os encontros com autoridades? “Essa é uma verdadeira incógnita”, continua o escritor. “Impossível terem ternos em bom estado depois de cada etapa de viagem. As cidades dificilmente também teriam lojas com ternos prontos. O mecânico Mário Fava me contou que o terno que ele usou em Lima no Peru foi presente do embaixador brasileiro Vasco Leitão da Cunha. Pode ser que em outros países também tenham recebido trajes presenteados pelos diplomatas brasileiros.”
Em Washington, ponto final da expedição, Oliveira, Fava e Lopes da Cruz foram recebidos por ninguém menos que Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, a quem mostraram o mapa da Estrada Pan-Americana e apresentaram um plano para viabilizá-la financeiramente. Dele, receberam uma carta de reconhecimento à expedição. A foto do registro do encontro na Casa Branca até hoje pode ser acessada no site da biblioteca do Congresso americano.
Os brasileiros também se reuniram e posaram para fotos com os ministros Cordel Hull (Estado), Harry Woodring (Defesa) e várias outras autoridades pelo país. Em Cleveland, conseguiram uma autorização especial para dirigir assinada pelo “intocável” Eliot Ness, o agente que perseguiu o mafioso Al Capone. Na Ford Motor Company, além de receberem o tentador cheque em branco de Henry Ford e contarem em detalhes as aventuras da expedição, puderam conhecer em primeira mão a moderna linha de montagem do automóvel V8, um sucesso na época.
No total, após atravessarem as Américas, os três aventureiros passaram quase dois anos nos Estados Unidos. De Nova York, embarcaram de volta para o Rio de Janeiro com os dois Ford T. Após 20 dias de viagem, chegaram em 25 de maio de 1938 ao Rio de Janeiro. Então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha os levou para um encontro com Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio. Os expedicionários deram ao chefe do Estado Novo uma cópia do projeto da estrada e receberam uma homenagem: ruas do Rio de Janeiro ganhariam os nomes da terra natal de cada um dos três. Em Olaria, fica a Rua Bariri. Lá, no número 251, funciona o Estádio Antônio Mourão Vieira Filho, do Olaria Atlético Clube. Em Madureira, está a Travessa Descalvado e, no bairro de Praça Seca, a Rua Florianópolis. Muitas décadas depois, em 2014, Lopes da Cruz se tornaria também nome de rua em Mogi das Cruzes, onde viveu.
Em São Paulo, os expedicionários foram tema de reportagens e receberam convites para contar suas aventuras em entidades, como a Faculdade de Medicina e o Automóvel Club. Em 26 de outubro de 1938, o Estado noticiou: “O capitão Leônidas Borges de Oliveira, commandante da expedição que realizou o reide automobilístico Rio de Janeiro – Nova York, e que agora está em São Paulo, acompanhado dos outros dois expedicionários, realizará nesta capital, sob patrocínio do Automóvel Club do Estado de São Paulo, uma conferência, como fecho official desta útil e empolgante aventura, que durou dez anos”.
Com o passar dos meses, no entanto, a empolgação causada pela expedição foi perdendo força e os expedicionários tiveram de encarar uma nova vida após uma década viajando. Por indicação do marechal Cândido Rondon, Oliveira foi nomeado cônsul privativo do Brasil na Bolívia, cargo que ocupou por mais de 20 anos, até morrer. Braga conta que o projeto do tenente, na verdade, era conseguir um trabalho diplomático no México, onde esperava dar início à construção da estrada, mas acabou sendo mandado para um país bem perto do Brasil e bem mais longe dos Estados Unidos.
Já Lopes da Cruz e Fava rumaram para o Norte do País, onde ajudaram a abrir a Estrada Belém-Brasília. Morreriam sem nunca mais voltar ao exterior. Oliveira faleceu na Bolívia em 1965 e teve o corpo trasladado a São Paulo e enterrado no Cemitério da Consolação, como era seu desejo. Lopes da Cruz morreu em 24 de dezembro de 1966 em Mogi das Cruzes e Fava, no ano 2000, no Rio, 14 dias antes de completar 93 anos.
E por que os expedicionários acabaram no esquecimento? Braga levanta algumas hipóteses. “A comunicação era mais difícil nessa época. Eles receberam todas as homenagens quando voltaram, mas Oliveira foi nomeado cônsul na Bolívia e se afastou do Brasil. Os outros dois foram fazer outras aventuras. Além disso, apesar de ser a espinha dorsal da América, a Estrada Pan-Americana nunca teve importância para o Brasil. O trecho entre Corumbá e Santa Cruz de La Sierra, por exemplo, só foi inaugurado em 2012.”
Para o médico Erland de Oliveira Gonzales, filho do comandante Leônidas Borges de Oliveira, a aventura da Carretera Panamericana deveria ser tema de aulas. “Isso teria de estar nas escolas, é preciso ensinar aos jovens que três brasileiros abriram a estrada que liga as três Américas. Se você perde a memória, você perde a história, não tem nada que o oriente”, defende. “O legado que recebi de meu pai é de que nada é impossível. Basta ter determinação e criatividade para fazer as coisas. A essência de resgatar a história é valorizar o país.”
História foi redescoberta no hospital
O empresário e escritor Beto Braga descobriu a aventura da expedição da Estrada Pan-Americana em 1998, num hospital de Santa Cruz de la Sierra, cidade boliviana onde morava na época. Um de seus filhos havia machucado o braço e ele acompanhava a sutura do ferimento quando o médico que realizava o procedimento falou que seu pai havia feito uma viagem de Ford T, em 1928, do Brasil até os Estados Unidos.
“Eu contestei, disse que isso não era possível porque nem estrada existia naquela época. Não teria como chegar até lá passando por cordilheira, pântanos, sem posto de gasolina, loja de autopeças, borracharia”, diverte-se Braga. “Mas ele insistiu na história e falou que tudo estava documentado num diário escrito pelo pai.”
Braga quis ver o material e, no dia seguinte, o médico Erland de Oliveira Gonzales lhe mostrou as anotações de viagem feitas por Leônidas Borges de Oliveira até o México. “Para minha surpresa, não só era verdade, como era a história do projeto da Carretera Panamericana”, lembra o escritor. Desde então, ele nunca mais abandonou a história. “Não me conformei em uma história como essa ter sido esquecida. Está nos arquivos nacionais de praticamente todos os países da América, em jornais da época. O projeto da maior obra de engenharia do século 20 foi façanha de brasileiros.”
“Falei da viagem no hospital e ele não acreditou”, lembra Gonzales, filho de Oliveira, de 67 anos, que hoje vive na zona sul de São Paulo. “Mas depois comprovei tudo com o diário, ele saiu atrás da história.”
Após se embrenhar na leitura do diário, Braga passou a procurar pistas dos outros dois expedicionários e seus descendentes. Em março de 1998, conseguiu encontrar o mecânico Mario Fava com 91 anos de idade. Lúcido e bem-humorado, o velho expedicionário lhe contou que, quando era menino em Bariri, a família tinha em casa uma máquina americana de beneficiamento de arroz e uma revista que falava dos Estados Unidos e de Thomas Edison. Isso despertou seu interesse pelo país. Quando aos 21 anos lhe disseram que a viagem terminaria em Nova York, ele pegou sua malinha de ferramentas e algumas peças de roupa e se juntou à expedição.
Fava cedeu ao escritor vários documentos e fotos da viagem de uma década. No ano seguinte, em 25 de dezembro de 1999, o mecânico foi visitar Braga em Bauru com dois irmãos. Dezesseis dias depois, em 10 de janeiro de 2000, faleceu na cidade do Rio de Janeiro. Solteiro, não deixou filhos.
Para Braga, Fava foi o grande herói da expedição. Chamado por jornais de países por onde a expedição passou de “intrépido mecânico”, ele muitas vezes usou do improviso para fazer os dois Fords T funcionarem até em caminhos quase intransponíveis. Na falta de óleo, derretia gordura de porco selvagem para lubrificar motores e engrenagens. Sem gasolina, usou como combustível uma mistura de querosene de iluminação pública com chicha – um tipo de aguardente de milho produzido pelos indígenas.
“Ele foi o precursor do álcool combustível”, diz Braga, lembrando que em 1925 o então presidente Arthur Bernardes encomendara à Estação Experimental de Combustíveis e Minérios, um órgão governamental de pesquisa, o projeto de desenvolvimento de motores movidos a álcool. Coube ao engenheiro Heraldo de Souza Mattos coordenar o projeto que usou justamente um Ford T.
Gonzales também se encontrou com o expedicionário que acompanhou seu pai na aventura. “Foi muito emocionante. Lembro de ter perguntado: ‘Seu Mario, como era meu pai?’ Ele respondeu: ‘Olha, seu pai foi um grande homem, um grande companheiro, porém um doido de pedra, um maluco, porque só um doido de pedra faria o que ele fez’.”
Com os documentos de Fava nas mãos, Beto Braga intensificou as pesquisas em jornais da época e na internet. Após oito anos de trabalho, lançou em 2010 o livro O Brasil Através das Três Américas (Canal 6 Projetos Editorais) em versões bilíngues – português/ espanhol e espanhol/ inglês. Uma das pessoas que participaram da noite de autógrafos foi Leonor Camargo da Cruz Ruiz, a filha de Lopes da Cruz.
“O livro foi a maneira que encontrei para resgatar essa página perdida na história das Américas e permitir a historiadores, amantes do automobilismo, aventureiros e público em geral que conheçam a história desses três homens que lutaram pela união dos países americanos por meio de uma rodovia”, diz Braga. “Propor ir de carro do Rio a Nova York naquela época era como falar que ia para a Lua de bicicleta. O automóvel estava só começando, tanto que gerou a necessidade de se fazer uma estrada.”
Projeto surgiu do sonho panamericano
A expedição dos três brasileiros foi consequência de um sonho: unir os países da América, por meio de cooperação econômica, cultural e militar. Por trás estavam também interesses comerciais, sobretudo dos Estados Unidos. Em 1889, foi realizada em Washington a primeira de uma série de conferências panamericanas que se estenderiam até meados do século 20 e terminaria com a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em 1923, teve lugar no Chile a 5.ª Conferência Internacional dos Estados Americanos e nela surgiu o plano de construir uma grande rodovia interligando os países. Em 1925, em Buenos Aires, foi realizada a 1.ª Conferência da Rodovia Panamericana, na qual a construção finalmente foi aprovada.
“Os conceitos estavam ligados. O Panamericanismo tinha como meta unir os países e o jeito que se via na época para essa união era por rodovia”, explica o escritor Beto Braga. “Anos depois, em 1926, Washington Luís se elegeria presidente da República do Brasil justamente com o lema ‘Governar é abrir estradas’.” Era o tempo também dos raids automobilísticos – em 1908, por exemplo, num Brasier 16hp, o Conde de Lesdain havia sido o primeiro a viajar do Rio de Janeiro a São Paulo num automóvel. Em 33 dias, percorreu 700 quilômetros – ainda não existia estrada entre as duas cidades e o caminho foi bem mais comprido do que o atual, pela Rodovia Presidente Dutra. Antes dela, em 1928, seria inaugurada a primeira estrada Rio–São Paulo. Foi exatamente no ano em que começou a Expedição pela Estrada Pan-Americana.
Mesmo após a aprovação oficial de seu projeto, em meados dos anos 1920, no entanto, ele ainda era considerado impossível. Até que o tenente Leônidas Borges de Oliveira entrou na história com a missão de provar que ela era sim viável e convidou para a empreitada o oficial da Aeronáutica Francisco Lopes da Cruz, amigo que sabia tudo de engenharia. Quando a dupla passou por Pederneiras (SP), o mecânico Mário Fava, que sonhava em conhecer os Estados Unidos, se ofereceu para acompanhá-los na viagem.