Pode ser um megaevento que ocorre no deserto americano e deve chegar ao Brasil no próximo ano. Ou um desafio individual de viajar do Alasca à Antártica gastando quase nada. A ideia de ter uma experiência que não esteja atrelada ao dinheiro vem se renovando com a busca atual por desenvolver conexões humanas mais profundas.
Em Black Rock City, a cidade temporária construída no deserto para o Burning Man, não se usa dinheiro – ou cartão – para quase nada. As únicas coisas que podem ser compradas são gelo e café. Todo o resto deve ser trazido pelos participantes, que também costumam dar presentes aos outros. Neste ano, o evento reuniu cerca de 70 mil pessoas, numa região que ironicamente fica a oito horas de Las Vegas, capital mundial da ostentação.
O Burning Man nasceu em São Francisco, na Califórnia, em 1986, e foi transferido para o deserto de Black Rock quatro anos depois. A experiência é descrita como uma mistura de festival de música e contracultura, exposição de arte e sociedade alternativa.
“Aprender a conviver sem o dinheiro nos ensina valores reais”, diz o artista plástico Daniel Strickland, que frequenta o evento desde 2009. “Coloca todos na mesma página, com os mesmos direitos e poderes.” A conexão de Strickland com o Burning Man é tal que ele foi convidado a organizar a primeira edição brasileira, prevista para 2019.
O Tropical Burn deve ocorrer em junho, mas ainda está sem data ou local definidos. A produção será toda feita pela comunidade ‘burner’ brasileira. O evento vai seguir os moldes do americano. Isso vale tanto para os ideais quanto para a duração, de uma semana.
“A ideia é que os participantes tenham conexões mais significativas uns com os outros”, diz Dominique Debucquoy-Dodley, gerente de Comunicação do evento americano. “A expressão criativa pode ser feita e desfrutada sem a necessidade de ser vendida.”
O sociólogo e pesquisador Ricardo Visser, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que o dinheiro não é apenas um meio de troca: tem uma função psicológica no âmbito do indivíduo e das relações. “As pessoas estão tentando recuperar uma expressão pessoal que elas perderam pela dominância do dinheiro em todas as nossas relações”, afirma.
Quem participa do evento diz que a experiência é muito positiva. Professora de ioga, Christabel Lobo fez duas vezes o trajeto entre Dubai, onde vive, e os Estados Unidos para participar do Burning Man. Ela conta que o evento permite que as relações fiquem livres de influências materiais. A francesa Constance Lang faz coro. “O fato de não usar dinheiro libera um pouco o espírito. É uma dependência a menos.”
Viajando sem dinheiro
Foi também em busca de conexões que a finlandesa Eve Laakko, deixou seu país há pouco mais de dois anos para viver uma aventura longe do dinheiro. A professora primária largou seu emprego, comprou uma passagem de avião e partiu para o Alasca em 23 de agosto de 2016. Ela pretende ir até a Antártica sem gastar nada, não importando quanto tempo demore.
Hoje no Paraguai, Eve conta que logo no início da sua jornada teve uma emergência que a obrigou a usar algum dinheiro, mas vive há dois anos sem tocar na carteira. Ela pede carona e fica na casa de pessoas que conhece no caminho. A jovem de 28 anos costuma cozinhar para seus anfitriões ou fazer bicos em restaurantes em troca de comida.
Eve afirma que decidiu se lançar nessa aventura por acreditar que tudo no mundo é possível, com ou sem dinheiro, e busca se conectar com as pessoas de uma forma mais espiritual. “O dinheiro é uma das coisas que mais limitam a gente.”
Espiritualidade acima da matéria
O sonho de criar um lugar completamente autossustentável deu origem, em 1968, à comunidade de Auroville, ou Cidade do Amanhecer, no sul da Índia. A vila fundada pela francesa Mirra Alfassa, seguindo os princípios da ioga integral de Sri Aurobindo, hoje abriga cerca de 3 mil pessoas, de 52 países. Os indianos são maioria, perto de um terço, mas também há 11 brasileiros.
Auroville é uma cidade em crescimento, onde os moradores são responsáveis por fazerem suas próprias casas. A administração explica que nunca houve dinheiro suficiente para oferecer moradia gratuita e manter todos os aurovilianos, mas a vila cobre as necessidades básicas de seus residentes, como comida, roupas, cultura, saúde e educação.
Quem chega à comunidade agora deve fazer uma contribuição inicial e todos os fundos são centralizados e posteriormente alocados nos diferentes setores. Auroville ainda não está totalmente livre do dinheiro: a maior transação monetária acontece com o mundo externo, na compra de suprimentos que a vila ainda não consegue produzir. Internamente, há algumas transações entre contas, com pouquíssima circulação de dinheiro físico.
A população vem crescendo e há de bebês a idosos, com a idade média sendo 39 anos. Pode-se dizer que há ricos e pobres vivendo na cidade porque as pessoas têm passados e rendas distintas em seus países de origem, mas a administração da vila afirma que a noção de riqueza e pobreza tem pouca importância em Auroville, onde as pessoas são encorajadas a viver uma experiência espiritual que ultrapasse esses conceitos.
O pesquisador Ricardo Visser, da UERJ, não acredita que um dia a sociedade como um todo possa voltar a viver sem dinheiro. No entanto, para ele há duas opções: continuar limitando a eficiência da sociedade e a felicidade das pessoas a uma questão monetária ou recuperar a ideia de que o dinheiro é apenas o meio e voltar a engrandecer os seres humanos.