Referência mundial nos estudos sobre o fenômeno da precarização do trabalho, Guy Standing é economista com Ph.D. pela Universidade de Cambridge e um dos responsáveis por trazer a discussão do precariado para a realidade de progresso tecnológico acelerado. Formada por diferentes grupos sociais e econômicos, a nova classe nomeada por Standing é marcada pela alta rotatividade de trabalhos e pelo grau reduzido de direitos trabalhistas.
Para o britânico, professor da Universidade de Londres, o principal adversário do precariado é o Estado, que permite e aplica benefícios e prioridades para ricos e corporações, e não para a classe de trabalhadores mais precarizada. “Para o antigo proletariado, o principal antagonista era o empregador, o capital e o chefe”, compara Standing.
Em seu mais recente livro Basic Income: And How We Can Make It Happen [Renda Básica: Como podemos fazer acontecer, em tradução livre], publicado em maio e ainda sem lançamento no Brasil, o pesquisador defende a política de renda básica universal como solução para a precarização do emprego, aumento da desigualdade social e econômica. Confira mais a análise de Standing em entrevista ao Estado:
Quais são as principais características do precariado?
O conceito de precariado se refere a uma classe emergente, definida por uma combinação distinta de relações. Isto é, como um grupo societário, diferente do proletariado, que se define por relações distintas na produção, distribuição e com o Estado. Estas pessoas do precariado estão sendo forçadas a aceitar uma vida de empregos instáveis, sem uma identidade ocupacional, tendo que fazer muitos serviços que, na verdade, não são trabalho. Neles, os trabalhadores estão sendo explorados fora de um emprego, fora de um espaço físico e horários regulares de trabalho, assim como dentro deles. Eles não têm férias remuneradas, ou a perspectiva de aposentadoria. E por serem os salários baixos e voláteis, ou até mesmo imprevisíveis, eles normalmente estão com dívidas e com medo de perder suas rendas subitamente. Por último, o precariado está no processo de perda de todas as formas de direitos, sejam eles civis, culturais, sociais, econômicos e políticos. A perda de direitos políticos vem do simples fato de que o precariado não vê partidos ou líderes políticos os representando.
A nova revolução industrial, com o crescimento da automação, exerce influência sobre a aceleração do precariado?
Sem dúvidas, a revolução tecnológica, que traz mudanças radicais globalmente, está contribuindo para o aumento do precariado. Isto tem tornado muito mais fácil e barato transferir empregos e produção para onde quer que o trabalho e os outros custos sejam baixos. A revolução tecnológica também tem facilitado que corporações mudem suas divisões de trabalho, fragmentando as estruturas de emprego e facilitando a rotatividade do trabalho. Eu não acredito que os robôs vão fazer quase todos os trabalhos redundantes, mas não há dúvida que a progressiva revolução tecnológica está agravando a distribuição de renda, encaminhando mais e mais renda para o que eu tenho chamado de “rentistas” no meu livro “The Corruption of Capitalism” [lançado em 2016 e ainda sem tradução para o Brasil].
O precariado é um grupo homogêneo ou composto por diferentes classes, com diferentes níveis de educação?
O precariado é uma classe social em formação, que é internamente dividida, no momento. O primeiro grupo - que eu chamo de “Atávicos” - consiste nas muitas pessoas que sentem que têm sido excluídas das comunidades da velha classe trabalhadora, e que olham para trás com a percepção de um "passado perdido" do capitalismo industrial, no qual eles ou seus antecessores estavam unidos por meio de uma variedade dos chamados "direitos trabalhistas". Eles tendem a apoiar populistas neofascistas, especialmente Donald Trump e Marine Le Pen. O segundo grupo é o que eu chamo de “Nostálgicos”. São pessoas que sentem que perderam um “presente” (aqui e agora), perderam o sentido de se sentirem em casa. Este grupo é formado principalmente por imigrantes e etnias minoritárias que se sentem desligados da sociedade convencional. O terceiro grupo é o que eu chamo de “Progressistas”, formado pela parte mais educada do precariado. Para eles, foi prometido um futuro quando entraram nas universidades, e eles perceberam que foi uma aposta na loteria. Eles estão procurando por um renascimento do Século das Luzes, um senso de futuro. E é esta parte do precariado que definirá as políticas progressistas na próxima década.
A realidade do precariado demanda flexibilidade e disponibilidade para mais de um tipo de emprego. Há alguma maneira de se preparar para esse cenário instável?
A flexibilidade é uma daquelas palavras usadas demais e ideologicamente orientadas. A maioria de nós quer ser flexível e adaptável, mas não queremos ser inseguros. As exigências dos empregadores e do Estado de que os trabalhadores sejam "flexíveis" não são justas, se realmente significam que milhões de pessoas devem aceitar uma vida contínua de insegurança social e econômica. Mas se formos sensatos, como a maioria das pessoas na parte educada do precariado entende, não queremos uma vida inteira com um único emprego. A maioria dos trabalhos é chata, estressante ou limitada. Isso não vai mudar para a maioria dos trabalhadores. Precisamos ser honestos sobre isso. O desafio é garantir que mais e mais pessoas tenham segurança básica de renda. Então, todos podem suportar um emprego instável.
Há uma relação entre o precariado e a teoria que afirma que os millennials vão ser mais pobres que seus pais?
Eu não gosto do termo millennials. Distrai da realidade da diferença de classes.É óbvio que muitos jovens estão sendo pressionados pela realidade do precariado e, dessa forma, têm sua renda diminuindo ou estagnada, com grandes dívidas. Mas alguns jovens estão começando em um emprego assalariado ou na elite acima disso.E algumas pessoas mais velhas estão sendo pressionadas pelo precariado. Nós não devemos nos enganar e pensar em imagens de gerações, nos dividindo de acordo com a idade. Devemos nos focar no que vai acontecer com as pessoas em diferentes classes sociais.
O emprego na forma como conhecemos irá mudar?
Eu penso que os conceitos de trabalho e emprego precisam ser repensados e nossas estatísticas de trabalho reavaliadas. Se você está no precariado, você já sabe que terá muito trabalho que não será contado ou remunerado. E você faz muito dessas atividades por fora dos locais de trabalho. Além disso, mais e mais empregos vão ser eletrônicos, ultrapassando qualquer relação trabalhista envolvendo empregador-empregado. Nosso conceito estatístico deriva dos anos 1930. Hoje, eles não se encaixam no nosso propósito.
Como resultado do processo de envelhecimento no mundo todo, os idosos ficarão mais tempo no mercado de trabalho. Esse grupo deve se adaptar à realidade de instabilidade e flexibilidade do precariado?
O mundo está envelhecendo. Nós sabemos disso. E há algo a mais do que o envelhecimento da população economicamente ativa. Muitos de nós continuamos querendo fazer algum trabalho. Isso estrutura, dá sentido e interação para nossas vidas, na maioria dos casos. Mas, novamente, isso é uma questão de classe. Se você desenvolveu uma carreira, ela irá continuar até você deixar de aproveitar ou de estar apto para fazer esse tipo de trabalho. Mas, para milhões de pessoas, a experiência passada está ausente. De novo, o pagamento de uma renda básica para todo mundo durante toda a vida poderia dar para aqueles que se cansaram ou demandam empregos a oportunidade de flexibilizar em seus próprios termos ou de aproveitar um descanso.
Então a renda básica universal é a resposta para o precariado?
Esse é o ponto-chave. Para o antigo proletariado, o principal antagonista era o empregador, o capital e o “chefe”. Para o precariado, o principal inimigo é o Estado. Isso não significa apenas o governo, ainda que seja fundamental, mas inclui outras instituições. É o Estado que dá forma a políticas sociais, que força as pessoas do precariado a se comportarem de certas maneiras ou que bloqueia certas atividades. É o governo que aplica as “condicionalidades” nos benefícios ou dá prioridade para certos subsídios para os ricos ou para as corporações, e não para o precariado. Nós precisamos demandar movimentos na direção de renda básica para todos. Isso não é uma panacéia. No meu novo livro, Basic Income: And how we can make it happen [Renda Básica: Como podemos fazer acontecer, em tradução livre], a renda básica é justificada principalmente por razões éticas e filosóficas - por justiça social, melhora da justiça republicana e instrumento necessário de seguridade básica, a qual todos precisamos.