Dois homens com roupas sociais e os braços cruzados estão lado a lado. Em um deles, há uma carteira de trabalho com a palavra
Brasil tem mais trabalhadores informais do que registrados: 38 milhões ante 34,7 milhões de formais | Ilustração: Gabriel Lucki

Carteira limpa: a geração que nasceu para viver de bicos

Como os jovens estão se adaptando à nova realidade do mercado de trabalho brasileiro, sem registro na CLT e com salários mais baixos

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Editora de vídeos, cinegrafista, produtora. São muitos os bicos e frilas que a fotógrafa Damaris Belchior, de 21 anos, faz para garantir seu sustento e ainda ajudar na renda da família. Mesmo com ensino superior, nunca conseguiu um trabalho registrado e acabou entrando no contingente de 6,3 milhões de jovens que fazem parte do mercado informal no País. “Até tenho mais tempo livre, mas no dia do frila a gente trabalha muito. E a insegurança é muito maior”, conta Damaris.

A informalidade vem crescendo no mercado de trabalho brasileiro em geral. Em dezembro do ano passado o número de empregados informais superou o de trabalhadores registrados pela primeira vez na história, e essa trajetória se mantém. Segundo os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, a soma dos funcionários sem carteira assinada e dos que optaram por trabalhar no próprio negócio chega a 38 milhões de brasileiros, contra 34,7 milhões registradas no regime CLT. O documento foi divulgado em maio, com informações ao primeiro trimestre do ano.

Damaris Belchior/ Acervo PessoalA fotógrafa Damaris Belchior olha pelo visor de uma câmera, esta apoiada por um tripé, em um de seus trabalhos temporários como cinegrafista.
Damaris Belchior, de 21 anos, é formada em fotografia e nunca teve carteira assinada

Mais sensíveis às alterações no mercado de trabalho, os jovens entre 14 e 25 anos representam 16% do mercado informal, de acordo com um levantamento feito pela consultoria LCA. A pedido da reportagem, a LCA calculou a influência do aumento da informalidade sobre a renda e constatou a desvalorização dos salários. A renda média em termos reais (descontada a inflação) dos jovens entre 19 e 25 anos caiu 5,8% entre 2014 e 2017.

Damaris ainda enfrenta outras adversidades, já que não tem câmera própria e, por conta disso, não consegue trabalhar sem a ajuda dos amigos. “O trabalho informal para mim é um refúgio. O dinheiro que eu ganho não dá pra pagar os equipamentos, mas eu pego alguns emprestado para fazer esses trabalhos. É o jeito”, diz Damaris, que além dos frilas com vídeo também fez ensaios fotográficos. “Estamos sempre à mercê, esperando que alguém indique um trabalho. E ainda é preciso investir nas câmeras.”

O economista Cosmo Donato, da LCA, acredita que uma das hipóteses para o aumento da informalidade entre os jovens seja a necessidade de começar a trabalhar para ajudar os pais, que eventualmente  perderam o emprego. Em geral, os responsáveis pela família são os mais qualificados e representam uma parcela maior da renda. Quando esse salário deixa de existir, os outros membros, com menor experiência, entram no mercado para ajudar nas contas.

“É um efeito defasado da crise que vem atingindo o País desde 2016, e os jovens são mais sensíveis ao desemprego”, diz Donato. Segundo ele, isso compromete a qualificação dos jovens brasileiros. “Muitos ainda não terminaram a graduação e, como estão sem recursos por conta do alto desemprego, não conseguem se qualificar”, explica o economista. “Grande parte não tem dinheiro para continuar a faculdade e entra no mercado informal para ter alguma renda.”

Gráfico mostra a variação do número de trabalhadores informais e registrados desde 2012. Enquanto em 2012 havia mais trabalhadores com registro na carteira de trabalho do que informais, em 2018 este cenário se inverteu. São 38 milhões de trabalhadores informais contra 34,7 milhões que têm registro na CLT.
Enquanto em 2012 havia mais trabalhadores com registro na carteira de trabalho do que informais, em 2018 este cenário se inverteu. São 38 milhões de trabalhadores informais contra 34,7 milhões que têm registro na CLT

No caso do estudante de Educação Física Evandro da Costa Oliveira, de 22 anos, a informalidade foi uma solução para aumentar sua renda. Ele deixou um emprego CLT, em que ganhava R$ 1.300 por mês, para viver de frilas, que rendem mais. “Com os bicos e trabalhos que faço, consigo tirar até o dobro disso”, explica Evandro. “A gente precisa de dinheiro na hora, preto no branco.”

O estudante, que até tentou seguir carreira como jogador de futebol na base do Internacional de Porto Alegre, tinha carteira assinada como auxiliar de logística, carregando caminhões com produtos para entrega. “Aquilo estava me deprimindo, queria ser mais livre, fazer meus horários”, diz Evandro, que teve de lidar com a preocupação dos pais quando decidiu deixar o trabalho. “Quando ainda estava empregado fiz um frila de figurante num comercial e percebi que poderia ganhar mais só fazendo esses trabalhos temporários. Faz um ano que vivo assim.”

Para entender essa conjuntura é necessário levar em conta a lenta recuperação econômica do País, como ressalta o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE-FGV), Fernando de Holanda Barbosa. Nesse cenário, as pessoas tendem a se virar por conta própria.  “O contrato no universo do mercado de trabalho não é o problema, o problema são as incertezas que estamos enfrentando, principalmente em termos eleitorais. Os candidatos não têm propostas para sanar a crise econômica brasileira.”

Evandro da Costa Oliveira/ Acervo PessoalNum campo de futebol, Evandro Costa joga pela base do Internacional de Porto Alegre. Utilizando a camisa de número cinco, ele conduz a bola próximo a linha de meio-de-campo enquanto é observado de perto por um jogador do time adversário.
Evandro trocou a segurança da CLT pelos bicos para aumentar sua renda

A socióloga Ludmila Costhek, que estuda relações informais de trabalho, afirma que os Estados estão promovendo essa informalização por meio de reformas estruturais. “Com o alto desenvolvimento tecnológico, que possibilita ao empregado trabalhar em casa, por exemplo, existe uma ideia de que ele é autônomo, mas na realidade ele obedece às demandas da empresa”, explica Costhek.

Ludmila ainda argumenta que as mudanças realizadas na CLT geraram uma grande insegurança jurídica, tanto do lado do empregador quanto do empregado, e tornaram mais precárias as relações de trabalho. “Não se sabe a jornada de trabalho, quanto vai ser o salário, como vai ser essa relação. E do lado do empregador, ainda há muita incerteza porque pontos importantes da reforma trabalhista não foram regulamentados”, explica.

A regulamentação do trabalho intermitente foi um dos pontos mais discutidos em relação à aprovação da reforma trabalhista. Para Costhek, as novas leis nesse sentido tendem à uma “uberização” do trabalho, com os empregadores contratando somente na necessidade da demanda. “A reforma propôs uma mudança profunda nas relações de trabalho e possibilitou um cardápio de opções para o empregador. Os jovens serão o público alvo do trabalho intermitente.”