Jonne Roriz/Estadão

Disparada dos preços reduz o padrão de vida dos brasileiros

Bianca Pinto Lima &
Márcia De Chiara

Bens e serviços sobem acima da renda em 2015 e trabalhador sente a perda do poder de compra; até animais de estimação estão comendo menos

Confira como a inflação afeta o consumo.

A economia brasileira enfrenta nesse ano uma combinação nefasta: inflação de dois dígitos com recessão. Até dezembro, a expectativa é que a atividade dê marcha à ré e caia mais de 3%, com a inflação ultrapassando os 10%. É um salto de quatro pontos em relação ao aumento do custo de vida registrado no ano passado (6,41%). A última vez que a inflação bateu dois dígitos foi em 2002, mas nesse ano não houve recessão.

LEIA A ANÁLISE: O dinheiro perde valor A disparada dos preços - puxada por choque tarifário, desvalorização do real e escalada dos serviços - provoca um desconforto no padrão de vida das pessoas. "Os brasileiros ficaram mais pobres este ano, tanto pelo aumento da inflação como pela retração da atividade", afirma o economista Heron do Carmo, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e um dos maiores especialistas em inflação.

Ele observa que a inflação combinada com recessão tem um efeito devastador: faz com que as pessoas se sintam mais desconfortáveis, afeta a confiança de consumidores e tem reflexos políticos. Esse desconforto já apareceu no carrinho do supermercado. Pela primeira vez nos últimos dez anos, as vendas do setor devem fechar no vermelho, segundo a Associação Brasileira de Supermercados. De janeiro a outubro, o recuo foi de 1,02%.

vidas inflacionadas

Brasileiros mudam a rotina e os hábitos de consumo

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Beatriz Barbosa
Carla Ornelas
Adriana Mendes
Alexandre Martim

Trocando marca e loja

Márcio Fernandes/Estadão

A empresária do setor de telemarketing Beatriz Barbosa, de 43 anos, casada e mãe de dois filhos, está trocando tudo para economizar. Nas compras do supermercado, não hesita em mudar de marca e de loja, desde que o ponto de venda ofereça uma boa oferta. “Antes eu era fiel à loja, mas por praticidade. Hoje, não.”

Na última compra, Beatriz trocou o detergente Bombril pelo Minuano e o suco em pó da marca Fit pela marca Mid. “A diferença no preço do suco é de R$ 0,30. Só aqui já dá uns R$ 10”, calcula, olhando para o carrinho e multiplicando pelo número de embalagens. A empresária também reduziu as idas ao supermercado com o objetivo de economizar. No entanto, notou que cada vez que vai às compras leva menos itens para casa e gasta mais.

Além de trocar a loja do supermercado e a marca dos produtos, Beatriz decidiu até trocar o local onde vai comprar o uniforme da escola dos filhos para o próximo ano. Ela descobriu que um short que na unidade da escola de São Paulo custa R$ 40, sai por R$ 15 na unidade da mesma escola que fica no interior do Estado. “Como tenho família no interior, vou comprar por lá.”

A freada no consumo é nítida no resultado de uma pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, que visita semanalmente 11,3 mil domicílios para aferir o volume de compras de uma cesta com 96 categorias - como alimentos, bebidas e itens de higiene e limpeza. No primeiro semestre deste ano, o volume consumido dessa cesta caiu 7,5% em relação ao mesmo período do ano passado e voltou para o patamar de cinco anos atrás. O desembolso, por sua vez, cresceu 0,5% no período, por causa da inflação.

Carrinho mais caro e vazio Variação das vendas nos supermercados acumuladas no ano em relação a 2014 e descontada a inflação*

* Vendas deflacionadas pelo IPCA


Evolução do volume de produtos e do gasto dos domicílios para uma cesta com 96 categorias em índice (Base fixa: 2006 = 100)

**Expectativa

Fonte: Abras e kantar worldpanel

"O brasileiro está gastando mais no supermercado e levando menos produto para casa", afirma a diretora da consultoria e responsável pela pesquisa, Christine Pereira. Ela observa que o desempenho negativo de três variáveis importantes para o cidadão - inflação, renda e emprego - está levando a uma racionalização generalizada do consumo de todas as classes sociais. De acordo com pesquisa da consultoria, 71% das famílias acreditam que seus gastos aumentaram em 2015 e 97% delas buscam alternativas para reduzir as despesas.

Em entrevistas qualitativas feitas pela consultoria nos domicílios pesquisados, Christine conta que foi constatado que as famílias reduziram despesas com comunicação e optaram por planos de celular pré-pagos, por exemplo.

O lazer fora de casa também encolheu. Segundo a consultora, mais de um milhão de pessoas deixaram de fazer as refeições fora do lar. As viagens de carro igualmente começam a perder força, afetadas pela alta do preço da gasolina, que já chega a 18,61% esse ano, segundo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O fluxo de veículos de passeio nas estradas pedagiadas do País aumentou apenas 0,6% em 2015 até outubro - ante um avanço de mais de 4% em 2014. “Houve uma boa desaceleração desse índice, que deve ir para o território negativo no ano que vem”, comenta a economista e sócia da Tendências Consultoria, Alessandra Ribeiro.

Crédito da foto: Hélvio Romero Os brasileiros ficaram mais pobres este ano, tanto pelo aumento da inflação como pela retração da atividade.

— Heron do Carmo

economista e professor da USP

Vida de cão. Uma revelação surpreendente da Kantar Worldpanel foi que rações industrializadas para cães perderam importância na cesta de compras e os animais passaram a comer comida caseira. "Até o cão foi afetado. É a primeira vez que as pessoas estão racionalizando o uso de ração", afirma a diretora. Ela explica que o consumidor continua oferecendo ração industrializada para o animal, mas intercala as refeições com comida caseira para economizar.

Em 12 meses até novembro, o preço da ração para cães subiu quase 5%, segundo o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da FGV, a metade do avanço registrado pelo IPC em geral. "A substituição ocorre não exatamente porque a ração ficou mais cara, mas porque o custo de vida apertou. E na lista de prioridades, a compra de alimentos para a família está em primeiro lugar", explica o economista André Braz, da FGV, responsável pelo IPC.

Renda encolhe Variação da renda do trabalho, INSS e Bolsa Família em relação ao ano anterior, descontada a inflação em porcentagem

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*Projeções

Fonte: dados do IBGE, elaborados pela Tendências Consultoria Integrada

O setor de serviços também sente a retração do consumo e deve fechar 2015 com uma queda próxima de 3%, a primeira desde 2012. Os itens relacionados às famílias são uns dos mais afetados e já acumulam dezesseis quedas mensais seguidas no volume de receitas. Mas, por enquanto, o recuo da atividade econômica não foi suficiente para derrubar a inflação do segmento, que tem alta de 8,34% em 12 meses até novembro, segundo os dados do IPCA.

Itens como motel (20,79%), psicólogo (10,71%) e alimentação fora de casa (9,67%) tiveram altas expressivas neste ano. “O reajuste dos preços administrados se perpetuou por toda a economia: do pãozinho ao cabeleireiro”, comenta o economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fábio Bentes. Mas os preços devem começar a arrefecer no ano que vem, segundo ele, com a forte deterioração do mercado de trabalho.

Receita dos serviços prestados às famílias Segmento já amarga 16 quedas seguidas variação ante igual mês do ano anterior

Fonte: IBGE

Já no varejo, a crise bagunçou o calendário de promoções, que se perpetuaram ao longo do ano e não apenas nas datas tradicionais. 2015 tornou-se, praticamente, um “black year”, com grandes descontos a todo tempo - a exemplo do que acontece na megaliquidação da última sexta-feira de novembro, a chamada “black friday”. O crédito mais caro e escasso, no entanto, também ajudou a limitar as compras.

“Em momentos anteriores, quando a situação apertava, o consumidor recorria a empréstimos e financiamentos. Se fizer isso hoje, será um péssimo negócio”, comenta Bentes. O economista calcula que, na média, a prestação de um empréstimo de R$ 1 mil subiu 14% nos últimos 12 meses. “O prazo encolheu e o juro subiu.”

Para 2016, as expectativas continuam sombrias e o brasileiro deve perder ainda mais poder de compra. Alessandra, da Tendências, prevê que a taxa de desemprego chegue aos dois dígitos, com a renda do trabalhador encolhendo 2%, em termos reais. “Esse cenário vai continuar deprimindo o consumo”, diz a economista. As promoções também devem permanecer fortes no próximo ano, com o varejo ainda sem forças para reajustar fortemente os preços. Alguma recuperação só é esperada em 2017, com uma ligeira melhora dos indicadores. Até lá, o jeito é manter o pé no freio, pesquisar preços e adaptar a rotina.

O dinheiro perde valor

Celso MingColunista de Economia do ‘Estadão’

A gente sempre tem a impressão de que os organismos que medem a inflação ou estão fazendo a conta errada ou estão afanando um pedaço da alta de preços. Quando passa no caixa do supermercado, qualquer dona de casa sai de lá com a certeza de que os preços que ela paga são mais altos do que o aumento do custo de vida publicado nos jornais.

É que a inflação nunca é a mesma para duas pessoas. Não há duas cestas de consumo iguais. Quem mora em casa própria, por exemplo, não tem despesa com aluguel. É compreensível que um professor universitário compre mais livros do que as pessoas comuns. Famílias com crianças pequenas têm muito mais despesas com escola, condução escolar e o que vem junto. Pessoas doentes gastam muito mais com médico e remédios. Em compensação, as despesas dos vegetarianos não aumentam tanto quando disparam os preços da carne.

A inflação, ou alta de preços ao consumidor, leva sempre em conta um cestão médio de consumo de uma determinada população. E a média nunca coincide com as necessidades e as despesas pessoa por pessoa.

Quem acha que inflação são as coisas aumentando de preço pode ter uma impressão tão errada quanto aquela que acha que é o sol que gira em torno da terra, e não o contrário. Inflação é quase sempre dinheiro perdendo valor. Tanto é assim que, ao longo de um tempo inflacionário, será preciso cada vez mais dinheiro para comprar a mesma coisa.

Há dois tipos de inflação, a inflação de custos, quando os preços aumentam em consequência de um fator físico (quando a seca derruba as safras, por exemplo). E a inflação de demanda, quando a procura por bens e serviços cresce mais depressa do que a oferta. No Brasil, quase sempre prevalece a inflação de demanda.

Como diz aquele ditado que vem desde os tempos de Troia: "Tem guerra, tem mulher no meio". Com a inflação no Brasil acontece quase sempre coisa parecida: Tem inflação, tem rombo nas contas públicas (déficit fiscal). A lógica é a seguinte: o governo gasta demais, os pagamentos excessivos do governo geram renda, a renda produz disparada da procura e, na ponta da cadeia, aparece a inflação.

Desse ponto de vista, a inflação é um processo de ajuste selvagem (darwiniano). Acontece sempre que a política econômica não reduz as distorções que produziram o déficit fiscal.

Uma das consequências desse ajuste selvagem é a de que a inflação atinge o poder aquisitivo das pessoas de maneira desigual. O povão, por exemplo, que vive da mão pra boca, sempre perde mais quando disparam os preços dos alimentos e da habitação. Como também tem pouca sobra de salário, não pode aplicar dinheiro no mercado financeiro, como os mais ricos, e, assim, não consegue defender-se, pelo menos em parte, da inflação. É por isso que os analistas econômicos sempre advertem que a inflação é o mais antidemocrático e mais injusto fator de ajuste.

É hipócrita e inconsequente o governo que afirma produzir políticas de grande interesse social quando, ao mesmo tempo, permite o estouro da inflação.

Como uma desgraça nunca vem sozinha, não é só a inflação que, no momento, está corroendo o orçamento do consumidor no Brasil. É também o desemprego. Basta que uma pessoa na família ganhe menos do que ganhava antes para que todo o orçamento familiar fique comprometido. Nessas condições, o ajuste selvagem ganha outra força.