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Vítimas e
Agressores

O que pensam os envolvidos em casos de injúria racial, de um lado e do outro

'Eu causo um constrangimento necessário'

Mário Lúcio Duarte Costa se tornou um militante da questão racial no Brasil muito anos antes de ter sido chamado de “macaco” por torcedores do Grêmio, em jogo pela Copa do Brasil, em 2014. Estudioso, o goleiro da Ponte Preta cita de cór autores e passagens da história do negro no Brasil. O episódio na Arena do Grêmio deixou seu engajamento em alto relevo. Uma militância que é solitária – Aranha faz questão de frisar que não integra nenhum grupo. Já foi convidado diversas vezes para se filiar e virar um político no futuro. Não quer . É o exército de um homem só.

Aranha se tornou uma referência no tema e costuma ser convidado com frequência para dar palestras em escolas e instituições federais. O último evento foi na Fundação Casa, em São Paulo. Ao lado da judoca Rafaela Silva, foi uma das estrelas da campanha “Por uma Olimpíada sem racismo”, do Ministério da Justiça e Cidadania, lançada antes dos Jogos do Rio. Ele não gosta de divulgar os eventos de que participa. Quando dá entrevistas, como em um encontro raro com o Estado, em Campinas, não posa para retratos. Tem uma preocupação extrema com o que chama de vitimização. “Já ouvi várias vezes que estava me aproveitando da situação para me colocar como vítima. Em alguns casos, quem sofre injúria racial é visto como culpado”, critica o jogador de 36 anos.

Pelo mesmo motivo, Aranha costuma recusar os convites para programas esportivos. “Acabei abrindo mão da minha carreira por conta dessa situação. Normalmente, eu não atendo programas esportivos. É o mesmo que acontece quando um cantor se nega a ir a um programa de rádio. Ele enfrenta dificuldades. Não vou porque vão dizer que estou usando o tema para me promover. É uma inversão”, afirma o goleiro.

Antes do julgamento na esfera esportiva, dirigentes gremistas sustentaram a tese de que o goleiro havia sido o responsável pelos xingamentos que sofreu. O então vice-presidente do clube, Adalberto Preis, acusou Aranha de ter protagonizado “uma grande encenação”. Nos tribunais, a defesa do Grêmio argumentou que Aranha provocara a torcida do time ao fazer cera no gramado.

Aranha não acredita no aumento dos casos de injúria racial, mas sim no acréscimo das denúncias. Acredita que uma denúncia fortalece a outra e assim por diante. Também destaca o poder da mídia. “Com essa expansão da mídia e maior cobertura do futebol, muitas coisas ruins diminuíram ou deixaram de existir. Entre elas, a injúria racial. Era uma coisa comum e normal. Por isso, muitos nunca tocaram no assunto”, avalia.

O goleiro se define como um otimista. “O Governo Federal nunca se manifestou de forma tão forte como se manifestou agora. Além disso, temos as cotas e as ações afirmativas, o debate na mídia”. “Não vai existir o fim do racismo. As pessoas vão começar a se respeitar conforme a aplicação das leis. Acredito muito nisso. Se os brasileiros se conscientizarem de que a melhora do País está dentro de cada um de nós, não só o racismo, mas muitas coisas ruins vão deixar de existir. A gente espera do Governo, mas tropeçamos no dia a dia. O mesmo que cobra justiça acaba cometendo várias injustiças durante o dia.

'Ninguém nasce racista', diz Arouca

Como você se sente hoje em relação ao episódios de discriminação racial que você sofreu quando jogava no Santos (2014), no jogo de Mogi Mirim, e também pelo Palmeiras (2015), pelas redes sociais?
Acho que a gente vai criando uma resistência. É preocupante ver que os casos são cada vez mais frequentes, mas, ao mesmo tempo, fico feliz por ver que as pessoas estão denunciando, mostrando a cara de quem faz esse tipo de coisa. Então, acho que houve uma evolução nesse aspecto. Mas muito mais por coragem de quem é agredido do que qualquer outra coisa.

Em sua visão, o que mudou de lá para cá em relação aos casos de racismo? Você se sente decepcionado?
Acho que pouca coisa mudou. Houve uma campanha da CBF contra o racismo, alguns debates, mas acho que parou por aí. Não tivemos nenhum tipo de ação mais contundente. Outros casos aconteceram e ficaram por isso mesmo, como quase tudo no país.

O volante Arouca, que sofreu discriminação em 2014 e 2015, treina na Academia de Futebol do Palmeiras. Foto: Nilton Fukuda

O que fazer para acabar com o problema do racismo no Brasil?
Quando aconteceu comigo pela primeira vez, lá em Mogi, me lembro que me convidaram pra participar de diversos debates em Brasília, aos quais pude contribuir, mesmo que à distância. Desde então, sempre enfatizei a necessidade de campanhas educativas. Acho que ninguém nasce preconceituoso ou racista, isso se aprende, de alguma forma. Então, porque não ensinar o respeito, em vez do ódio e da discriminação? Não é possível que seja tão difícil assim...

Como você vê o futuro da questão racial no Brasil?
Me desanima um pouco saber que tão pouco é feito pra melhorar isso. Ao mesmo tempo, vejo que as pessoas, muitas vezes, não têm nem o básico para ter uma vida digna. Esse é o primeiro passo. Depois, o mínimo de educação. Quando vemos que nada disso é feito por aqui, isso faz com que eu perca um pouco da esperança de que algo vá realmente mudar. Se os pais não conseguem dar nem comida para os filhos, os professores trabalham sem estrutura nenhuma para desempenhar sua função, as crianças não têm merenda na escola, que é o mínimo do mínimo, imagine se vão se preocupar com uma questão que sempre foi tratada como secundária na nossa sociedade. Assim como a corrupção, o racismo só vai diminuir se começar a ser punido e desencorajado.

'Falta apoio dos clubes às vítimas'

Para o historiador Marcel Diego Tonini, pesquisador da USP que tem trabalhos de mestrado e doutorado sobre os negros no futebol, os jogadores estão sozinhos ao denunciar casos de injúria racial. Falta apoio dos clubes.

Como resolver a questão do racismo no futebol brasileiro?
Todos os envolvidos deveriam ter posturas mais firmes. A imprensa deve noticiar o fato e fazer a crítica do conteúdo. Jogadores encorajados pelos clubes e federações. Seria fundamental uma negociação maior com as federações para atingir um novo patamar de enfrentamento ao racismo. As entidades têm muito o que caminhar. Talvez o maior passo por parte dos jogadores negros seria a ação coletiva a fim de marcar posições conjuntas e reivindicar novas medidas de enfrentamento, tal como vemos recentemente nos Estados Unidos nos mais variados esportes.

O racismo aumentou?
Hoje, os atletas são mais encorajados a denunciar os casos. Não significa que o futebol era menos racista. Existe, por outro lado, a própria imprensa, que trata o tema de outra maneira. Em 2005, alguns editoriais dos jornais se mostravam contra a denúncia e afirmavam que era uma coisa normal do futebol. Doze anos atrás, a relação com o racismo era diferente. Isso influencia maior engajamento. Outra questão importante é que só olhamos as grandes equipes. Aqueles casos da segunda divisão são abafados. Isso não vem à tona.

O professor Marcel Tonini, da USP, acredita que os clubes devem apoiar os jogadores que sofrem injúrias raciais. Foto: Gabriela Biló

O racismo reflete a sociedade?
É uma reprodução da sociedade; mais do que seu espelho. Racismo se reproduz de outra maneira no futebol, reverberando na sociedade. No futebol, o racismo foi construído como parte de sua cultura. Ao não confrontá-lo, mostra para sociedade que não é importante. É assunto menor. Presta, pois, um desserviço.

As campanhas funcionam?
Nem federações nacionais, nem confederações nem a Fifa tratam o assunto como deveriam. Campanhas são protocolares. O discurso nas quartas de final de Copas do Mundo não é feito pelos jogadores. Não é algo que parte deles. A Copa não seria na Rússia se a Fifa realmente se preocupasse com essa questão. Essas campanhas não levam a nada. Já eram feitas há três Copas atrás. Por outro lado, praticamente não existem dirigentes negros nas confederações. Os crimes de racismo são desqualificados pelos tribunais com penas menores, como serviços comunitários. É um retrocesso.

A agressora

A mudança de endereço, a busca pelo anonimato e até a troca da cor de cabelo, o loiro pelo ruivo, não fizeram com que a torcedora Patricia Moreira conseguisse iniciar uma vida nova. Ela luta para deixar de ser a cara do racismo após ter sido flagrada pelas câmeras de TV xingando o goleiro Aranha no jogo entre Grêmio e Santos pela Copa do Brasil. “Depois que ela se tornou a imagem na injúria racial no Brasil, ela ainda está tentando levar sua vida de volta à normalidade”, explica o advogado Alexandre Rossato.

Patricia viveu fases distintas ao longo desses três anos. Sua casa foi apedrejada e incendiada e ela e chegou a sofrer ameaças nas redes sociais. Dias depois, ela chegou a ser cumprimentada no voo a São Paulo para uma das raras entrevistas que concedeu à TV Globo.

Patricia não dá entrevistas – nem por e-mail – e está processando um programa de televisão pela divulgação de imagens de sua mãe sem sua autorização. Ainda hoje, três anos depois daquele jogo na Arena Grêmio, ela ainda passa por tratamento psiquiátrico oferecido voluntariamente. Durante algum tempo, foi também ao psicólogo.

Patricia Moreira, torcedora do Grêmio, ofende o goleiro Aranha durante jogo da Copa do Brasil em 2014. Foto: Reprodução ESPN

A vida profissional está voltando ao normal. Depois de ter sido afastada do trabalho no Centro Médico e Odontológico da Brigada Militar, onde era funcionária de uma empresa terceirizada, ela conseguiu voltar a trabalhar há um ano. Faz a mesma coisa, atua como auxiliar de saúde bucal, mas o local permanece incógnito.

Patricia Moreira, juntamente com os gremistas Eder Braga, Fernando Ascal e Ricardo Rychter, pegariam de um a três anos de prisão após o episódio de injúria racial. Pegariam. No lugar da pena, aceitaram a proposta para se apresentarem a uma delegacia a ser determinada uma hora antes de cada jogo oficial do Grêmio em Porto Alegre durante seis meses. Patricia já cumpriu a pena. “Não foi um ato racista. Ela disse aquilo no calor da emoção”, defende o advogado.

Depois de cinco anos ininterruptos assistindo aos jogos do Grêmio nas arquibancadas, ela nunca mais foi a um estádio de futebol.

Textos: Gonçalo Junior / Edição: Robson Morelli